Reinaldo Merlo: recordista de jogos no River, livrou o Racing da seca de 35 anos
Reinaldo Carlos Merlo, tão associado aos racinguistas no século XXI, com três passagens pelo clube de Avellaneda (e até mesmo pelo “xará” de Córdoba) e, sobretudo, pelo redentor título de 2001 da Academia, era antes um sinônimo de River. Afinal, o time de Núñez foi o único de uma carreira de quinze anos como jogador. Volante carregador de piano, registrou 562 partidas oficiais, sendo o único a superar o goleirão Amadeo Carrizo, que teve 543 em mais de vinte anos de Millo. E só não foi mais porque El Mostaza sofreu reiteradamente com concorrentes para a vaga. Ontem fez 70 anos um raro homem a ser queridíssimo em dois gigantes argentinos.
O recordista no River
O cabelo loiro em tons escuros rendeu ainda na infância o apelido único, que significa “O Mostarda”, ainda vaidosamente mantido na atualidade sob muita tintura no mesmo tom que o caracterizou. “Tinha 11 anos e integrava uma equipe [do bairro] de La Paternal. Estávamos disputando um campeonato no clube Villa Mitre e me viu Palomino, um homem que levava garotos ao River. Me disse se queria ir e aceitei imediatamente. Jogava de quê? De centroavante, habilidoso e tudo”, lembrou ele em depoimento à enciclopédia oficial do centenário riverplatense, de onde tiramos as aspas dessa nota. Confesso torcedor do San Lorenzo, seu ídolo maior, de fato, era José Sanfilippo, o maior artilheiro azulgrana: “eu era um camisa 9 de raça. Gostava de pisar na bola, buscar a área, meter gols. Isso foi durante três anos”. Em paralelo, ele já precisava contribuir no sustento do lar:
“Aos 13 anos, já havia aprendido a ganhar dinheiro. Pedi trabalho em uma oficina mecânica que estava ao lado da minha casa, na esquina da Paysandú e Añasco, no coração de La Paternal. Me deram e me lembro que ganhava muito pouco, ao redor de 200 pesos por semana. Mas era um dinheiro que tinha um valor bárbaro: significava minha primeira grana e como me custava muito ganha-la, cuidava bastante dela. Depois fui assistente em uma farmácia, logo trabalhei em uma fábrica de mosaicos da Avenida San Martín. Lindos tempos aqueles”. As atividades na base millonaria, por sua vez, já se direcionavam à nova função: “aos 14 anos, Peucelle me disse: ‘veja, jovem, você tem que ser meia. Tem muitas condições…’. A princípio, por ser muito garoto, não lhe dei muita bola”.
O tal Peucelle tinha mesmo faro para detectar quem servia como atacante: autor de gol na final da Copa de 1930, foi por sua aquisição em 1931 que o River seria apelidado de Millonario e, após pendurar as chuteiras, descobriu ninguém menos que Di Stéfano. Merlo reconheceu: “aqueles conselhos de Don Carlos me serviram muito. Sobretudo, quando Peucelle me insistia de que não devia correr tanto, que precisava me controlar e não me cansar saindo para qualquer lado. Nos primeiros tempos, não sabia correr em campo. Ia de um lado ao outro, me exigia inutilmente porque não tirava proveito de tanta correria. Depois, ao me dar conta, comecei a caminhar no terreno de jogo, a me mover melhor, com mais inteligência. Geralmente, me situava como volante esquerdo em times que jogavam com dois meias somente”.
Peucelle manteve-se nos trabalhos paralelos até 1968, quando começou a ser remunerado pelo River – em boa hora, pois seu pai enfartara e o adolescente logo virou o sustento da casa. A estreia no time adulto ainda tardou até a 3ª rodada do Torneio Nacional de 1969, em triunfo de 1-0 sobre o Estudiantes bicampeão da América. Sem ser campeão desde 1957, o Millo atravessava seu pior jejum histórico por melhores times que montasse. Os anos 60 vinham sendo particularmente infelizes exatamente por deixar-se escapar torneios que pareciam ganhos – como a Libertadores de 1966, perdida exatamente no dia em que Merlo completou 16 anos, quando uma vitória de 2-0 virou derrota de 4-2 para o Peñarol, rendendo o apelido pejorativo de Gallinas ao River.
