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30 anos de uma histórica passagem de bastão: River 5-4 Argentinos Jrs

Em 1986, o gigante River tornou-se o primeiro clube argentino a faturar em um mesmo ano o campeonato local, a Libertadores e o Mundial – de quebra, ambas as conquistas internacionais eram as primeiras do clube (que ainda por cima sofria ao ver os rivais já tendo estes troféus há consideráveis anos). Uma proeza que esteve a oito minutos de ser alcançada um ano antes por um timaço que tinha o nanico Argentinos Jrs; nem mesmo o recordista Independiente, já sete vezes campeão da Libertadores, conseguira. Vista hoje, aquela partidaça no mês seguinte ao vice-campeonato do Bicho contra a Juventus em Tóquio, somado ao placar eloquente, permite concluir-se que houve mesmo uma simbólica transmissão.

Nem quando tivera Maradona o Argentinos Jrs havia chegado perto de títulos. Até havia sido vice-campeão em 1980, mas a nove pontos do River, cujo então técnico Ángel Labruna apareceu em 1983 para treinar o clube de La Paternal. Labruna, infelizmente, morreu ainda em 1983, mas deixou a semente no time apelidado de semillero. Em 1984, o Bicho foi campeão argentino pela primeira vez (saiba mais). Repetiu a dose no campeonato seguinte, em 1985 (veja). Sem Labruna e sem Ubaldo Fillol (outro a deixar o time em 1983, vendido ao Flamengo), o nome midiático era o líbero Jorge Olguín, campeão da Copa de 1978 e que poderia ter sido também em 1986, mas recusou-se o trabalhar com o técnico alviceleste Carlos Bilardo – o conhecia e desaprovava desde os tempos de San Lorenzo.

Os colorados que iriam ao México seriam o meia Sergio Batista e os atacantes Pedro Pasculli (já como jogador do Lecce) e Claudio Borghi. Ainda com participação de Pasculli, o título nacional de 1985 foi assegurado com a equipe já encantando na Libertadores, vencendo tanto Vasco como Fluminense no Rio de Janeiro na primeira fase: falamos aqui. O mais incrível de tudo isso? Aquele elenco faturou as três taças sem sequer atuar na sua casa, o bairro de La Paternal: com a venda de Maradona, começou a reformar seu estádio e, por ideia de Labruna, passara a alugar o do Ferro Carril Oeste, que tinha dimensões maiores. Ainda antes do fim do Torneio Nacional de 1985 (decidido só no início de setembro de 1985), o calendário da elite argentina alterou sua fórmula de disputa, instituindo a partir de julho uma temporada nos moldes europeus.

Com a Libertadores de 1985 também em curso desde julho, o Argentinos, em três frentes, naturalmente poupou titulares na nova temporada local, na qual promoveu a estreia de alguns adolescentes. E, mesmo assim, o time era líder do campeonato de 1985-86 até a 12ª rodada. Pudera: dentre os jovens usados no campeonato enquanto os titulares venciam a América, estavam “só” o refinado volante Fernando Redondo e também o lateral Carlos MacAllister, ambos eleitos em 2014 pelo Futebol Portenho para o time dos sonhos do clube: clique aqui.

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Platini e colegas em Tóquio venceram, mas a taça foi erguida pela camisa vermelha derrotada por aqueles europeus que “não dão a mínima para mundial”. O Argentinos Jrs quase virou o primeiro time argentino campeão nacional, da Libertadores e mundial em um mesmo ano

E o River? Como a maioria dos grandes argentinos, vinha em jejum, esgotado financeiramente pelos desmandos econômicos dos militares. Ainda antes do fracasso nas Malvinas piorar a crise, o dólar já havia subido em 1981 mais subiu de 200%, e na moeda ianque havia sido feito o empréstimo de Mario Kempes, a resposta millonaria à ida de Maradona ao Boca. Kempes foi logo devolvido ao Valencia em 1982, ano em que o River precisou vender Daniel Passarella e Ramón Díaz. Campeão nacional em 1981 apesar da crise, o time teria sido rebaixado em 1983 se o polêmico sistema de promedios não houvesse se instituído naquela mesma temporada.

