50 anos de Antonio “Turco” Mohamed, o maior ídolo do Huracán decadente
Para o então atacante Antonio Ricardo Mohamed Matijevich, cabeceio foi sempre sua assumida deficiência, mas foi assim que marcou seu gol mais famoso, ao recolar o time do coração na elite após quatro anos. Uma enormidade para um clube ainda julgado como grande até o início dos anos 80. Uma enormidade que o tempo foi deixando cada vez mais habitual: foi o mesmo tempo gasto pelo Huracán em outro período na segundona, entre 2003 e 2007, cujo acesso veio novamente com a presença de El Turco, desta vez técnico. Se o Globito não é campeão argentino da primeira divisão há 47 anos, em jejum só inferior ao do ainda mais sofrido Gimnasia LP dentre os times não-extintos na Argentina, Mohamed é quem mais fez o torcedor quemero sorrir nessa decadência que se impregnou na imagem da instituição do bairro de Parque de los Patricios. Também técnico do Independiente campeão da Sul-Americana 2010, hoje faz 50 anos.
Mohamed cresceu no bairro barra-pesada de Villa Soldati e foi um peladeiro daqueles torneios de rua. O redator do ótimo Jogos Perdidos já descreveu assim o bairro em 2005, que dirá nos anos 70 e 80: “depois de quase uma hora no ônibus, comecei a perceber uma desertificação assustadora nas ruas e eu não via a hora do motorista anunciar meu desembarque. Finalmente essa hora chegou e desci numa avenida quase fantasma. O cenário era o seguinte: avenida larga, nenhum carro passando, carros desmanchados por todo o canto, nenhum estabelecimento aberto e ninguém para se perguntar. Sabe aquele clima meio Bronx de filme estadunidense… era exatamente isso”. O próprio Mohamed declarou nessa linha, também em 2005, quando deu longa entrevista à El Gráfico da qual tiramos a maior parte de suas aspas:
“A coisa era dura, especialmente quando tínhamos que jogar em Lugano, Flores, e ganhávamos. O foda era sair!”.O bairro de Flores, curiosamente, é onde se situa o campo atual do San Lorenzo, envolto por uma favela que já fez o brincalhão ídolo azulgrana Héctor Veira declarar que “até o Rambo já foi assaltado lá”. Sobre Lugano, o Jogos Perdidos também já falou de lá: “fui então perguntar a um policial. Bom, o cara simplesmente se desesperou quando eu disse que queria ir para a Villa Lugano. Uma mulher que estava perto, na hora entrou na conversa e também disse para eu desistir de ir para Lugano. Eles diziam que era muito perigoso e eu não deveria ir, não querendo sequer ensinar o caminho”. Talhado nesses ambientes na juventude, os acanhados campos dos jogos aos sábados pelo ascenso não foram obstáculo a Mohamed.
Torcedor do Huracán por toda a vida (a ponto de brincar, ou não, na entrevista em dizer que não tem amigos sanlorencistas, apenas conhecidos…), estreou profissionalmente em 11 de junho de 1988, com o clube já há dois anos na segundona. Uma certa decadência no Huracán era vista desde a década anterior. Mas a permanência seguida na elite enquanto dois dos “cinco grandes” caíam antes (o rival San Lorenzo em 1981 e o Racing em 1983) deixavam o simbólico posto huracanense de “sexto grande” bem menos maculado. O Racing, inclusive, demorou duas temporadas para voltar. Só que o Globito já arcava com o dobro desse tempo. O acesso não veio ainda em 1989, com o Huracán eliminado pelo Colón na segunda fase da repescagem.
Mas Mohamed destacou-se a ponto de chegar na seleção sub-23, com Diego Simeone, Carlos Roa e Mauricio Pochettino, dentre outros. Na entrevista, relatou inclusive uma desventura ao lado de Simeone naqueles tempos: “nos haviam citado para a seleção juvenil, em Ezeiza. Nos encontrávamos na AFA de manhã, mas nesse dia não havia ninguém. Sentamos no bar, compramos o jornal, comemos uns croissants, esperamos, nada… num momento o jornaleiro nos diz que todos haviam ido às 7. Quase morremos. Tomamos o metrô até Constitución, daí o ônibus 46 e aí tínhamos que tomar o 91, mas já estávamos sem grana. Então, o Cholo sobe e diz ao motorista: ‘olhe bem essa carinha, eu vou ser destaque, jogarei na seleção. E este também, lembre bem o nome’. Chegamos em Ezeiza, corremos os cinco quilômetros até o SEC e chegamos quando o treino havia terminado. Bilardo gostou do gesto e nos fez treinar com a seleção maior”.
