“Eu casualmente nasci em um bairro chamado de Parque de los Patricios, por isso sou simpatizante e torcedor do Huracán. Me criei praticamente na (esquina) Chiclana e Deán Funes”
“Não sei que merda querias fazer. Queres sair campeão da vagina da tua irmã!”
“A lembrança desse dia é permanente, só se irá quando o Gimnasia for campeão. (…) Nessa noite fui caminhando do campo, porque morava perto e não encontrava ninguém da minha família”
As três frases acima foram ditas com décadas de diferença, mas se relacionam com o ocorrido há exatos 25 anos. Nada a ver com o gol de barriga de Renato Gaúcho pelo Fluminense no Flamengo, que aconteceu na mesma data (ou com a zebra África do Sul batendo na véspera a Nova Zelândia no Mundial de Rúgbi). Mas igualmente envolvia decisão para outro ex-clube de um ídolo Fla-Flu, o atacante Narciso Doval. A primeira frase foi proferida em 1970 por um grande amigo dele, Héctor Veira, então um meia-esquerda do Huracán – veja aos 3min35 do vídeo abaixo. Foi justamente Veira quem convencera Doval a jogar também no Huracán, em 1971, aliás. Ironias históricas de quem ficaria marcado como a figura mais querida da história do rival San Lorenzo, muito por conta da conquista alcançada naquele 25 de junho de 1995.
Mas, na época do vídeo logo abaixo, Veira havia acabado de chegar ao clube do bairro natal após anos destacando-se ao lado de Doval pelos azulgranas. Com o tempo, se reaproximou do ex-clube: voltou ao San Lorenzo em 1973 e colecionou passagens como técnico lá a partir da década seguinte. Uma primeira experiência treinando-o, ainda como interino, veio em 1980. Era tão carismático que, já trabalhando no oponente Banfield, foi Veira o treinador carregado pela eufórica torcida cuerva na volta olímpica da segunda divisão em 1982, e não o real técnico sanlorencista de então, José Yudica. Sem surpresas, ele foi logo reincorporado como substituto de Yudica e esteve perto de fazer um clube já sem estádio próprio quase emendar um raríssimo bicampeonato de segunda divisão com primeira: o San Lorenzo ficou só 1 ponto abaixo do campeão Independiente no Metropolitano de 1983.
Com essa credencial, aquele jovem treinador viria a ser técnico que pôde levar o River a seu primeiro título na Libertadores e ao único Mundial celebrado pelos millonarios, no dourado 1986 da equipe de Núñez. Surpreendentemente, El Bambino não teve seu contrato renovado; a presidência riverplatense preferiu apostar em Carlos Griguol, que em paralelo coordenava o auge do modesto Ferro Carril Oeste – que, entre 1981 e 1984, comemorou seus dois únicos títulos e ainda foi três vezes vice; o bi veio inclusive com um 3-0 em final no Monumental sobre o River ainda treinado pelo antecessor de Veira (Luis Cubilla). Veira voltaria ao San Lorenzo e levaria aquele gigante de precária infra-estrutura às semifinais da Libertadores de 1988, o mais perto do título que o clube chegou até 2014.
Quando o comandante foi preso acusado de abuso sexual de um menor (não pôde ir ao velório do amigo Doval em 1991 por estar na cadeia), quem lhe abriu as portas em sua soltura não foi o River e sim o Sanloré. Veira, que sempre alegou inocência, retomaria gradualmente seu prestígio a ponto de ser sua a entrevista escolhida para ser publicada na edição de 94 anos da revista El Gráfico, quando concorreu com outros dois ídolos sanlorencistas: o artilheiro-mor José Sanfilippo e o folclórico Loco Abreu. Era 2013 e a versão dada já foi outra: “os garotos do bar da Chiclana e Deán Funes nos juntávamos para ver o Huracán e o San Lorenzo quando jogavam de mandante, um domingo cada um, porque não havia grana para viajar. Na infância não estávamos tão definidos”. Ele se preocupou ainda em contextualizar como eram outros aqueles tempos: “antes, era diferente. Eu metia o gol do San Lorenzo no clássico e à noite ia jogar bilhar na sede do Huracán (…). Na mesma noite da partida! E não acontecia nada”.
Já a segunda frase que abre a matéria faz hoje 25 anos e uma semana: foi disparada em 18 de junho de 1995 por aquele tal Carlos Griguol, por sinal. Ele tentava repetir suas façanhas dos tempos de Ferro no eterno azarado Gimnasia LP, cujo único título argentino na elite data de 1929 e, o que é pior, nem reconhecido por todos é: ainda é comum mídia e torcedores considerarem apenas as taças do profissionalismo, inaugurado em 1931. Na ocasião da frase, Gimnasia vencia justamente o Ferro fora de casa na penúltima rodada. O que não impediu a velha raposa Griguol de se enfurecer com seu atleta Favio Fernández, expulso tolamente a sete minutos do fim.
