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25 anos de um acesso espantoso: Deportivo Mandiyú, de Corrientes

Em pé: Quiroga, Daniel Rodríguez, Barrios, Cáceres, Manis e Martinez Tapí. agachados: Urbina, Oddine, Cañete, Basualdo e Attadia
Em pé: Quiroga, Daniel Rodríguez, Barrios, Cáceres, Manis e Martínez Tapí. agachados: Urbina, Oddine, Cañete, Basualdo e Attadia

Aqueles que acompanham o futebol argentino há muito tempo têm na memória a imagem de times históricos, que hoje quase ninguém sabe onde eles estão. Nesse grupo destacam-se o Chaco For Ever, Central Córdoba de Santiago del Estero, Guaraní Antonio Franco, entre outros. Um deles chama a atenção como poucos: o Deportivo Mandiyú, de Corrientes. E um fato marcante é verdadeiro divisor de águas na história do Algodonero: a conquista da B Nacional de 1987/88 e o consequente acesso à elite argentina. Este feito completa hoje 25 anos.

Antes do feito, a história: do surgimento e da caminhada

O Mandiyú nasceu em 1952, por iniciativa dos funcionários de uma fábrica têxtil, em conjunto com Eduardo Seferian, o dono da fábrica, que se prestava à confecção e que se chamava Tipotí. Por esta razão, o primeiro nome da equipe foi Club Deportivo Tipotí. Como denominações comerciais não eram toleradas, a jovem agremiação passou a ser chamada de Deportivo Mandiyú, nome que, em guarani, significa simplesmente “algodão”.

Após militar por décadas nas ligas correntinhas, em 1985 chega à B Nacional, a segunda divisão argentina. Este feito, por si só, já era algo assombroso para o futebol da distante Corrientes, mais próxima de Assunção, no Paraguai, do que de Buenos Aires, palco em que desfilavam gigantes do futebol, os quais a hinchada correntina sonhava em ver de perto.

Na primeira temporada, a de 86/87, a equipe ficou em sétimo lugar e foi eliminada pelo Huracán, no primeiro confronto do Torneio Reducido. O Reducido previa mais uma promoção à elite, além daquela já conseguida pelo então campeão, o Club Deportivo Armenio, de Ingeniero Maschwitz, tratado aqui. A campanha foi histórica e assentou de vez as bases do Algodonero no cenário do futebol do interior. Só para se ter uma ideia, quase todos apostavam que a esquadra correntina sofreria horrores na segundona e que, por isso, retornaria ao fim da temporada para o “seu devido lugar”.

O título da B Nacional de 1987/88

Na temporada seguinte, o pragmático técnico Don Juan Manuel Guerra resolveu montar uma equipe extremamente competitiva, baseada numa forte marcação e num meio-campo destruidor e símbolo do futebol de rua que ele tanto conhecia. Mais tarde, esse meio-campo foi tido como símbolo de algo mais: como um retrato bem fiel do velho futebol sul-americano dos anos sessenta, responsável pela recusa dos amedrontados europeus de seguirem disputando o Mundial de Clubes por aqui, onde muitos de seus jogadores iam direto para o hospital, ao retornarem ao velho mundo. E onde árbitro de futebol considerava seus familiares e até sua própria vida, quando trinava o apito dentro de campo.

Don Guerra, uma lenda do ascenso
Don Guerra, uma lenda do ascenso

Neste sentido, Don Manuel foi atrás dos melhores atores para vestirem a camisa algodonera: os paraguaios e, principalmente, os uruguaios, até porque os carboneros de Montevidéu simbolizavam como poucos o futebol que Don Guerra queria no Mandiyú. Assim, sete gladiadores eram charruas, quatro da nação guarani. Na primeira linha de quatro, bem recuada e protegendo a área de Óscar Manis, formavam: Urbina, Domingo “La Bomba” Cáceres, Barrios e Martínez Tapi. Apenas Barrios era argentino.

No meio, Elio Rodríguez, Basualdo e Horacio Attadia faziam às vezes de “operários do joelho alheio” e de competentes capilares que faziam a pelota chegar ao talentoso guarani Adolfino “El Fino” Cañete, o mágico da meia cancha algodonera e um assombro de enganche; de certa forma, com uma fama bem menor do que merecia na história do futebol. Com uma capacidade ímpar de carimbar a pelota, Cañete a fazia rapidamente chegar ao ataque, formado por Sergio “El Gol” Oddine e Daniel “El Coquito” Rodríguez, dois matadores charruas com 18 e 14 gols respectivamente na competição.

"El Monstruo" Rodríguez
“El Monstruo” Rodríguez

Vale lembrar que Pepe Basualdo seria vice-campeão mundial pela Argentina, em 90 (o outro único jogador que a seleção usou do Mandiyú foi Dante Unali, contra o Brasil, em 1991). Além disso, que Elio “El Monstruo” Rodríguez não era apenas o homem de confiança de Don Guerra na esquadra. O volante central era o desfile perfeito do futebol dos marcadores uruguaios dos anos 60; doava o próprio sangue do corpo para sua equipe, da mesma forma que não se incomodava nem um pouco em retirar um pouco de sangue do corpo de seus rivais. Contudo, tinha algo de talentoso no arremate, assim como um bom aproveitamento no cabeceio, como o demonstra o majestoso gol que faria em José Luís Chilavert, na partida de ida pela Liguilla pré-Libertadores, contra o San Lorenzo.