O alento de 1983 foi, em dezembro, a eleição de Hugo Santilli. Ele trouxe de volta o ídolo Norberto Alonso, exilado desde 1981 no Vélez por desentendimento com o técnico Alfredo Di Stéfano – outra reação a Maradona no Boca, substituíra Labruna após a vexaminosa eliminação riverplatense na primeira fase da Libertadores. O próprio Labruna teve seu retorno anunciado pouco antes de falecer. Chegaram também Nery Pumpido, Roque Alfaro e Jorge Borelli, dentre outros. O elenco já tinha em Enzo Francescoli um recém-contratado.

Em 1984, aquele time chegou à final do Torneio Nacional (derrota para o Ferro Carril Oeste) e ficou a oito pontos do campeão Argentinos Jrs no Torneio Metropolitano. Campanhas melhores, mas que não bastavam. O técnico uruguaio Luis Cubilla deu lugar ao folclórico Héctor Veira, o jovem treinador que havia perdido por um mísero ponto o Metropolitano de 1983 com o San Lorenzo – que recém voltava da segunda divisão; o rebaixamento azulgrana, em 1981 (em confronto direto com o Argentinos Jrs, aliás), o primeiro de um grande na Argentina, havia gerado a comoção que instituíra os promedios.

No início de 1985, chegaram também dois ídolos do Boca, cansados com a crise ainda pior vivida nos auriazuis (que, similarmente, haviam usado dólar para tirar Maradona do Argentinos Jrs em 1981): o zagueiro Oscar Ruggeri e o atacante Ricardo Gareca, uma polêmica que ainda rende, conforme contamos aqui. Veio também o condutor do Racing de Córdoba 4º colocado no ano anterior, o ponta Luis Amuchástegui. O título do Torneio Nacional escapou no penúltimo degrau – La Banda Roja foi eliminada pelo Vélez, que adiante ficaria no vice para o Argentinos Jrs. Mas a seca não duraria mais uma temporada, mesmo com a venda do fugaz Gareca ao América de Cali (onde seria, aliás, o vice de Argentinos e River nas Libertadores de 1985 e 1986).

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Já o River de Ruggeri, Pumpido, Enrique e do reserva Goycochea não deixaria o feito escapar. À direita, a foto profética ainda em fevereiro com a Libertadores, com Ruggeri, Veira, Francescoli, Gallego, Pumpido, Morresi e Alonso

O lugar de Gareca foi suprido pelo reforço Claudio Morresi, do Huracán (e futuro ministro dos esportes entre 2004 e 2015). Ele fez dupla endiabrada com Francescoli. O uruguaio seria artilheiro do campeonato, com 25 gols, enquanto o reforço somou 16. O River foi protagonista desde a largada do campeonato, ainda que não passasse dos dois gols de diferença quando vencia naquele início. Insaciável, o Argentinos Jrs seguia junto. Na 13ª rodada, porém, o Bicho não passou de um empate em casa com o Gimnasia LP. Já o Millo registrou sua primeira goleada, um 5-1 no Newell’s, justamente o clube que terminaria vice-campeão de 1985-86.

A liderança não deixaria mais Núñez, dando ares de final anunciado ao torneio. Já o perseguidor da vez passou a ser o surpreendente Deportivo Español, recém-chegado da segundona e que se despediu do ano de 1985 com seis pontos a menos que o River. O Argentinos Jrs se focara de vez na Libertadores e depois, em Tóquio. Vencia a badalada Juventus por 2-1 até os 37 minutos do segundo tempo. Tomou o empate e perdeu nos pênaltis uma final duríssima, considerada a de melhor nível técnico dos dois lados já patrocinada pela Toyota. Não por acaso, os italianos se encheram de camisas vermelhas dos derrotados para erguer, radiantes, a taça.

No início de 1986, o líder traria mais duas peças-chave, o uruguaio Nelson Gutiérrez e o talismã Ramón Centurión (artilheiro do River na vitoriosa Libertadores de 1986). O embate de 30 anos atrás foi válido pela 26ª rodada. Na 27ª, a distância do líder para o segundo colocado era de onze pontos, algo sem precedentes no profissionalismo – e em época na qual a vitória valia 2 pontos e não 3.

