Campeões com troca de técnicos: raro, mas acontece
Oito jogos, invicto, vencendo os sete últimos, com direito a dois 4-0 fora de casa (sobre Central Córdoba e Colón). Eis o retrospecto do Boca sob Miguel Ángel Russo na Superliga 2019-20. Reincorporado mais pela nostalgia em ter sido o último técnico campeão de Libertadores pelo clube, Russo soube imprimir um aproveitamento deveras contrastante com a apatia do antecessor Gustavo Alfaro – que, polidamente, parabenizou em seu twitter quem o substituiu. Não é inédito, mas desde 1996 um clube não era campeão argentino em campanha que incluiu troca de treinador. Vale relembrar outros casos argentinos similares em torneios de alto nível.
Campeonato de 1933: o húngaro Jenő Medgyessy vinha do futebol brasileiro, com trabalhos em grandes clubes cariocas, paulistas e mineiros. No início de 1933, assumiu o San Lorenzo. Mas suas ideias táticas e de treinos foram vistos como invencionices demais para jogadores e direção aguentarem. Após a pré-temporada, Medgyessy durou somente a primeira rodada, onde o Ciclón ficou no 1-1 em casa com o Lanús. Atilio Giuliano assumiu em dupla com Luis Malvassi para o restante da campanha, cujo pragmatismo superou o futebol tido como mais envolvente do Gimnasia LP – curiosamente, treinado por outro húngaro, Imre “Emérico” Hirschl.
Campeonato de 1940: Enrique Sobral era um faz-tudo no Boca, trabalhando como massagista e técnico de boxe, assumindo ocasionalmente o elenco de futebol quando a função de treinador ainda estava longe de ter maior influência no rumo do jogo. Uma dessas vezes foi após o uruguaio Ángel Fernández Roca reempregar-se na AFA (já havia sido inclusive o técnico da Argentina de 1938 a 1939) após trabalhar nas três primeiras rodadas de 1940. Sob Sobral, o Boca inaugurou La Bombonera e encerrou cinco anos de jejum, algo expressivo para quem fora quatro vezes campeão entre 1930 e 1935.
Campeonato de 1943: antigo ídolo do San Lorenzo, Oscar Tarrío voltou à Argentina no início dos anos 40 difundindo o sistema WM que aprendera na Europa como jogador do Red Star francês e do Belenenses português (ídolo em Lisboa, adorava Portugal e lá faleceria). Mas o arrojo teórico não rendeu frutos no Boca, onde trabalhou entre 1942 e 1943. Em seu primeiro ano, o clube foi apenas quinto e ainda viu o River ser campeão em pleno Superclásico na Bombonera. No certame seguinte, durou as cinco primeiras rodadas. Começou bem (3-1 no Racing, 4-1 no Rosario Central, 1-1 com o Chacarita fora) mas então sofreu um 5-2 em casa para o San Lorenzo, caiu por 3-1 no Superclásico e, 48 horas depois, levou de 6-0 em amistoso com o Peñarol. Seu lugar foi ocupado por Alfredo Garasini, velho ídolo do amadorismo – estivera no primeiro elenco xeneize campeão da elite, no torneio de 1919, chegando à seleção – que seguia no clube como massagista. Teve o mérito de ser campeão não só em 1943 como também em 1944, justamente os anos em que o ataque mais famoso de La Máquina do River foi usado mais vezes.
Campeonato de 1948: goleirão do Independiente bi argentino de 1938-39, Fernando Bello tinha crédito junto com os cartolas, talvez até literalmente, pois jogara toda a sua carreira sem contrato, confiando na palavra do clube. Assumiu a prancheta em 1946, mas apenas em 1948 o clube desfez relativo jejum pendente desde quando jogava. Mas não estava no dia da consagração: em meio à greve generalizada dos jogadores naquele ano, solidarizou-se e os cartolas, impassíveis, terminaram premiados: o Rojo, que não era o líder, usou seus juvenis nas rodadas finais e acabou campeão com a subcomissão de futebol encarregando-se formalmente do trabalho outrora ocupado por Bello. Assim continuou até meados de 1949, quando Luis Ravaschino, velho ídolo dos anos 20, foi chamado para o posto.