Para a temporada 1989-90, o Huracán trouxe para técnico o velho ídolo Carlos Babington, glória do último elenco campeão de elite no clube, em 1973. Além de Mohamed, as figuras eram sua dupla ofensiva Sergio Saturno, o volante Fernando Quiroz e o xerife Héctor Cúper, mais tarde técnico de sucesso na Europa. Invicto em casa, o clube venceu 24 jogos, empatou 12 e só perdeu 6 na campanha, garantindo o título e o acesso na penúltima rodada. El Turco marcou aos 5 minutos do segundo tempo o único gol de uma partida só encerrada nos tribunais: furiosos, os torcedores adversários do mandante Los Andes interromperam os festejos alheios e o jogo aos 40 minutos. A volta olímpica, ao menos para Mohamed, acabou se dando em torno do Carrefour onde até 1979 se localizava o estádio do rival San Lorenzo.
Uma vez na elite, El Turco passou a chamar a atenção do grande público não só pelos gols mas também pelo visual ousado: foi um dos precursores de tiaras nos cabelos (quando não, um penteado samurai décadas antes de Ibra), item metrossexual que logo tanto se associaria a argentinos; e colantes por baixo dos calções e ainda munhequeiras. Com o Huracán estabilizado na elite, o atacante já estreava com gol marcado pela seleção, em 2-0 amistoso sobre a Hungria em 19 de fevereiro de 1991, em Rosario. Esteve ainda no 1-0 sobre os EUA em Palo Alto em 19 de maio e no 2-2 arrancado em Wembley contra a Inglaterra, que vencia por 2-0, em 25 de maio.
Ele terminou então convocado para a Copa América de 1991, embora uma lesão inoportuna o tenha feito perder espaço junto com o bom momento da revelação Gabriel Batistuta; a Argentina foi campeã após 32 anos, mas El Turco só foi usado no 3-2 sobre o Peru, a última partida da fase de grupos, com a Albiceleste já classificada. Ainda assim, Mohamed terminou contratado pela Fiorentina junto de outros dois campeões: Diego Latorre e Gabriel Batistuta. Mas a cota limitada de estrangeiros fez o time de Florença efetivar somente o Batigol. Latorre, com quem Bati fazia a dupla ofensiva do Boca, seguiu nos auriazuis, sob empréstimo. Negando o futebol espanhol (“não era o que é hoje”), o atacante optou por continuar no futebol argentino, ainda que repassado ao Boca também.
El Turco estreou pelo Boca justamente contra a Fiorentina, em amistoso que integrou o negócio por Batistuta, por sua vez estreante na Viola. Valorizava o novo clube (“na Bombonera, o goleiro é um dinossauro e o arco, uma caixinha de fósforos”, descreveu sobre como era enfrentar fora de casa os auriazuis) e teve uma boa sequência inicial com gols seguidamente marcados entre a 5ª e a 7ª rodada do Apertura 1991, valendo-lhe nova convocação à seleção; foi para partida contra o Resto do Mundo treinado por Telê Santana, realizada em 29 de outubro e nem sempre considerado como jogo oficial. Só que aquele amistoso também foi sua involuntária despedida da seleção adulta: exatamente 48 horas antes, protagonizou outro momento famoso, talvez mais do que o cabeceio do acesso em 1990.
O lance da vez, porém, marcou-lhe negativamente como pouco profissional, embora reforçasse sua idolatria perante a torcida do Huracán – adversária na ocasião e contra quem ele supostamente teria perdido propositalmente um gol. “Me lembro que saí do túnel e a primeira coisa que fiz foi ver quanta gente o Huracán havia levado”, afirmou sobre o reencontro com o ex-clube. No lance, ele entrou pela meia-direita após cruzamento de Walter Pico, matou no peito e… tocou para trás, para o assombroso “o quê???” do narrador Marcelo Araujo. Isso foi desencavado quase vinte anos depois, em 2011. O Huracán lutava contra o Gimnasia LP para não ser rebaixado uma quarta vez e na rodada final teria de enfrentar fora de casa o Independiente, que era treinado por Mohamed.