Perdendo na reta final títulos para o Boca em 1962 e em 1965 e ao Independiente em 1963 (nos três casos, a partir de derrotas logo no Superclásico), o time já vinha de um bivice para times que jamais haviam sido campeões, perdendo o Nacional de 1968 para o Vélez e levando de 4-1 na decisão do Metropolitano de 1969 contra o Chacarita. O treinador Ángel Labruna, remanescente do último River campeão, de 1957, bancou Merlo: “comecei jogando na linha de volantes com El Turco Laraignée. Me mantive no primeiro time durante 17 jogos, incluindo aquela final com o Boca. Que amargura, por Deus”. Após um começo irregular, o River emendou uma série de vitórias que tornou-lhe candidato ao título. Merlo até marcou um raro gol, em 4-1 no San Lorenzo de Mar del Plata. Na rodada final, era preciso vencer em casa o Superclásico contra o líder Boca. Justamente ali, a série parou: treinado por Di Stéfano, o rival segurou um 2-2 e saboreou em pleno Monumental o título e a extensão da seca millonaria.
“Esse River de 1969 era um quadro forte, valente, lutador. Mordia em todos os lados e Labruna sempre nos exigia que jogássemos com garra. Eu era novinho e queria ganhar o posto. Então me desesperava em conseguir a bola, corria contra todos, metia e metia. Depois daquela final com o Boca, em que perdíamos por 2-0 e terminamos empatando em 2-2, vi a partida pela televisão e não podia acreditar. ‘Esse sou eu? Não, não pode ser… que maneira de dar patadas…’. Me sentia mal. Friamente, analisando o futebol que eu gostava, compreendia que esse não era eu. Tinha uma filosofia muito particular do que devia ser o futebol, ao menos o que em teoria queria implantar. Mas dentro do campo, no calor, deixava de lado os princípios, me esquecia de tudo e entrava para jogar como um louco”.
A desventura riverplatense teve um novo capítulo no torneio seguinte. River e Independiente terminaram igualados na liderança, o que normalmente forçaria um jogo-desempate. Mas aquele campeonato foi um raro momento em que a partida extra não foi regulamentada, e sim critérios mais imediatos. O saldo de gols era igual, mas nos gols pró o Rojo somou um a mais. Detalhe: o concorrente igualou-se na pontuação graças a um 3-2 de virada a dez minutos do fim em pleno clássico com o Racing… a reação em Núñez foi contratar o brasileiro Didi, cuja seleção peruana fizera bonito na Copa do Mundo, para a qual se classificara eliminando a própria Argentina dentro de La Bombonera. Merlo, inicialmente, foi ao banco, só aparecendo seis vezes no Metropolitano de 1971; o titular era Carlos Della Savia, com 36 partidas.
A presença da voz sempre rouca do Mostaza (“sempre, também, tive esse vozeirão. Era de gritar no campo, queria que me escutassem. Gritava sim, mas nunca me senti caudilho. Gritava simplesmente porque o futebol não é um jogo de mudos. E além disso minha posição no campo se prestava para que eu fosse uma espécie de orientador. Por isso talvez gritava mais que ninguém”) se reforçou quando uma greve geral estourou na 8ª rodada do Torneio Nacional. Os cartolas não cederam e Didi acionou os juvenis. Ele já vinha valorizando a prata-da-casa desde antes daquela necessidade; Juan José López e Norberto Alonso, que fariam com Merlo um trio histórico no meio-campo por aquela década, foram promovidos ainda em 1970 e no Torneio Metropolitano de 1971, respectivamente. A garotada deu conta do recado a ponto de ser mantida mesmo para a rodada para a qual os titulares já estavam novamente disponíveis. Era nada menos que um Superclásico, para o qual o Boca não titubeara em alinhar seus principais jogadores.
Mas deu River, em um duelo histórico: 3-1. Diferentemente da exigência primal de Labruna por um jogo no mínimo raçudo de Labruna, Didi pregava algo vistoso. Algo talvez complicado a um volante não tão técnico como os parceiros: “Labruna me deu a oportunidade de jogar na primeira divisão e sempre lhe serei grato, com a todos os técnicos que tive no River. A ideia de futebol de Ángel era muito clara, muito definida. Muito diferente, por exemplo, da de Didi. Mas o importante é que o jogador acredite no que o treinador quer impor. Com estilos diferentes, eu acreditava firmemente nos dois métodos, o de Labruna e o de Didi. Sempre fui de meter a perna, embora isso não significasse que eu golpeava. Eu gostava de tratar bem a bola. Sempre precisei controla-la, colocá-la embaixo da sola, ter a sensação de domínio. Isso era fabuloso: eu desarmava, a mantinha um pouquinho e depois a entregava no pé do companheiro. Aí me sentia na glória”.