A última frase foi uma resposta de Guillermo Barros Schelotto à indagação sobre o dia mais triste de sua carreira, em entrevista com a revista El Gráfico em 2010. “Hoje é justamente 25 de junho e se completam 15 anos daquele campeonato perdido com o Independiente. A lembrança desse dia é permanente, só irá embora quando o Gimnasia for campeão”, começava a resposta do Mellizo, atacante daquele elenco e fanático pelo clube desde a infância: seu pai foi presidente gimnasista. Curiosamente, Guille chegaria a ser sondado pelo San Lorenzo no ano seguinte, chegando a vestir com empolgação o manto do clube que rendera-lhe a principal mágoa da sua trajetória de jogador.
Os dois concorrentes haviam demonstrado suas cartas ainda em 1994. Em janeiro daquele ano, o Gimnasia conseguiu seu título profissional mais expressivo, a Copa Centenário da AFA, com Guillermo inclusive marcando um dos gols nos 3-1 da final sobre o River. Já o San Lorenzo, que não era campeão desde 1974, voltava a se colocar nas cabeças. No Apertura, foi o vice-campeão, ainda que a distantes cinco pontos de um River (pela única vez) invicto na última temporada em que a vitória ainda valia 2 pontos e não 3 – regra ainda válida para aquele Clausura 1995, portanto. Vale ressaltar que se a vitória já valesse 3, o San Lorenzo somaria 45 pontos contra 41 do Lobo, uma boa ideia de como o destino da taça foi justíssimo há 25 anos. Mas também foi cruel com os anseios do vice, que ainda teve de aguentar o fato de o rival Estudiantes ter retornado à primeira divisão semanas antes e assim terminar rindo melhor.
Contra o time dos gêmeos Guillermo e Gustavo Barros Schelotto, o San Lorenzo unia coisa bem oposta: no meio-campo, Silas, um Atleta de Cristo, fazia dupla com Roberto Monserrat, um sujeito apelidado de El Diablo. Atrás deles, um nascido em cidade chamada Monte Cristo, o volante Fernando Galetto, apelidado de El Conde também por ter técnica refinada que lhe rendia comparações a Fernando Redondo. Seria avaliado como o melhor em campo no jogo do título. Sua dupla era com o raçudo Carlos Netto. À exceção óbvia de Silas, os outros três acabaram todos convocados à seleção argentina.
Mas se fosse argentino, Silas iria também: o ex-Menudo do Morumbi teve no país vizinho (ainda respirando uma enganosa prosperidade econômica enquanto não vinham os efeitos reversos da paridade de 1 peso para 1 dólar imposta pelo governo Menem; na bonança, o ídolo cruzeirense Roberto Gaúcho iria ao Huracán naquele 1995 e Ricardo Rocha, ao Newells em 1996) um prestígio muito maior que no Brasil. Outros destaques campeões incluíam o líbero Oscar Ruggeri. El Cabezón já havia se tornado o único usado na seleção pelos três grandes de Buenos Aires, estreando por ela ainda nos tempos de Boca e jogando a Copa de 1986 já pelo River. Ele, que jogara a Copa de 1994 como sanlorencista, passava a ser também o único campeão nos três. O volante Norberto Ortega Sánchez, ao contrário de Ruggeri, já era do San Lorenzo nos complicados anos 80, integrando aquele elenco semifinalista de Libertadores apelidado de Camboyanos, que estoicamente davam tudo de si mesmo com salários atrasados e sem estádio próprio.
Ortega Sánchez saíra após aquela eliminação continental e acabara de voltar. Embora não tenha sido titular absoluto por “culpa” de Galetto, naturalmente ficou mais ídolo do que já era (era com ele que Veira se abraçava no vídeo final dessa nota). Outro 12º jogador foi o experiente atacante Esteban González, raro homem de sucesso nos rivais Ferro Carril Oeste – é o único campeão por ambos na primeira divisão. Além do gol do título, fez outros sete, dos quais o mais emocionante veio em circunstâncias inicialmente parecidas: saindo do banco para marcar no finzinho o único gol da partida. Foi contra o Belgrano na sexta rodada, com o detalhe adicional de que havia velado o pai na véspera, mas insistira em ser relacionado àquela partida para então comemorar às lágrimas. Tanto com as suas como com as alheias, ante a emoção geral.