Copa Suécia: pensado pela AFA como um torneio oficial para manter os clubes argentinos em atividade enquanto se desenrolava a Copa do Mundo de 1958, o torneio teve partidas descontinuadas com o fim do mundial. A fase de grupos (eram dois) pôde ser finalizada ainda em dezembro de 1958. Os líderes travariam a final, mas enquanto o Racing (campeão argentino de 1958, inclusive) liderou isoladamente o seu, o outro teve Atlanta e Rosario Central igualados. Victorio Spinetto era o técnico do Atlanta nessa parte, mas já não estava à frente quando o tira-teima com os rosarinos enfim foi travado, já em abril de 1959 – foi Juan Carlos Fonda. A final com o Racing foi enfim travada em abril… de 1960! Manuel Giúdice foi o terceiro comandante do campeão Atlanta, que vivia seu auge: ausente da elite desde 1984, o time do bairro de Villa Crespo ficou entre os cinco primeiros quatro vezes entre 1958 e 1964 e teve naquela copa a sua grande conquista no futebol.
Campeonato de 1960: desde a conturbada conquista de 1948 o Independiente não era campeão. Os doze anos de seca ainda são o maior jejum do Rojo, que em 1960 começou treinado por José Curti. Mas, após a pré-temporada, ele só ficou para a primeira rodada, um 3-3 fora de casa com o Argentinos Jrs – que viria a ser a grande sensação da temporada, com um enganoso terceiro lugar escondendo que o Bicho foi o verdadeiro concorrente à taça. Prevaleceu o pragmatismo do Independiente (que só ganhou duas vezes no torneio por mais de dois gols de diferença) sob Roberto Sbarra, com assistência da lenda Guillermo Stábile.
Campeonato de 1963: ex-jogador do Independiente, Armando Renganeschi vinha de larga trajetória no futebol brasileiro desde quando ainda jogava. Técnico vice da Libertadores de 1961 à frente do Palmeiras, voltou a Avellaneda em março de 1963, já no fim da pré-temporada. Ficou até 19 de setembro, sem resistir a uma goleada em casa de 4-0 no clássico com o Racing quatro dias antes, pela 18ª rodada. A diretoria fechou com o disciplinador Manuel Giúdice (“para concentrar, nos enclausurava por três dias”, declararia o volante Vicente de la Mata) e a fórmula deu muitos frutos: além de campeão de 1963, os comandados do Colorado Giúdice levantaria as duas primeiras Libertadores do clube e do futebol argentino, no bi de 1964-65.
Metropolitano de 1969: um campeão multicéfalo foi o Chacarita vencedor pela única vez na elite. Credita-se a Argentino Geronazzo a aura da equipe, que soube ser campeã com os mesmos jogadores que anteriormente terminavam nas últimas posições em anos anteriores. Mas desde a primeira rodada o técnico era Federico Pizarro, antigo ídolo funebrero como jogador. Ele, porém, desligou-se após a penúltima rodada da fase de grupos. Juan Manuel Guerra substituiu-o interinamente na última enquanto Víctor Rodríguez assumiu para os mata-matas consagradores contra Racing e River. Lanterna em 1965, 1966 (anos sem rebaixamento) e 1967 (salvo por repescagem), o Chaca iniciava sua fase áurea, sendo semifinalista nacional em 1970 e bronze em 1971, ano em que bateu o Bayern Munique no Troféu Joan Gamper – além de revelar nesse período o defensor Ángel Bargas e o goleiro Daniel Carnevali, primeiros jogadores usados pela seleção vindos do futebol europeu, figurando como titulares na Copa de 1974.