Embora reconhecido por polir talentos, Didi não teria vida longa em Núñez. Nos Nacionais de 1970 e de 1971, o time caiu na fase de grupos e esteve longe da taça em pontos corridos do Metropolitano de 1970. O brasileiro renunciou na 9ª rodada do campeonato seguinte, após o San Lorenzo ser o terceiro a golear-lhe de 4-0 no torneio, depois do Rosario Central e do próprio Boca. Sob as ordens de Juan Urriolabeitia, o troco no rival viria nas semifinais do Torneio Nacional de 1972, eliminando-o apenas para adiante perder a decisão para o San Lorenzo. Outra vez, tão perto, tão longe… Para El Mostaza, que considera aquele ano o melhor individualmente da carreira, ficou um consolo. Foi quando seu desempenho foi reconhecido pela seleção, justamente. Embora só tenham sido três jogos oficiais, todos por troféus binacionais.
Merlo estreou pela Albiceleste em 27 de setembro em 2-0 sobre o Chile pela Copa Carlos Dittborn, em Buneos Aires; perdeu de 1-0 para a Espanha em Madrid em 11 de outubro, pela Copa Hispanidad; e ganhou de 2-0 sobre o Peru em Lima em 25 de outubro, pela Copa Mariscal Castilla – onde fraturou a mandíbula (forçando o uso improvisado de Jorge Vázquez no seu lugar no River na reta final do Torneio Nacional). O volante ainda foi usado em outras duas partidas da Argentina, mas não oficiais: entre os jogos contra Espanha e Peru, atuou em 18 de outubro em 3-0 sobre a seleção provincial da Tucumán, no campo do Atlético local. E, já em 15 de abril de 1973, entrou aos 15 minutos do segundo tempo em um 1-1 contra o Palmeiras no estádio do Racing.
Ele até chegou a ser depois chamado também para a “seleção fantasma”, amontoado de jogadores ainda sem renome requisitados para se aclimatar por meses à altitude boliviana para assim vencerem a seleção vizinha nas eliminatórias à Copa de 1974, um resultado que seria vital para impedir uma segunda desclassificação seguida do país – que, em tempos pré-empresariais da FIFA, via-se sob risco de perder a condição de sede para 1978. Mas, encarando como desolador aquele cenário de abandono, Merlo e Alonso bateram em retirada da preparação. “Realmente teria gostado de ter mais continuidade na seleção. Mas não se deu”, resignou-se El Mostaza, que nunca mais receberia novas oportunidades.
Em 1973 e em 1974, apesar dos reforços de Ubaldo Fillol e Daniel Passarella e dos comandos técnicos de ídolos históricos feito Néstor Rossi e Omar Sívori, nem mesmo no páreo o River esteve. Assim, não havia muita crença de que o jejum estava prestes a ruir, mesmo com o regresso de Labruna. “No River, vivi tudo, o bom e o ruim. Desde que cheguei ao clube, aos 13 anos, sempre esteve o fantasma do campeonato que não se dava. E a coisa foi ficando cada vez mais difícil. Todos estávamos contagiados desse desespero: os jogadores, os técnicos, os dirigentes, os torcedores… e a sorte nunca nos dava uma mão. Por isso, 1975 foi um ano inesquecível, sensacional, único”. Merlo só não foi intocável, presente em 25 dos 38 jogos. O volante central titular foi Miguel Ángel Raimondo, que aportava experiência de alguém presente em três títulos seguidos do Independiente na Libertadores, entre 1972 e 1974.
