Originalmente publicado nos 25 anos, em 7 de junho de 2017, revisto, ampliado e atualizado
Entre 1991 e 1994, o Barcelona conseguiu sua primeira Liga dos Campeões e sua maior sequência de títulos espanhóis, quatro, algo não alcançado nem nos tempos de Ronaldinho e Messi. O elenco blaugrana da época foi então apelidado de Dream Team. Algo desmistificado pela revista inglesa FourFourTwo, em 2009: ele não seria o melhor elenco da história culé, mas talvez “o de mais sorte na história. O Barça venceu a final de três dos quatro títulos da Liga mais pelo demérito do adversário do que pelo próprio brilho”. Os brasileiros sabem que o Deportivo La Coruña de Bebeto e Mauro Silva só não saiu campeão em 1994 por perder um pênalti nos minutos finais. Menos lembrado é que, nos dois torneios anteriores, o título seria madridista não fosse derrotas na última rodada em visitas ao modesto Tenerife. Que era cheio de argentinos. O primeiro Tenerifazo faz hoje 30 anos.
A temporada 2016-17 foi decidida só na última rodada e, por se dar nos 25 anos da primeira daquelas zebras, também ajudou a rememora-la: há cinco anos, o Barcelona precisava vencer e torcer por um tropeço fora de casa do Real Madrid para o Málaga. Algo improvável, tamanha a discrepância cada vez maior entre as duas superpotências espanholas em relação aos times nanicos (e mesmo aos médios), mas os madridistas mais velhos chegaram a seentir uma pulga atrás da orelha sem ser Messi. Pois cenário parecido foi vivido nas temporadas 1991-92 e de 1992-93, ambas contra o Tenerife. Os blancos eram líderes na última rodada, mas perderam para a equipe das Ilhas Canárias enquanto o Barcelona vencia seus compromissos e superava os rivais para abocanhar La Liga.
O Tenerife, historicamente clube das divisões inferiores espanholas, vivia seu auge. Dentre as estrelas, duas bandeiras do próprio Real Madrid: uma do passado, o ex-atacante Jorge Valdano, agora técnico; e uma do futuro, o volante Fernando Redondo, que completara 23 anos na véspera do primeiro Tenerifazo e que seria enfim contratado pelos madrilenhos em 1994 (junto de Valdano, que viria a treinar o ex-clube). Além deles, o elenco tinha o auxiliar Ángel Cappa, os atacantes Oscar Dertycia e Juan Antonio Pizzi e o meia Ezequiel Castillo. Pizzi era ex-Rosario Central, enquanto Redondo, Dertycia e Castillo despontaram no Argentinos Jrs.
Na era pré-Lei Bosman, só três não-espanhóis podiam jogar por vez, o que forçava um rodízio entre o quarteto (o italiano Pier, crescido em Tenerife, tinha nacionalidade espanhola e se livrava da regra). A colônia argentina se formara já em 1991, com Redondo e Gerardo “Tata” Martino, que logo voltou ao seu Newell’s. Antes de Valdano, o técnico era o também argentino Jorge Solari (tio de Santiago Solari, futuro jogador de destaque nos merengues). Anos depois, esses protagonistas relembraram com humor a situação em diversas declarações à revista El Gráfico.
Dertycia, um outrora cabeludo que ficou facilmente reconhecível em campo pela perda de pelos até nas sobrancelhas (“foi um processo doloroso e triste. Passei de ter cabelo e não ter cabelo pelos nervos. Me faltavam os amigos, a família, e todo esse estresse de nervos me provocou uma alopecia universal, com a perda total de pelo”), exaltou: “em Madrid, ainda se lembram. Me transformei em uma espécie de carrasco do Real com a camisa do Tenerife. Lhes fiz gols nas últimas rodadas e o Barcelona terminou saindo campeão. A ilha estava revolucionada. A dupla era Dertycia-Pizzi e nos ia muito bem. Ainda há uma peña em Tenerife com meu nome”.
Redondo chegaria à seleção ainda vindo do Tenerife. Pizzi, por sua vez, foi talvez o argentino de mais sucesso. Afinal, na temporada 1995-96, ainda nas Canárias, ele tornou-se o único jogador do clube a ser artilheiro da elite espanhola. Também é o maior artilheiro da história do clube. Na época, ele já defendia, desde o segundo semestre de 1994, a seleção da Espanha (com a qual iria à Copa de 1998). Naturalizou-se em reação a, diferentemente de Redondo, jamais receber oportunidades da Argentina – chegaria inclusive a marcar gol na Albiceleste em amistoso em 1995, anos antes de batê-la treinando o Chile na Copa América Centenário. Declarou o seguinte em 2011:
“Foi incrível. Na primeira vez, nós brigávamos para nos salvarmos do rebaixamento. Pobre Jorge (Valdano), estava no meio de todas as conversas por ser um símbolo do Real Madrid. Se eles ganhassem, eram campeões. Venciam por 2-0, nos parecia impossível virar, e terminamos conseguindo. Ganhamos de 3-2 e o Barcelona foi campeão por um ponto”.
Como o desenrolar da partida sugere, drama não faltou. Terminou punindo três grandes jogadores que estavam no Real: Gheorghe Hagi, autor de um gol e uma assistência, e Robert Prosinečki ficaram sem títulos lá e acabaram rotulados como jogadores de seleção e de times periféricos do futebol (ainda que ambos também não tenham vingado ao virarem a casaca, pois depois iriam ao Barcelona). Ainda antes da primeira meia hora de jogo, Hagi, em um longo petardo de sua canhota maradoniana, ampliou de falta o placar aberto fora de casa por um testaço do zagueiro-artilheiro Fernando Hierro (após cruzamento do romeno). O outro prejudicado foi o brasileiro Ricardo Rocha, que desviou para as próprias redes um cruzamento de Felipe, possibilitando o empate adversário.