Não à toa, os riverplatenses sentiram-se à vontade para posar já em fevereiro de 1986 com o troféu da Libertadores, ainda não possuído, para uma reportagem sobre os grandes candidatos da competição – na foto aparecem a dupla Francescoli e Morresi, que seriam figuras ausentes na conquista dali a alguns meses (o uruguaio saiu antes, vendido ao Racing parisiense, e Morresi entrou em rápido declínio e perdeu a titularidade). O título argentino se confirmaria com incríveis cinco rodadas de antecedência, com dez pontos sobre Newell’s e Español – e doze sobre o Argentinos, 4º colocado.

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“Vivam os pontas!”, “os pontas não morreram”, “Garrincha vive”, pedem os pontas Ereros, Amuchástegui e José Castro (e dois velezanos) ao técnico da seleção, que não usava a posição em seu esquema tático. À direita, o maestro Borghi naquela partidaça

Como foi o jogo, afinal? Parecia uma barbada. O campeonato, após a pausa de verão, havia sido retomado na rodada anterior. O River abriu 3-0 sobre os visitantes. Amuchástegui começou de cabeça o show, após cruzamento raçudo quase sobre a linha de fundo de um insistente Jorge Gordillo. Francescoli, habilitado por Alfaro, livrou-se da marcação de Adrián Domenech e tocou sutilmente com curva na saída de Enrique Vidallé para ampliar. Héctor Enrique fez o outro, recebendo livre de Francescoli e arriscando um toque rasteiro de fora da área diante da posição adiantada de Vidallé. Mas o resultado era enganoso: havia sido um jogo de ida e volta constante, não fazendo tanta justiça.

E no segundo tempo o Bicho mostrou como não podia ser subestimado. Um pênalti rendeu a expulsão do goleiro Pumpido e Mario Videla diminuiu mesmo diante do jovem Sergio Goycochea (que acertou o canto, vale ressaltar). O maestro Borghi, o primeiro rotulado de “novo Maradona” e único a rivalizar com Dieguito em idolatria no Argentinos (entenda), fez depois grande jogada: passou por um e canetou Ruggeri para cruzar a Carlos Ereros, de peixinho, renovar as emoções no Monumental. A partir daí, o River respondia, o Argentinos dava o troco. Amuchástegui, também de cabeça, após rebote do travessão, assinalou o 4-2 parcial, em lance que gerou muita reclamação visitante no sentido de que a bola não teria entrado. Amuchástegui, em contra-ataque fulminante, quase matou a partida, driblando o goleiro mas tendo o arremate salvo quase em cima da linha por Sergio Batista.

Videla diminuiu, cabeceando cruzamento de Borghi por entre as pernas de Goycochea, que já demonstrava ser mais confiável em pênaltis. Amuchástegui quase fez o quinto em linda cobertura contra a saída furiosa de Vidallé, que voltou a arriscar um avanço em dividida com Francescoli. O uruguaio levou a melhor e anotou o 5-3, culminando bela jogada: Amuchástegui o deixara livre após receber passe de letra de Morresi. Videla, então, fez de pênalti (dessa vez deslocando Goycochea) seu terceiro gol no jogo. Não pôde evitar a derrota de 5-4, mas brindou o público com um dos jogos de melhor nível já ocorridos na Argentina. O Argentinos Jrs havia passado o bastão. Mas a muito custo. E, passados aqueles mágicos 90 minutos, não desistiu de retoma-lo…

Aquelas duas equipes duelariam pelo triangular-semifinal da Libertadores. Foram necessários três jogos, após aquele abusado Bicho ter feito um 2-0 em pleno Monumental na última rodada – a classificação ficou com um Millo após um 0-0 depois de prorrogação em campo neutro apenas em razão do melhor saldo de gols no triangular. Se há 30 anos era difícil imaginar que River e Argentinos ainda trariam tanta emoção, também não se apostaria que cerca de duas semanas depois a Banda Roja, frente a homens trajados de vermelho, arrancaria outro histórico 5-4. “Pensava que um jogo assim não se daria novamente nem em dez anos. E se repetiu”, declararia o técnico Veira. Em quatorze dias, contaremos essa outra história, ainda mais épica.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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