Metropolitano de 1975: o River vivia jejum desde 1957 e, além do Chacarita de 1969, havia sido vice também para o Independiente de 1963. E o fim da seca foi com anticlímax. O fim da maior seca millonaria garantiu-se matematicamente na penúltima rodada, em um 1-0 no Argentinos Jrs, com juvenis comandados pelo ex-zagueiro Federico Vairo. Tudo por conta de uma greve que afastou o time-base que roera o osso em toda a jornada até ali, sob o comando de Ángel Labruna. Ele e seus titulares voltaram para a rodada final, boicotando a garotada nos festejos e na ascensão ao time principal. Labruna seguiria no River até o primeiro semestre de 1981, ganhando outros cinco títulos argentinos. Somando as carreiras de jogador e técnico, foi o homem mais vezes campeão em Núñez (quinze vezes) até ser superado por Marcelo Gallardo.
Campeonato de 1989-90: após a decepção com o trabalho de César Menotti na temporada anterior, o River chamou para substitui-lo os velhos ídolos Norberto Alonso e Reinaldo Merlo – figuras do time de 1975, por sinal. Começaram bem, faturando a liguilla pré-Libertadores válida ainda pela temporada anterior, em jogos decisivos contra Boca e San Lorenzo, mesmo sob desfalque de Daniel Passarella. O zagueirão pendurou as chuteiras após a expulsão no Superclásico pela semifinal da liguilla. Ao fim do ano, o presidente que contratara Alonso e Merlo não se reelegeu. O River liderava, mas Beto Alonso foi fiel ao cartola e El Mostaza Merlo não topou seguir sem o parceiro. Foram então substituídos pelo recém-aposentado Passarella, que imprimiu maior poder ofensivo (embora ironicamente tirasse o jovem Gabriel Batistuta dos titulares em prol de Ramón Medina Bello, deixando Batigol rumar pelos fundos diretamente ao Boca; a favor, bancou mais vezes Leonardo Astrada, jogador mais campeão pelo Millo antes da Era Gallardo) para garantir o título ainda na antepenúltima rodada e leva-lo às semifinais da Libertadores.
Copa Centenário: organizada pela AFA para celebrar seus cem anos oficiais, em 1993, o torneio foi realizado majoritariamente em julho daquele ano, em intratemporada de luxo entre Clausura e Apertura. Iniciado já em mata-matas, cada time perdedor não era eliminado automaticamente, rumando a um mata-mata à parte entre os perdedores – nos quais, aí sim, terminaria eliminado se voltasse a perder. Em 7 de agosto, o Gimnasia LP, então treinado pela dupla Carlos Ramaciotti e Edgardo Sbrissa, se coroou como último sobrevivente do “mata-mata dos vencedores”, ao bater o Belgrano nessa decisão. Já o outro mata-mata, cada vez mais inchado, teve jogos descontinuados ao fim do mês, sendo retomado apenas na virada de dezembro para janeiro do ano seguinte. Em 21 de janeiro, o Belgrano entrou nessa disputa já na sua decisão, perdendo para o River, que nove dias depois fez a finalíssima com o Gimnasia – agora sob comando de Roberto Perfumo. O Lobo dos gêmeos Barros Schelotto venceu por 3-1 na maior taça no profissionalismo gimnasista, iniciando sua melhor fase, com cinco vices argentinos entre 1995 e 2005.
Clausura 1996: o torneio seria pausado por conta das Olimpíadas de Atlanta, com as três rodadas finais em agosto. Haveria ainda uma rodada anterior em julho. Com seu Vélez recém-campeão do Apertura 1995 e da esquecida Copa Interamericana em fevereiro de 1996, Carlos Bianchi já não tinha o que provar no futebol sul-americano e acertou com a Roma. Mas o contrato com os italianos forçou-o a deixar o bairro de Liniers ainda antes da conclusão do campeonato, precisamente no penúltimo dia de junho. Àquela altura, uma transição já vinha sendo feita, com o técnico dos juvenis, Osvaldo Piazza, já dando os treinos do time adulto. Ele então assumiu oficialmente para as quatro rodadas finais e não comprometeu: La V Azulada garantiu seu único bicampeonato argentino, com direito a Bianchi voar para Buenos Aires apenas para sorrir na volta olímpica ao lado do sucessor – que ainda levantaria em trabalho “inteiramente solo” a Supercopa naquele 1996, na única vez que o torneio foi vencido com 100% de aproveitamento, e a Recopa em 1997, últimas taças internacionais do Fortín.