Oscar Passet não dava confiança nas saídas de gol, mas entre as traves sim. No Apertura 1994, conseguiu um recorde de tempo sem tomar gols para um goleiro do San Lorenzo, 731 minutos. No Clausura, onde jogou todos os minutos da campanha, recebeu apenas doze gols. El Flaco Passet foi inclusive outro a garantir aquele 1-0 sobre o Belgrano, pois pegou um pênalti nesse duelo. Seria contemplado com alguns testes pela seleção, assim como o artilheiro dos campeões, o potente Claudio Biaggio. El Pampa não era bem um goleador, mas atravessava ótima fase, marcando 9 – muitos deles especialmente cruciais, únicos de cada jogo.
Curiosamente, a primeira rodada opôs na nova casa sanlorencista (o Nuevo Gasómetro, inaugurado em 1993, encerrando 14 anos de aluguéis em campos alheios) os dois concorrentes. Monserrat estava lesionado e seu lugar foi ocupado por Claudio Rivadero. Sorte de campeão: ele próprio marcou o gol dos mandantes, embora o jogo só ficasse no 1-1. Na segunda rodada, derrota para o Argentinos Jrs enquanto o Gimnasia sapecava um 4-0 no Belgrano. Foi só na terceira rodada que o futuro campeão enfim ganhou, um 2-0 com novo gol do mesmo Rivadero em chutaço de longa distância e um de Silas. Vieram então etapas seguidas em Avellaneda, com Biaggio brilhando em ambas: fez o do sofrido 1-0 no forte Independiente da época (recém-campeão da Supercopa com um futebol encantador) e outro em um 2-1 no Racing, que era o time treinado por Maradona na época.
Engrenado, o San Lorenzo ganhou a terceira seguida naquela emocionante tarde do Gallego González contra o Belgrano. O Gimnasia, do seu lado, havia resistido bem ao River no Monumental (1-1), mas só empatou em La Plata com o outro Gimnasia (de Jujuy). E, enquanto o San Lorenzo vencia fora de casa o Racing, os gêmeos Barros Schelotto perdiam para o Banfield. Só que o River brecou os azulgranas com um 3-2 enquanto o Gimnasia fazia 3-1 fora de casa no encardido Mandiyú de Corrientes.
Atrás do prejuízo, Ruggeri e González deram ao San Lorenzo a vitória sobre o Gimnasia de Jujuy, mas o de La Plata fez o suficiente para bater o Deportivo Español. A isso seguiu-se a primeira grande exibição do campeão, 3-0 fora de casa no Banfield, com Monserrat, Silas e González surrando o time do jovem Javier Zanetti. Ainda não bastava: 1-0 para o Lobo, também fora, no Platense. O Sanloré sapecou outro 3-0 em seguida, no Newell’s, com Silas deixando o seu novamente e El Pampa Biaggio, dois. Mas nada do Gimnasia arredar: ganhou por 2-1 do Huracán. A rodada seguinte deu aos postulantes vitórias fora, com González e Monserrat fazendo no 2-1 no Mandiyú, mesmo placar dos triperos sobre o Talleres.
Biaggio garantiu o suado 1-0 no Deportivo Español enquanto o Gimnasia, em casa, não saiu do zero com o Boca. Mas a folga não continuou para os cuervos: um novo 1-0 deveria ter-lhes vindo sobre o Platense, com González concluindo golaço coletivo após quatro passes aéreos. Mas o oponente empatou no fim, enquanto Guillermo Barros Schelotto fazia os dois em um 2-1 fora de casa no grande Vélez da época. Enervado, o Ciclón foi impiedoso no clássico com o Huracán: 3-0 com dois de Biaggio. O Gimnasia fez o 1-0 básico no Lanús, mas não superou o 1-1 com o Rosario Central enquanto o Sanloré fazia 3-1 no Talleres em Córdoba com destaque a González, autor de dois gols.
Contra o Boca, a dupla Biaggio e Arbarello fez as honras da casa. Na cola, o Gimnasia ganhou do Racing por 2-1. Então veio a antepenúltima rodada: o San Lorenzo perdeu para o Vélez (um duelo que começava a ganhar aura de clássico) enquanto Sergio Dopazo, com três pênaltis, garantiu vitória gimnasista sobre o Argentinos Jrs e a troca na liderança – gerando protestos públicos da cartolagem azulgrana pelos três penais serem apitados após os 30 minutos do segundo tempo; o presidente Fernando Miele teria então exigido especificamente o árbitro Aníbal Hay para o compromisso seguinte do seu time. A penúltima rodada foi nervosa. Netto, por sinal de pênalti, fez o único gol da partida sanlorencista com o Lanús. Esse foi o lado meio cheio do copo, pois havia o meio vazio: o mesmo Netto teve outro pênalti para cobrar naquele dia, mas mandou-o para cima. Enquanto isso, os de La Plata, fora de casa, venceram o Ferro naquele jogo que rendeu os xingamentos do técnico Griguol, nervoso demais para quem parecia ter a mão na taça.