Uma semana de suspeitas de uma possível entregada do Independiente foi enterrada com um impiedoso 5-1 do Rojo enquanto seu próprio técnico afundava sem conter a tristeza no banco. Em 2011, o Huracán terminaria mesmo rebaixado, mas menos mal para El Turco que não foi naquele dia: como o Gimnasia cedeu empate no último lance contra o Boca (jogo que marcou a despedida de Martín Palermo), ambos ficaram igualados e fizeram um tira-teima para definir quem caía. Aí sim o Globo caiu. Quanto ao “não-gol” em 1991, Mohamed ainda jurava na entrevista de 2005 que o “erro proposital” não foi consciente, mas foi para sempre crucificado pelos xeneizes: só entrou em campo mais duas vezes pelo clube naquele ano e depois só viria a reaparecer pelos auriazuis em um punhado de cinco jogos entre junho e julho de 1992.
Àquela altura, o descontentamento com El Turco já não se restringia à torcida boquense – ainda com idade olímpica, ele integrou a fracassada campanha da seleção sub-23 que sem êxito tentou a classificação aos Jogos de Barcelona. Assim, começou sua relação com o Independiente. Permaneceu em Avellaneda por dois anos onde a taça argentina esteve perto nos dois torneios de 1993 (vice do Clausura e 5º no Apertura, mas a dois pontos do campeão River), embora não fosse um protagonista. No início de 1994, terminou negociado com o futebol mexicano, o que curiosamente o livrou de novo dilema: exatamente no torneio seguinte, o Rojo terminou campeão após um 4-0 em duelo direto casualmente agendado para a rodada final contra o então líder Huracán.
No México, ele terminaria melhor reconhecido do que no próprio país, adotando inclusive o uso inconsciente de palavreados típicos das terras astecas mesmo quando está na Argentina, confundindo interlocutores: “no aeroporto, salvo os que são fãs de futebol, aqui não me conhece ninguém. No avião vão 150 pessoas, 100 argentinos e 50 mexicanos. Dos argentinos, com sorte me conhecem quatro, enquanto os mexicanos me conhecem os 50”. Os brasileiros talvez se recordem mais de Mohamed como o técnico do Tijuana que por um erro de pênalti não eliminou o futuro campeão Atlético Mineiro no último lance das quartas-de-final da Libertadores 2013. Mas sua fama por lá foi angariada desde os tempos do extinto Toros Neza, onde o argentino mais se consagrou, mesmo sem taças.
“Soldati ao lado de Neza era Paris. Então, quando nos perguntávamos onde jogávamos ou onde vivíamos, dizíamos ‘em Neza York, conheces?'”. O clube de Nezahualcóyotl se notabilizou pelo lado folclórico dos jogadores, ora de cabelos pintados ora fantasiados com máscaras de halloween. Um dos histriônicos colegas era Miguel Herrera, o explosivo treinador do México na Copa 2014. O sucesso foi tamanho que, após a saída do argentino, o Toros apostou simplesmente na vinda de Bebeto em 1999 para suprir o vazio.
“Nesse momento não te davas conta do que estávamos gerando. A ponto tal de que hoje vais no México e te dizem ‘ui, aquele time campeão do Toros, com Mohamed com o cabelo pintado e com as máscaras’. E resulta que nós não saímos campeões, sempre fomos imaturos. Perdemos duas finais e chegamos a quatro semis, mas todo o mundo se lembra como se houvéssemos ganho. Aquele Toros Neza é como Holanda de 74”, afirmou Mohamed sem falsa modéstia naquela entrevista. Em 1998, então, rumou ao Monterrey, que viria a ser a sua outra casa, a ponto de tornar-se o time de coração do filho Farid.
Mohamed ainda fez relativo sucesso individual no Martes em 2000 e estendeu a carreira de jogador até 2003 rodando por outros quatro clubes locais de pequeno porte, sem sobressair-se. Pendurou as chuteiras no Zacatapec e logo emendou ali o início da trajetória de treinador. Mohamed já tinha quatro pequenos clubes mexicanos no currículo quando foi repatriado em meio à temporada 2004-05 pelo Huracán para treinar o time do coração, ocasião que rendeu aquela entrevista à El Gráfico. O time chegou às repescagens finais contra os últimos da primeira divisão, mas perdeu-as para o Instituto de Córdoba, que venceu os dois jogos. Um ano depois, novamente a dor de chegar tão perto: o Argentinos Jrs, por ser da elite, tinha a vantagem de dois empates e ficou-se no 1-1 em Parque de los Patricios e 2-2 em La Paternal.