Copa Sul-Americana de 2004: apesar de perder a final da Libertadores de 2004, Carlos Bianchi estava mais do que credenciado para nova tentativa de carreira europeia após fracassar na Roma, rumando ao Atlético de Madrid. Seu primeiro sucessor no Boca para o segundo semestre foi Miguel Ángel Brindisi, velho ídolo auriazul como jogador – fora o grande parceiro de Maradona na conquista argentina de 1981. A pressão foi demais para Miguelito, que não conseguiu bons resultados. A gota d’água deu-se após derrota de 2-0 no Superclásico pelo Apertura, em 7 de novembro. Em paralelo, treinou o Boca em seus três primeiros compromissos na Sul-Americana, cuja caminhada para os cinco restantes foi conduzida sob Jorge Benítez, por sua vez ídolo do elenco bi da Libertadores em 1977-78, as primeiras erguidas pelo clube. Ao levantar a Sul-Americana, El Chino tornou-se o primeiro (e ainda único) campeão continental como jogador e técnico entre os xeneizes.
Copa Sul-Americana de 2010: o maior cartaz da carreira de técnico de Brindisi quando fora chamado em 2004 pelo Boca dera-se dez anos antes, quando em três meses erguera o Clausura e (sobre o próprio Boca) a Supercopa de 1994 com um Independiente de belo futebol ao gosto da exigente torcida roja. Eram as primeiras taças em Avellaneda em meia década e as primeiras desde a aposentadoria do ídolo-mor Ricardo Bochini. Daniel Garnero era o camisa 10, sendo visto como o Bochini dos anos 90. Dany vem fazendo sucesso no Paraguai, com cinco títulos nacionais desde 2016 – um pelo modesto Guaraní e um tetra seguido pelo Olimpia. Mas nem ele dera jeito no Independiente de 2010. Com o time na lanterna do Apertura, só trabalhou nos dois primeiros jogos da campanha que encerrou o maior jejum continental do Rey de Copas. Ricardo Pavoni, xerife do elenco tetra na Libertadores de 1972-75, assumiu interinamente no terceiro jogo e a trajetória subsequente no acidentado título sobre o Goiás deu-se com Antonio Mohamed – ainda que às custas de um desleixo total no Apertura, que a longo prazo resultaria no rebaixamento na temporada 2012-13.
Copa Argentina de 2013-14: já era 7 de maio de 2014 quando o Huracán estreou no torneio, ainda sob o comando de Frank Kudelka. Embora tenha classificado o sofrido Globo às semifinais, em paralelo não conseguia alçar voo seguro na disputa da segunda divisão, ainda que generosamente dez clubes fossem coroados com o acesso naquele segundo semestre de 2014. Assim, renunciou ao cargo em 1º de novembro, após levar de 3-0 do Sportivo Belgrano na segundona. O filé mignon ficou para Néstor Apuzzo, que 24 dias depois deu a volta olímpica na Copa após vitórias sobre Atlético de Rafaela e Rosario Central, finalizando 41 anos de jejum quemero em títulos de alto nível. De quebra, Apuzzo garantiu em dezembro também o reacesso à elite para a equipe do bairro de Parque de los Patricios.
Bônus: primeiro campeão nacional, o Bahia vencedor da Taça Brasil de 1959 foi comandado majoritariamente por Geninho, que esteve inclusive nos dois primeiros jogos das finais contra o Santos. Mas muito tempo se passou até o terceiro (só realizado já em março de 1960) e a saudade da família pesou para Geninho renunciar. E quem assumiu para a partida derradeira foi o argentino Carlos Volante, como contamos nesse Especial. E já contamos nesse outro sobre a trajetória curiosa de Volante, cujo sobrenome tornou-se sinônimo do meia recuado no Brasil e além após seu sucesso como jogador do Flamengo. Como técnico, já tinha renome à frente do “Rolo Compressor” do Internacional dos anos 40 e na própria Bahia, fomentando o Bavi ao desfazer jejum de 44 anos pelo Vitória campeão de 1953, década em que o Leão passara a priorizar seu departamento de futebol.