Ninguém apostava um vintém no Mandiyú. Só que sua hinchada não queria nem saber dessa história. Na primeira partida, contra o Tigre, na cancha do vizinho Huracán Corrientes, o Algodonero perdeu por 1×0. Disto resultou uma confusão daquelas, provocada pelos seus torcedores. O quebra-quebra foi geral e sinalizou a impaciência da torcida local com os maus resultados. O provável disso é que a confusão resultou justamente da convicção da hinchada acerca do poderio de sua equipe. Por causa disso, ou não, o fato é que o Mandiyú perderia apenas três vezes mais, ao longo das 42 rodadas da B Nacional.

Na partida seguinte, a derrota só não se repetiu porque Martínez Tapi irrompeu da lateral-esquerda ao ataque e empatou o jogo contra o Atlético, em Tucumán. Na semana seguinte, o Algodonero recebeu o Gimnasia y Esgrima de Jujuy e já com uma baita pressão pela vitória. Novamente na abarrotada cancha do vizinho correntino, desta vez Pablo Quiroga e Oddine seriam os nomes dos dois gols que garantiram a primeira vitória do Mandiyú naquela segundona. Desta forma, a confusão programada foi trocada pela comemoração, além de ter sido o cachimbo aceso que selou de vez a paz entre torcedores e equipe. Surgia o mito do futebol correntino.

A partir da 30ª rodada, Quilmes, Cipolletti e Mandiyú disputavam cabeça a cabeça o primeiro posto da competição. A partir daí, a instabilidade do ótimo conjunto de Río Negro deixou apenas com que Cervecero e Algodonero lutassem pelo caneco. A equipe de Don Guerra não podia sequer respirar, pois a diferença para o conjunto do Sul por vezes ficava em um ponto. Nem mesmo a goleada de 7×0, no Maipú de Mendoza, deu ao Mandiyú a pecha de favorito absoluto ao título. Na mesma rodada, o Quilmes vencia o Sportivo Italiano e mantinha a vantagem em dois pontos.

Na 36ª rodada, o Quilmes foi a Pergamino e fez 3×1 no Douglas Haig. Já o Mandiyú tropeçou no Temperley, fora de casa, ao empatar em um gol. A diferença voltaria a dois pontos duas rodadas depois, quando a equipe do Sul apenas empatou em zero com o Huracán, em Parque Patricios, enquanto o conjunto de Don Guerra fez 2×1 no Italiano, em Ciudad Evita. Ambas as equipes triunfariam na rodada seguinte, em seus domínios; o Cervecero venceria o Lanús, por 1×0. Já o Algodonero sofreria horrores para fazer o mesmo placar sobre o Guaraní Antonio Franco.

Na rodada 40, o irônico é que justamente um dos rivais históricos do Mandiyú colocaria o caneco quase nas mãos dos correntinos. O Chaco For Ever derrotou o Quilmes por 2×1, em Resistencia, enquanto a brava equipe de Don Guerra visitaria o Lanús e arrancaria um empate sem gols. Assim, com a diferença pela primeira vez em três pontos, depois de muito tempo, bastaria ao conjunto correntino que empatasse fora de casa com o próprio Cervecero na penúltima rodada para ficar com o caneco e com o acesso à elite argentina.

Num Estádio Centenário de Quilmes absolutamente gelado, o Mandiyú jogou com o regulamento e deixou toda a pressão para o concorrente. O cotejo foi tenso e marcado por polêmicas, como a da expulsão de Oddine, aos 45 minutos do segundo tempo, e a dos intermináveis acréscimos do árbitro Ricardo Calabria.

Já no que foram os acréscimos “dos acréscimos”, uma bola sorrateira encontrou o ângulo de Roberto Medrán, que substituía Manis, e decretava já o triunfo quilmenho. Só que Medrán voou como um pássaro para espalmá-la e garantir o histórico triunfo do Deportivo Mandiyú. Os inúmeros fanáticos que viajaram mais de 1.000 quilômetros dividiram suas lágrimas com os jogadores e com o vitorioso técnico Don guerra. Gritos de “Mandiyú campeón, campeón” foram ouvidos pela primeira e última vez na história de um dos símbolos futebolísticos do interior da Argentina. Um assombro.