“Quase todos os anos me traziam um jogador ao meu lugar. Anote: Ramiro Pérez, El Chamaco [Carlos] Rodríguez, Della Savia, [Sergio] Cierra, [Eduardo] Carranza, Raimondo, [Francisco] Russo, [Héctor] Pitarch, [Alfredo] De los Santos, [Américo] Gallego…” foi justamente a primeira declaração dele naqueles depoimentos à enciclopédia do clube. E o próprio ex-clube de Raimondo poderia ter sido o destino de Merlo, em um troca-troca que já havia envolvido o goleiro José Pérez. “Uma vez, Labruna apareceu e disse: ‘olhem garotos, aqui são todos transferíveis…’. Nesse momento, o Independiente tinha interesse em me levar; em pouco tempo, Carlos Bilardo veio me ver para que fosse jogar no Estudiantes. E, antes daquela frase de Ángel, quando se estava formando o grande time de 1975 e compraram o Perico Raimondo, pensei sinceramente que meu ciclo no River havia terminado. Mas uma semana antes que começasse o Metro, Labruna se aproximou de mim e me disse que assinasse contrato, porque ia me necessitar. Bem, no final, como sempre, terminou jogando eu…”.
Raimondo de fato foi usado em 31 jogos do redentor Torneio Metropolitano de 1975, mas foi Merlo retomou a titularidade na reta final, a partir do jogo-chave contra o San Lorenzo onde o time, vindo de fraquejadas, voltou a ganhar com dois gols de um Alonso regressado de longa suspensão. O embalo não se perderia, com o desjejum de longos 18 anos se garantindo na penúltima rodada mesmo com uso do time B em função de outra greve. Seca que acabaria em dose dupla: o Millo também levantou o Nacional de 1975. Dessa vez, com Merlo sendo quem mais jogou na campanha – 22 vezes, contra dez de Raimondo. “Que diferenças havia entre uma equipe e outra? No Nacional, jogamos com maior tranquilidade, sem o desespero de antes de alcançar o título postergado. Mas eram dois timaços, com futebol, personalidade e sacrifício”, exaltou. A equipe bicampeã em um ano logo tratou de ir longe na Libertadores.
O ex-clube de Raimondo havia ganho em 1975 um tetra seguido no torneio, série encerrada exatamente pelo River nas semifinais de 1976, em duelo descrito por Merlo como sua melhor partida: “nesse dia, tudo deu certo comigo”. Mas o torneio também rendeu nova amargura: “minha maior tristeza resultou da final da Libertadores que perdemos para o Cruzeiro, no Chile. Fizemos um esforço tremendo para chegar a essa instância e nesse dia, por distintas razões (lesionados e suspensos), tivemos que jogar com sete reservas. Perdemos de 3-2, com um tiro livre que nos meteram no último minuto”. O foco no continente minou o time do páreo no Metropolitano, mas o Millo voltou com tudo no Nacional, chegando à decisão. Porém, perdeu-a para o maior rival. Que também o eliminou na fase de grupos da Libertadores de 1977, na qual sairia campeão exatamente sobre o Cruzeiro.
A ferida foi amenizada ao vencer-se dentro da Bombonera o Superclásico para isolar-se na reta final na liderança do Metropolitano de 1977. Merlo foi usado 35 vezes, contra 19 do concorrente da vez, Pitarch. No espremido Torneio Nacional de 1977, o River caiu ainda na primeira fase e, seriamente desfalcado para a seleção como base da Albiceleste campeã mundial em 1978, passou longe no Metropolitano disputado em paralelo à Copa do Mundo. Com os astros de volta, o time avançou às semifinais da Libertadores, embora voltasse a ser eliminado no Superclásico, e à final do Nacional – perdido para o Independiente. A resposta seria categórica: o River emendaria um tri seguido, o único que o futebol argentino viu entre os anos 50 e os anos 90. Não classificado à Libertadores em 1979, faturou os dois títulos domésticos, somados ao do Metropolitano de 1980. A torcida seguia cantando que “há três coisas na vida: Alonso, Merlo e Fillol. Quem tenham essas três coisas, certeza que é o campeão”.
O concorrente agora era o uruguaio Alfredo de los Santos, superado amplamente por Merlo: no Metropolitano de 1979, El Mostaza jogou 18 vezes contra 12 do “rival”, muito por conta de uma operação nos meniscos que quase aposentou um veterano que nem tinha 30 anos. No Nacional, foram respectivamente 19 e quatro jogos e no Metropolitano de 1980 foram 31 e seis. O grande senão à Era Labruna era a Libertadores. Em tempos duríssimos onde só o líder do grupo avançava, o Millo caiu para o Vélez em jogo-desempate na primeira fase de 1980. O tricampeonato em paralelo no Metropolitano, com quatro rodadas de antecedência, minorou as cornetas. Mas em 1981 não houve desculpas para nova queda na fase de grupos; o inédito tetra ruíra no Nacional de forma constrangedora, onde o Newell’s foi derrotado por 3-2 no Monumental e perdia em Rosario por 2-0 antes de virar para 6-2.