Se na entrevista em 2005 o ex-jogador tinha o humor em gargalhar sobre como seu sobrenome árabe (população que imigrou em massa à Argentina ainda como súdita do Império Otomano, daí o uso comum ainda que incorreto do apelido Turco a descendentes; por parte de mãe, ele também possui origem croata) lhe criava revistas mais rigorosas em aeroportos pelos EUA, algo muito pior veio em seguida: o filhinho Farid faleceu em um acidente automobilístico quando ambos estavam de férias na Alemanha presenciando a Copa do Mundo. A temporada 2006-07 iniciou-se treinada por Osvaldo Sosa, mas El Turco retomou a casamata mesmo de muletas (com Maradona fazendo questão de presenciar) e as repescagens enfim foram vencidas, sobre o Godoy Cruz dentro de Mendoza, consumando-se o acesso prometido ao rebento na temporada anterior.
“Meu velho me passou o amor pelo Huracán e eu o transferi a meu filho. E eles de algum lugar me estão olhando e espero ter-lhes dado uma alegria”, declarou às lágrimas quem mais personificou o clube nas últimas décadas. Com a missão cumprida, ele inicialmente voltou ao México, acertado com o Veracruz, mas não tardou a voltar à Argentina, agora para treinar o Colón. E fez um belo trabalho em Santa Fe, classificando o Sabalero à pré-Libertadores e rendendo convocações de seus jogadores à seleção – o goleiro Diego Pozo e o defensor Ariel Garcé iriam à Copa 2010 e o atacante Esteban Fuertes, com 36 anos, se converteria no mais velho estreante na Albiceleste. Esse trabalho credenciou-lhe a voltar ao Independiente. O outrora Rey de Copas padecia de seu pior jejum internacional, quinze anos, e a seca geral já chegava a oito, desde o Apertura 2002.
Mais no pragmatismo do que pela exuberância, seu Rojo enfim propiciou à torcida o grito de campeão da Sul-Americana de 2010, sobre o Goiás. O foco no desjejum continental foi tamanho, porém, que o time desleixou-se severamente na disputa paralela Apertura da temporada 2010-11, turno onde terminou na lanterna. Os pontos ali perdidos ainda pesariam para os promedios da temporada 2012-13, a decretar o inédito rebaixamento do gigante. A fase não melhorou muito no decorrer de 2011 e El Turco voltou ao México, acertado com o Tijuana. No clube fronteiriço, teve dois bons anos de trabalho: levantou em 2012 o primeiro título mexicano do time da Baixa Califórnia, classificando-o para aquela boa campanha que ficou a um triz das semifinais da Libertadores de 2013, não fosse os pés do goleiro atleticano Victor.
Assim, Mohamed voltou ao Huracán como um messias para tira-lo da segunda divisão, onde o Globo padecia desde 2011. Mas a magia não se manifestou e em 2014 ele resignou-se em acompanhar de longe a festa quemera pela Copa Argentina e volta à elite: àquela altura, o treinador também festejava, saboreando a Liga MX com o América, desatolado de nove anos de jejum. Mas o argentino não seguiu no clube da capital: ex-jogador do Monterrey, voltou aos alviazuis em 2015 para três anos de trabalho onde chegou a dois vice-campeonatos suficientes para o Celta de Vigo apostar nele para a temporada 2018-19. A passagem por La Liga foi péssima, sendo despedido ainda em novembro de 2018, o que não lhe maculava para o Huracán: para substituir Gustavo Alfaro, seduzido pelo Boca, o time de Parque de Los Patricios recontratou o velho ídolo.
Dessa vez, Mohamed assumiria seu clube enfim em alta, já classificado à Libertadores de 2019 e brigando pela liderança da Superliga de 2018-19. Mas a química novamente não surtiu efeito, com o Globo caindo na fase de grupos e com El Turco saindo em abril após nove derrotas em quinze jogos. Nada que abale a maior prazo sua ligação com o clube, tremenda a ponto do filho Farid, morto aos 9 anos de idade, ser homenageado dando o nome ao campo juvenil do Globito de Parque Patricios. Filho a quem Mohamed pôde, na sequência do ano, cumprir outra promessa, não escondendo as lágrimas ao dedicar-lhe o título mexicano obtido pelo Monterrey já em 30 de dezembro. História que ainda tem pinta de render novos capítulos, talvez mais emocionantes.
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