Depois do feito, a história…da decadência

Na época, o vencedor da B Nacional automaticamente disputaria a Liguilla pré-Libertadores. O conjunto de Don Guerra foi para duas partidas de morte com o San Lorenzo de Almagro. Na primeira, em Corrientes, os cuervos venciam por 1×0 até os 40 minutos do segundo tempo. Então, apareceu Elio “El Monstruo” Rodríguez para empatar a peleja. Em Buenos Aires, “El Coquito” Rodríguez deixaria os correntinos na frente do marcador, ao chegar às redes de Chilavert logo aos 19 minutos de jogo. Contudo, na segunda etapa, “La Bomba” Cáceres jogou a pelota contra suas próprias redes, em uma jogada infeliz. Nessa época, prevalecia a chamada ventaja deportiva e, com os dois empates, o conjunto de Boedo seguiria na disputa até alcançar às semifinais da Libertadores daquele ano.

O Mandiyú ficou na elite de 1988 até o ano de 1995, logrando resultados inesquecíveis e colocando Corrientes no mapa do futebol argentino. Dentre os resultados estão vitórias de 2×1 sobre o Boca Juniors, 3×0 no Independiente, 4×3 no Racing e 3×2 no San Lorenzo, atuando na cancha cuerva.

Em 1991, a equipe terminou o Clausura em 3º lugar, atrás do campeão Boca Juniors e do San Lorenzo, No Apertura, ficaria em sexto, mas somente a quatro pontos atrás do River, campeão do torneio. Só que nem tudo era flores. No final deste mesmo ano, Eduardo Seferian, o fundador do clube, em 52, já sinalizava que pretendia vendê-lo, pois estava afundado em dívidas. Dois anos depois, políticos ligados ao presidente argentino Carlos Menem viram a oportunidade de ganharem prestígio com situação e pagaram 2 milhões de dólares pelo Mandiyú. Era o começo do fim.

Maradona chegava no Algodonero, mas num péssimo momento
Maradona chegava no Algodonero, mas num péssimo momento. Goycochea aparece de vermelho

Em 1994, um projeto mal arquitetado colocava sob as mãos de Diego Maradona (suspenso por um ano e meio de jogar após o doping na Copa dos EUA) o comando da equipe. Filho de correntinos e de uma mãe torcedora do clube, Dieguito estreava na função de técnico justamente em um momento que sua vida pessoal ia de mal a pior. Trouxera o arqueiro Sergio Goycochea, que também fez feio no arco algodonero. A campanha do Mandiyú foi a pior em sua passagem pela elite. El Diez conseguiu menos de 9% dos pontos disputados na trágica campanha que fez a equipe ficar em penúltimo lugar. No Clausura seguinte, ficaria em 18º e seria rebaixado à B Nacional.

Completamente descapitalizado e afundado em dívidas, o clube foi desligado até da Liga Correntina de Futebol, deixou de existir, enquanto era o Huracán local quem chegava à elite – ver aqui. Em 1998, antigos dirigentes decidiram criar uma equipe, o Deportivo Textil, que depois teve acrescentado a seu nome a palavra “Mandiyú”. Já era uma outra equipe e pouco ou nada tinha a ver com o velho Algodonero. Em 2010, após uma grande batalha jurídica e de velhos pagamentos, o antigo clube foi refundado e colocado às disputas das ligas correntinas.

Em 2012, após vencer a principal liga local, foi convidado a participar do Argentino B. Só que a participação da equipe na competição foi tão ruim que a fez cair novamente para as ligas regionais de Corrientes. Alguma coisa já parecia fora de propósito. Os torcedores, por exemplo, ficaram completamente malucos por não saberem se deviam amor e fidelidade ao Textil Mandiyú ou ao velho Algodonero que ressurgia.

Hoje, o Deportivo Mandiyú é apenas um clube pequeno e com poucas semelhanças à assombrosa equipe de 1988. Porém sua torcida que foi abandonada à orfandade em 1995, e que se sentiu enganada com o aparecimento do Textil Mandiyú, pouco a pouco se acerca do clube e já lota as pequenas canchas por onde passa o Algodonero, tido em declaração de Juan Pablo Sorín (em um de seus comentários na ESPN nos jogos do River na segundona) como adversário dos mais duros nos tempos áureos do clube correntino.

O gigante que ainda segue adormecido nunca deixou de frequentar a imaginação de seus apaixonados torcedores e de muita gente que acompanhou o futebol argentino do final da década de 80 e início da seguinte, a de 90. Se o gigante voltar a acordar, isto vai ocorrer justamente pela força simbólica que o velho Algodonero tatuou na memória principalmente de seus torcedores: os “malucos” que um dia gritaram: “¡Mandiyú Campeón! ¡Mandiyú Campeón! ¡Mandiyú Campeón! ¡Mandiyú Campeón!… Sí, sí sí, gritelo correntino, Mandiyú está entre los grandes del fútbol argentino”.

Abaixo alguns vídeos:

Sob o comando de Dieguito, empate com o River, no Monumental

Triunfo sobre o Rojo, fora de casa

Sob o comando de Dieguito, derrota em casa para o Rosário Central

Joza Novalis

Mestre em Teoria Literária e Lit. Comparada na USP. Formado em Educação e Letras pela USP, é jornalista por opção e divide o tempo vendo futebol em geral e estudando o esporte bretão, especialmente o da Argentina. Entende futebol como um fenômeno popular e das torcidas. Já colaborou com diversos veículos esportivos.

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