Depois foi a vez de nem reforços estrelares feitos Mario Kempes, René Houseman, Juan Carlos Heredia e Agustín Cejas permitirem que Núñez fosse candidato ao título do Metropolitano de 1981 – faturado pelo Boca de Maradona. Com o Monumental às moscas, a Era Labruna terminou e a histórica meiúca do River também foi questionada para o Torneio Nacional de 1981. No título mais acidentado da história do clube, que de quase eliminado na fase de grupos engatou sem muita vistosidade nos mata-matas, ninguém do trio Merlo-López-Alonso esteve na partida final contra o Ferro Carril Oeste. Alonso, desentendido com o técnico Di Stéfano, tentou o “ou ele ou eu” e foi dispensado 48 horas antes – em seu lugar, foi usado Emilio Commisso. Jota Jota López e Merlo, por sua vez, tiveram seus postos ocupados por dois reforços do Newell’s: Enzo Bulleri e Américo Gallego, respectivamente. Alonso iria ao Vélez e López, ao Talleres, novo clube de Labruna.
Por mais que Merlo tenha seguido em Núñez, teve em Gallego um concorrente mais capacitado que os antecessores – titular da Argentina de 1978, El Tolo jogou 15 vezes naquele Nacional e El Mostaza, 12. Ambos até iriam às vias de fato em um treino. Em paralelo, os desmandos econômicos da ditadura, agravados pela derrota nas Malvinas, fizeram o dólar valorizar em 240%. O River se viu incapaz de segurar Kempes, Passarella e Ramón Díaz, que embarcaram ao futebol europeu após a Copa de 1982. Já desfalcados deles, o time foi antepenúltimo em seu grupo no Torneio Nacional de 1982 e Di Stéfano caiu. No segundo semestre, mesmo avançando às semifinais da Libertadores, não foi páreo nem dentro de casa ao Flamengo e estacionou em 10º no Metropolitano. No primeiro semestre de 1983, o Argentinos Jrs de Labruna eliminou o Millo nas quartas-de-final do Nacional antes do gigante terminar em um vergonhoso penúltimo lugar no Metropolitano, salvo do rebaixamento pelo promedio.
Já reforçado por Francescoli, o mesmo elenco vice-lanterna foi capaz de chegar à final do Torneio Nacional no primeiro semestre de 1984. A amargura agora viria na forma de um vice para o Ferro Carril Oeste, vencedor de 3-0 dentro do Monumental. Merlo, ausente do vexame, já tinha 34 anos e não concorria só com Gallego; Julio Olarticoechea, inicialmente usado na lateral ao reforçar o River em 1981, foi convertido em volante também para carregar o piano à dupla de armadores formada por Francescoli e o regressado Alonso na campanha 4ª colocada no Metropolitano – torneio onde El Mostaza só foi usado quatro vezes, comunicado de que não teria seu contrato renovado após 1984.
“Foi uma decisão que me golpeou mas, ao mesmo tempo, tratei de tomar com calma. Me ofereceram seguir como auxiliar técnico, mas por minha cabeça ainda rondava a ideia de seguir jogando. No último jogo do campeonato, estive no banco de reservas. Sabia que era a última vez que ia me vestir de jogador do River, mas não aparentei dar importância. Tentei não me emocionar, embora isso realmente não pudesse cumprir: o apoio das pessoas, em todo momento, desde que saí da concentração até chegar ao banco de reservas, foi incrível. Me caíram as lágrimas… aí soube que, na realidade, eu jamais vou terminar de sair do River”. Merlo optou por pendurar as chuteiras e demorou até 1986 para aparecer como técnico. Foi no nanico Los Andes, em uma campanha de meio de tabela na segunda divisão na temporada 1986-87. Teve então seu último capítulo no River, contratado junto com o velho parceiro Alonso como dupla técnica que substituiria o decepcionante César Menotti em 1989.