O Tenerife descontara ainda no primeiro tempo em bela jogada individual de Quique Estebaranz, que bailou contra diversos merengues antes de concluir rasteiro de fora da área. Os madridistas não deixaram de culpar a arbitragem de Raúl García de Loza (e uma suposta mala preta do Barcelona no valor de 21 milhões de pesetas): ainda com o jogo em 2-1, o juiz anulou um gol de Luis Milla e expulsou Francisco Villaroya. Logo no minuto seguinte ao gol contra de Ricardo Rocha (que já bastava para o Barça ser campeão), a virada veio com um erro grotesco da defesa madrilenha: Chendo recuou de longe e pelo alto. O goleiro Francisco Buyo precisou se esticar para evitar por cobertura um outro gol contra. A bola sobrou livre para Pier, a galope. Eram 33 do segundo tempo.
Paralelamente, o Barcelona (que cerca de três semanas antes garantia seu primeiro título na Liga dos Campeões, ganhando “uma final terrível na prorrogação”, naquelas palavras da FourFourTwo) vencia tranquilamente em casa o Athletic de Bilbao por 2-0. Na mesma ocasião em 2011, Pizzi relembrou sobre a temporada seguinte que “quando com o Tenerife fomos ao Camp Nou, o estádio nos aplaudiu de pé e sacudiram lenços brancos. O Barça nos fez uma pequena homenagem e presentearam o presidente do Tenerife com uma insígnia de ouro (…). Quando fomos jogar no Bernabéu contra o Madrid, no torneio seguinte ao que lhes tiramos a primeira Liga, nos queriam matar a todos, iam por vingança, meteram 115 mil pessoas, era um caldeirão”.
Nesse jogo na capital espanhola pelo primeiro turno da temporada 1992-93, os merengues revidaram com juros: 3-0, com dois gols do chileno Iván Zamorano. Mas…
“Me lembro que, na pré-temporada, especulávamos e dizíamos: ‘nos vai calhar o Real Madrid de novo na última rodada’. Não, que não nos calhe. E pá, escutamos o sorteio e de novo o Madrid na última. E aconteceu exatamente o mesmo, eles chegaram líderes na última rodada, nós brigávamos para entrar na Copa da UEFA, ganhamos e o Barcelona de Cruijff outra vez deu a volta olímpica por um ponto. A diferença foi que nessa segunda vez fomos muito superiores a eles em todo o jogo e lhe ganhamos por 2-0”, destacou Pizzi. Ambos os gols do Tenerifazo de 1993 foram assinalados ainda no primeiro tempo, com duas assistências certeiras de Castillo para cabeceios fulminantes. Na primeira, ajeitando de cabeça para o compatriota Dertycia; na segunda, em cruzamento pela esquerda para Chano.
Dertycia chegou a concluir um lindo sem-pulo para fora e servir de calcanhar para pôr Castillo na cara do gol. Mas o placar não sugere domínio total na primeira etapa. E o Real Madrid continuaria a reclamar da arbitragem, agora de Celino Gracia Redondo: pouco antes do segundo gol, Zamorano teria sido derrubado duas vezes na área pelo goleiro Agustín. E nos acréscimos, a mão de Chano bloqueou chute de Hierro. Três pênaltis não assinalados… já no segundo tempo, foi a vez de cada parte reclamar outros pênaltis. O Tenerife chiou por um de Hierro em Felipe. Depois foi a vez do madridista Míchel cair na grande área. Ao fim, Zamorano chegou a levar cartão vermelho direto. Novamente, choro para o time de Luis Enrique. Que na época era o Real Madrid…
Diferentemente de Redondo, Pizzi acabaria contratado pelo rival madridista, indo ao Barcelona para ser um útil reserva de Ronaldo na temporada 1996-97; a revista El Gráfico chegou a brincar com ele, indagando se ele chegou à Catalunha já como um ídolo de antemão. Pizzi riu, mas ressalvou que ganhou o carinho blaugrana também por méritos próprios no novo clube, destacando seu gol da vitória no finalzinho sobre o Atlético de Madrid em uma virada sensacional na campanha campeã da Copa do Rei naquela temporada (o Atleti, que na temporada anterior havia vencido tanto o campeonato como a copa, vencia por 3-0 e os catalães impuseram um 5-4).
O assistente Cappa, por sua vez, pontuou em 2009 que “vivemos como uma felicidade absoluta, sempre que alguém ganha está contente. Além disso, na segunda vez entramos na Copa da UEFA enquanto o Sevilla de Maradona, Simeone, Šuker e Bilardo ficou fora. Valdano também estava feliz da vida, não tinha nada a ver com seu passado em Madrid”.
A sexta colocação na temporada 1992-93, responsável por classificar o Tenerife à Copa da UEFA, ainda é a melhor que o clube já conseguiu na elite. “Uma vez por ano, vou à Espanha ver amigos. Aquele Tenerife fez história. Na Argentina, porque não era habitual que houvesse tantos compatriotas jogando no exterior, e menos habitual que estivessem na mesma equipe. Aqui nos apadrinharam, porque jogávamos bem e obtínhamos resultados. Na Espanha, marcamos uma época justamente por isso, todos lembram daquele Tenerife, porque estava acostumado a brigar na parte de baixo e de repente apareceu brigando por cima e com um grande futebol”, destacou Pizzi.
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