Recentemente um dos sopapos mais célebres do futebol argentino completou vinte anos: Edmundo x Flavio Zandoná, em um Flamengo x Vélez pela Supercopa 1995, concluídos com briga generalizada. Hoje, outra “cena lamentável” faz trinta. Não terminou da mesma forma, e ainda que bem desleal conseguiu ser mais sutil que o murro de Zandoná. Mas foi carregada de significados para torcedores do Boca. Para muitos, foi uma revanche pessoal por uma traição.
Oscar Ruggeri era um defensor aguerrido surgido no Boca no início da década. Campeão com Maradona em 1981, era ídolo. Mas ainda em 1981 aquele time começou a desgringolar. As diretrizes econômicas da ditadura não chegavam a ser exatamente melhores que as desventuras dos governos mais recentes.
O dólar, moeda usada no contrato de Maradona e outros reforços, subiu simplesmente em 240%, algo que também afetou o River. A “solução” do governo foi embarcar na Guerra das Malvinas, que piorou tudo. Não por acaso, Dieguito e Kempes (adquirido pelo River como resposta) deixaram o futebol argentino em 1982 – o River também teve de vender Ramón Díaz e Daniel Passarella.
A dupla principal, no embalo da “década perdida”, ficou alguns anos sem ganhar nada. San Lorenzo e Racing, ainda piores, foram rebaixados e gente que até então fazia participações discretas conseguiram títulos: Estudiantes, Ferro Carril Oeste e Argentinos Jrs foram cada um bicampeões entre 1982.
Em 1984, o River já ensaiava uma recuperação, mas o Boca não sofreu risco de rebaixamento (só foi vencer na décima rodada, sua pior marca) como quase quebrou economicamente. Não só lutou para não ficar entre os últimos como viu a Bombonera ser fechada e, sintomaticamente, sofreu a maior goleada de sua história, um 9-1 para o Barcelona. Detalhamos mais neste outro Especial.
Ruggeri era destaque naquele Boca, assim como o atacante Ricardo Gareca. A ponto de, apesar da crise, serem ambos os representantes do clube na seleção – tanto que estavam ocupados com ela enquanto a equipe era massacrada pelo Barcelona. Insatisfeitos, forçaram uma greve. O Boca teve que recorrer a juvenis, que se queimaram na terrível maré (ficou famosa partida contra o Atlanta, outro clube auriazul. A garotada xeneize improvisou uma camisa branca com números pintados à mão, que escorriam conforme o suor do jogo…).
Ruggeri e Gareca acabariam assinando com o River. A dupla virou para sempre persona non grata entre os auriazuis. Ao ex-técnico palmeirense, eles dedicaram o cântico “Gareca, tem que morrer, Gareca tem câncer”. Mas a raiva contra ele Gareca ficou minorada pois ele não ficou muito tempo no arquirrival, assinando com o forte narcofútbol colombiano para ser trivice da Libertadores pelo América de Cali.
Já Ruggeri seguiu no River como se nada houvesse ocorrido e ainda por cima foi muito mais vitorioso lá, vencendo em 1986 a primeira Libertadores (sobre o América de Gareca) e Mundial do Millo. Boquenses exaltadíssimos revidaram: “me queimaram a casa. Havia ido a Mar del Plata festejar o título de 1986 com o River e ao voltar vi os bombeiros. Um vizinho salvou meus pais, viu o fogo e os acordou”. Mas o ódio já era grande antes, naquele 27 de outubro de 1985, no Monumental.
Era o primeiro encontro com o ex-clube. O River vencia por 1-0. Aos 28 do segundo tempo, então, Roberto Aníbal Passucci teria virado Roberto Hannibal the Cannibal Passucci se O Silêncio dos Inocentes já houvesse estreado na época. Quase partiu Ruggeri ao meio com uma solada em dividida.
Ruggeri já não era exatamente o melhor amigo de Passucci no vestiário do Boca, vale ressaltar. “Agora pareço ser o assassino e Ruggeri, a pobre vítima. Não é bem assim”, reclamou o bigodudo na época. Falastrão, o vira-casaca conseguiria o feito de ser o único campeão por Boca, River e também San Lorenzo, onde jogaria de 1994 a 1997 – e também o de ser o único usado na seleção vindo dos três. Célebres ex-colegas de El Cabezón, porém, torcem o nariz a respeito:
“(Briguei com ele) porque quis ser o exemplo, e de nenhuma maneira Ruggeri é exemplo. (…) É um traidor. Conheço bem Ruggeri”, declarou Maradona. “Ele disse que ganhou tudo, e eu digo que conseguiu porque integrava a equipe no River e na seleção, sozinho não obteve nada”, disparou Ricardo Bochini, outro que venceu a Copa de 1986.
Na mesma linha, Chilavert, com quem jogou no Vélez, opinou que “ganhou com a seleção quando Maradona estava no melhor nível, o mesmo no Boca, e na Copa América estavam Caniggia e Batistuta. No Real Madrid esteve rodeado de notáveis jogadores, igual no River. Ganhou por circunstâncias que se deram, isso não quer dizer que seja um grande jogador nem o caudilho que todo mundo pensa que era”. José Sanfilippo, maior artilheiro do San Lorenzo e com quem trabalhou em uma mesa redonda televisiva, fulminou ao ser indagado se o salvaria no deserto: “não. Que morra ali de sede. É o mais malvado que conheci na vida”.
Passucci, que nunca se destacou exatamente pela técnica e sim pela garra, já era querido pelos xeneizes. Naquele dia, virou de vez herói para muitos – outros até o criticam por ter sido light na agressão. Imediatamente expulso, deixou calmamente o Monumental beijando a própria camisa como se tivesse cumprido uma missão.
Seu sobrenome batizou La Passucci, blog investigativo da história do Boca que adora cutucar o grande rival. Como nas notas que mostram que o River fraudou a fundação de 1901 (clique aqui) e que não teria o melhor exemplo de fidelidade de uma torcida, razão pela qual o blog a satiriza de “La -1” em contraponto a “La 12” do Boca (aqui).
O site, é claro, não poderia deixar de escrever também a respeito do Superclásico de trinta anos atrás: veja aqui. “Sonhávamos em empatar o Superclásico (…). Mas se algo sonhávamos milhares e milhares de torcedores do Boca de então era ver-se na encruzilhada em que ficou nosso herói. Ir buscar a bola ou a perna do Judas? Era uma oportunidade histórica. E talvez a prova de que Deus existe”, descreveu.
O blog afirma em sua apresentação que “o folclore do Boca vs River é parte das tradições que tanto defendemos. Agradecemos a grande quantidade de visitas que nos proporcionam os torcedores do River mas pedimos a eles, e aos do Boca também, que sejam mensurados nos seus comentários (…). Não vão encontrar documentos de brigas de barras, nem nada do estilo. Se querem ser agressivos, sejam criativos, mandem recortes, fotos, dados, histórias, teorias, debatam com a ironia”. Mas ressalva: “esta página não apoia a violência de nenhum tipo (exceto a patada de Roberto, é claro)”.
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