Ele e Alonso saborearam primeiro a extinta liguilla, sobre o Boca e o San Lorenzo, apostando na revelação Gabriel Batistuta. Ao fim do torneio de 1989-90, o Millo foi campeão, mas já sem eles, contratados pelo presidente cuja reeleição foi impedida no ínterim. “Alfredo Davicce, o novo presidente, tentou me manter, mas me pareceu que eticamente eu devia sair com as pessoas que me haviam levado. Simplesmente cumpri com minha palavra”. Assim começaria a carreira de técnico de Daniel Passarella, que substituiu a dupla em janeiro de 1990. Merlo ficaria mais marcado mesmo pelos mais de 500 jogos como volante, registrando apenas dez jogos. Mas, como ressaltou o tuiteiro Adrián Dalmasso: “não se sabe quantas faltas. Quantos amarelos. Quantos quilômetros correu para recuperar a bola. Quantos litros de suor transpirou. Para ficar na história, não precisa estar tocado pela varinha mágica. Só precisa querer ser parte dela”.
Como virou estátua no Racing
Merlo caiu para cima, sendo requisitado pela seleção argentina sub-20. Mas foi um fiasco: no mundial da categoria em 1991, foi lanterna até em um grupo que tinha Irlanda e a seleção unificada da Coreia; para o pré-Olímpico, a AFA optou por usar o treinador da seleção principal, Alfio Basile. Merlo ficou com a seleção sub-17, mas novamente caiu na primeira fase do mundial, em 1993 – avançaram Nigéria e Austrália. Merlo então trotou sem alarde por Bolívar, Chacarita, Temuco, Atlético Nacional e Belgrano. A experiência na seleção entre 1990 e 1994 ainda pudera ter seu peso: tendo estreitado laços com Basile, foi por ele recomendado ao Racing. Basile, como jogador, havia sido ídolo na Academia, que não era campeã argentina desde 1966 – quando Merlo ainda era um juvenil.
Desde então, 70 treinadores já haviam passado pelo clube de Avellaneda, incluindo gente querida na casa feito o histórico Juan José Pizzuti (que, campeão da Libertadores e do Mundial em 1967, não evitara o rebaixamento em 1983) e o próprio Basile. Nem mesmo o filho do chefão da AFA, Humberto Grondona, pôde se favorecer. O clube fora declarado formalmente falido em 1999 e só não extinguiu-se pelo ativismo da apaixonada torcida – que não impediu uma última colocação do clube no Apertura 2000. Em janeiro de 2001, o juiz do processo de falência e o administrador judicial concordaram em ceder a gerência do Racing à empresa Blanquiceleste S.A., que então contratou El Mostaza. A missão era clara: evitar um segundo rebaixamento, e não começou fácil, sob derrota em casa para o Talleres por 1-0 e empate em 2-2 com o Los Andes, ignorando-se pedidos da torcida por Diego Milito.
O Racing, que só havia ganho três dos últimos 44 jogos, deu uma melhorada em seguida. Bateu naquele Clausura o futuro campeão San Lorenzo e o Boca recém-campeão mundial e logo bi da Libertadores. Já respirava 19 pontos em 11 rodadas quando caiu em casa por 4-0 contra o nanico Almagro, outro a lutar contra a queda. Na reta final, teve de tudo: empate em 1-1 com o Lanús após perder dois pênaltis, derrota de 3-0 para o River, empate em 1-1 com um homem a mais contra o Vélez foram tragédias antes de um Milito com 39 graus de febre empatar no finzinho contra o Colón. Veio então um 4-1 sobre o Rosario Central e triunfo mínimo no Clásico de Avellaneda, o suficiente para impedir o rebaixamento ali. Ainda assim, o Racing começaria a temporada 2001-02 como último na tabela de promedios.
Reformulando bastante o elenco, ainda que com refugos de outros times, Merlo montou um grupo compacto onde só 19 jogadores seriam usados no Apertura e apenas três deles em todos os jogos (Milito, Francisco Maciel e Martín Vitali). Merlo procurava demonstrar otimismo e precaução ao mesmo tempo: “a obrigação é lutar pelo título. Vamos passo a passo”. E o tal Paso a Paso marcaria a jornada. Mesmo raramente encantando, a Academia só perdeu uma vez e sabia entregar emoção: virou em La Plata um 2-0 para um 3-2 sobre o Estudiantes e empatou no fim novo clássico com o Independiente e o duelo direto contra o concorrente River, que tinha como motivação extra ser campeão no centenário oficial. Só antes da penúltima rodada é que El Mostaza deixou o papo prudente de lado: “acabou o passo a passo. Agora enjoei e digo que vamos ser campeões”.