Veio a última rodada. O Gimnasia receberia um Independiente misto e teoricamente sem pretensões a não ser em nome de atrapalhar um clube amigo do Racing – o Rojo vinha em transição de ciclo, sob desmanche após ter erguido a Recopa em abril. O goleiro, por exemplo, não seria Luis Islas e sim o equatoriano Carlos Morales, falecido três dias atrás por um infarto diante de tanta pressão contra sua gestão de governador de Guayaquil contra a pandemia de Covid-10. Antes de entrar para a política, ele foi dirigente do Barcelona local, onde conviveu com o então goleiro Gastón Sessa, cuja paixão pelo Gimnasia o fez estar nas arquibancadas do Bosque gimnasista embora defendesse justamente o rival Estudiantes. Sessa contaria em 2010 que Morales confessou-lhe ter ganho uma BMW de Marcelo Tinelli, o Faustão argentino e notório torcedor cuervo. Sempre suspeitou-se de mala preta como o grande incentivo que os reservas do Independiente tiveram naquele dia.
Os azulgranas precisariam vencer fora o Central e torcer pelo tropeço do líder. “Venham todos a Rosario, porque o Gimnasia tem que jogar contra um grande, que é o Independiente”, implorou Veira na televisão. “O torcedor do San Lorenzo tem que acompanhar o time. Tem que ir a Rosario com a família, com fé, com esperança. Se o título vier, bárbaro. Se não, tem que reconhecer a equipe”. O apelo deu resultado, com caravanas de dezenas de milhares cuervos no Gigante de Arroyito (tendo apoio dos próprios torcedores do Rosario Central, com quem mantinham tradicional amizade), algo relembrado hoje pelas mídias sociais. Uma multidão que, incluindo um jovem torcedor de nome Fabricio Coloccini, aplaudiu o volante Netto para reerguê-lo pelo pênalti desperdiçado; o problema é que ele voltaria a errar um pênalti – e a amizade do Central foi sentida, com nenhum colega se juntando na comemoração do goleiro auriazul Roberto Abbondanzieri.
Mas veio boa notícia de La Plata: no finzinho do primeiro tempo, um passe lento foi interceptado pelo Independiente, lembrando Toninho Cerezo contra a Itália em 1982. Em contra-ataque fulminante, a bola foi cruzada para Javier Mazzoni fazer, na narração de Marcelo Araujo, “gol do San Lorenzo de Almagro, o fez para Estudiantes: Javier Gustavo Mazzoni!”. Mazzoni era um atacante barrigudinho (seu apelido de La Chancha, comum na Argentina para homens assim, vinha daí) que só começaria a ganhar espaço com aquele desmanche vivido pelo Independiente, que no segundo semestre seria bi na Supercopa com um time que só mantinha um terço dos titulares campeões em 1994. Seria inclusive dele um dos gols do título sobre o Flamengo. O 1-0 do Independiente, aliado ao empate do Sanloré, já dava o título aos azulgranas – o regulamento da época não previa o tradicional jogo-desempate. Mas o técnico Veira preferiu não abusar das regras. Sabendo que não poderia contar uma partida inteira com o veterano González, o acionou no segundo tempo. “Eu sei que com ele tenho gols em qualquer momento e em qualquer circunstância”, afirmava.
Veira já havia fracassado em encerrar um jejum similar quando foi jogador do Corinthians, em 1976, e certamente não queria sentir asco ainda maior. Sei sofrimento acabou aos 32 do segundo tempo, com o Gallego subindo mais que o colega Biaggio para testar um escanteio. O homem que na primeira frase desse texto era huracanense agora se desmanchava pelo vizinho. Essa dualidade voltou à tona em 2008, quando tanto o San Lorenzo como o Huracán celebraram seus centenários. Foi ali que o Ciclón elegeu El Bambino de modo oficial como maior ídolo de sua história; além de ter sido um camisa 10 habilidoso ainda que irregular pela boemia nos anos 60 (aquela entrevista de 2013 à El Gráfico usou como título “ia do motel ao treino”, uma das declarações que ele deu), ele é o treinador com mais partidas e passagens pelo clube.
O Clarín, por sua vez, publicou naquele 2008 um livro sobre a história huracanense e não deixou de incluir Veira entre os cem maiores ídolos quemeros também. Em perfil que incluía essa outra declaração: “nasci Huracán, mas o San Lorenzo se meteu na minha alma”. O vídeo abaixo, daquele gol de González, demonstra bem isso. Para a El Gráfico, a imagem de capa da edição pós-título se resumiu ao rosto do treinador, também o homem mais destacado na capa da edição especial lançada em 2012 sobre os cem maiores ídolos cuervos.
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