O Racing venceu por 2-0 o Lanús, mas ainda tinha o River na cola e o auge da crise econômica, com mortes e estádio de sítio, suspendeu a rodada final. Depois resolveu-se que os concorrentes ao título jogariam ainda em 2001, já em 27 de dezembro. Foi com drama, mas o empate fora de casa contra o Vélez bastou para encerrar o maior jejum de um gigante argentino (quase o dobro dos 18 anos que Merlo encerrara com o River em 1975…) e converter o treinador em um homem de ouro em Avellaneda, quase que como um Midas literal: em 2009, viraria uma estátua nessa cor na sede racinguista. Ainda era preciso lutar contra o rebaixamento no Clausura e o 6º lugar serviu para dissipar a ameaça. Merlo tirou dois anos sabáticos antes de assumir o Estudiantes para a temporada 2004-05. Mas parece ter perdido na folga o toque de Midas. Em La Plata, foi só 14º nos dois torneios. O River ainda assim apostou no antigo ídolo para a temporada seguinte; no máximo, El Mostaza chegou a um 3º lugar longe do campeão Boca no Clausura 2006.
Em paralelo, o Racing voltava a encarar crise seríssima, fazendo Diego Simeone pendurar as chuteiras para treina-lo sem apagar o incêndio de um antepenúltimo lugar. Merlo foi novamente requisitado pela Academia, mas só durou 28 jogos, estacionando em 10º no Apertura 2006; Gustavo Costas sucedeu-o no meio do Clausura 2007, onde o time ficou em 13º, ainda que a salvo. Sucederam passagens pelo Barcelona equatoriano e duas pelo Rosario Central. Na segunda, com os rosarinos recém-rebaixados, só durou três meses, com igual número de vitórias, empates e derrotas (quatro). Mas relançou-se no Douglas Haig, salvando-o na segunda divisão do rebaixamento na temporada 2012-13. Cansado do estresse da luta pela permanência, ele preferiu sair do clube de Pergamino e desistiu de um contrato com o Aldosivi três dias após ser anunciado, alegando razões familiares.
O Racing, por sua vez, começara o Torneio Inicial da temporada 2013-14 como candidato sério ao título, mas naufragava. O promissor técnico Luis Zubeldía caiu ainda em agosto e o sucessor inicial, Carlos Ischia, perdeu quatro dos cinco jogos que fez. Em outubro, Merlo voltava como messias a Avellaneda, sem impedir a vice-lanterna, mas criando esperanças com títulos nos torneios amistosos de verão. Mas quando os jogos foram retomados para valer, a série de resultados ruins voltou e El Mostaza deixou a Academia faltando duas rodadas para o fim do Torneio Final – onde o time ficou em antepenúltimo. Coube a Diego Cocca levar o clube ao título já no semestre seguinte. Merlo pôde sorrir: refez seu nome tirando o Colón da segunda divisão, liderando o grupo A, embora não permanecesse além de um jogo no regresso santafesino na elite em 2015.
Após três anos sabáticos, Merlo reapareceu na terceira divisão do interior, no comando do Racing de Córdoba. Mas El Mostaza só reluziu como Midas pelo que fez em 2001 no Racing original; os cordobeses terminariam rebaixados ao fim da temporada 2018-19. Quando La Acadé fez 110 anos, em 2013, a revista El Gráfico publicou edição especial que tinha uma seção voltada aos 110 maiores ídolos do time. Campeões como técnicos, Pizzuti e Basile (vencedor da Supercopa de 1988) foram inclusos como jogadores – nem mesmo Guillermo Stábile, o treinador tricampeão entre 1949 e 1951, foi lembrado, pois só foi racinguista como técnico. Mas trataram de abrir uma exceção ao maestro do Paso a Paso: “não jogou no clube, mas como não menciona-lo entre os ídolos?”. Dois anos antes, a mesma El Gráfico publicou uma edição sobre os cem maiores ídolos do River. A maioria, com perfis de uma única página, ou mesmo meia. O ex-volante foi um dos dezoito contemplados com duas.
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