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80 anos de Alberto Rendo, raríssimo ídolo nos rivais Huracán e San Lorenzo

“Se há alguém que poderia mediar e ser exemplo na crescente violência que envolve o duelo San Lorenzo-Huracán, esse é Alberto Rendo”, começa o perfil dedicado a El Toscano na edição especial onde a revista El Gráfico, em 2011, elegeu os cem maiores ídolos sanlorencistas, descrevendo-o também como alguém que “representa o folclore saudável do clássico de bairro”. Três anos antes, o Clarín elegeu os cem maiores ídolos huracanenses e expôs um retrato similar ao inclui-lo também: “há muitos poucos futebolistas que podem considerar-se ídolos sem fronteiras. Como ser querido em dois clubes tão antagônicos como Huracán e San Lorenzo?”. Jogador e técnico no Ciclón e no Globo, Rendo também é um dos dois únicos a defender a Argentina tanto como cuervo como também como quemero. Trajetória peculiar resgatada hoje, quando o ex-volante e ponta faz 80 anos.

“Sou torcedor do Huracán, me formei aí e sinto as cores do Globo pese em depois ter passado ao San Lorenzo – e me identifiquei com seu jogo, a ponto de que ganhamos invictos o Metropolitano de 1968” e “não tenho nenhuma recordação ruim sobre o Huracán. Mas se nascesse de novo, gostaria de ser cantor” seriam palavras do próprio Rendo registradas naquele Clarín. Já aquela El Gráfico teve outra declaração dele: “as camisas não se beijam, se defendem. E eu fiz isso com as duas”. No Diccionario Azulgrana, também publicado em 2008, complementou: “eu gosto dos dois. Sempre queria ganhar com a camisa que tinha. Um dia, fiz um gol no Huracán e El Bambino Veira me dizia que gritasse, que gritasse porque estavam me xingando. Nunca fiz isso”.

Nascido e crescido no bairro de Pompeya, as idas e vindas de Rendo entre os bairros próximos de Parque de los Patricios e de Boedo começaram em outro clube da área, o extinto Piraña, também de Parque de los Patricios. Ainda juvenil e como ajudante de lavanderia, chegou ao Huracán (“me haviam expulsado de dois ou três clubes… mas eu queria jogar no Huracán e não queria que ninguém me recomendasse… sempre tive esse amor próprio de agora”, declararia já em 1968), atuando como atacante. A estreia no time adulto veio quase como um presente de aniversário: foi em 30 de dezembro de 1958, em vitória de 4-1 sobre o Vélez pela Copa Suécia. A Copa Suécia foi originalmente um torneio-tampão para manter os times em atividade durante a Copa do Mundo de 1958 ao passo que o campeonato argentino ficaria suspenso.

Mas a ressaca pela decepcionante campanha da seleção no mundial empurrou cada vez mais o torneio com a barriga, a ponto de ele só vir a ser finalizado já em 1960 (na maior conquista futebolística do sumido Atlanta). Era a última rodada da fase de grupos, sem que Huracán ou Vélez tivessem chances de classificação à final. Rendo aproveitou para estrear muito bem: fez simplesmente três gols naquele jogo. Ao fim do ano em que se despedia o ídolo Norberto Méndez, maior artilheiro das Copa América, a torcida parecia ganhar um novo goleador. Algo longe da realidade em 1959. Recuado à meia-direita, não balançou as redes, mas integrou uma campanha aceitável do Huracán: embora em 8º, o Globito, que iniciou o torneio estando ligeiramente ameaçado de rebaixamento pelos famigerados promedios, ficou a só três pontos da terceira colocação mesmo improvisando o xerife Néstor Rossi como jogador-treinador. Isso terminou ofuscado pela taça ter voltado ao rival San Lorenzo após treze anos, mas os quemeros voltaram a vencer os dois jogos anuais contra o Boca após vinte anos – algo que jamais voltou a ocorrer desde então.

O grande destaque daquela campanha foi outro Rossi, o Oscar Rossi (presente na Copa de 1958), artilheiro do elenco com dezesseis gols em trinta jogos. Ele acabaria reforçando o próprio San Lorenzo para a primeira Libertadores da América, em 1960 – fez inclusive o primeiro gol argentino na competição, contra o Bahia. Coco Rossi logo se converteria no primeiro jogador aproveitado pela seleção vindo dos dois rivais, algo que só Rendo repetiria. Além deles dois, somente o “italiano” campeão mundial Luis Monti e o tal Héctor Bambino Veira também foram incluídos naquelas duas listas de cem ídolos da dupla, enquanto Jorge Iglesias, na lista dos cem huracanenses, teve verbete destacado no Diccionario. Rendo apareceu na seleção já em 1960, mas inicialmente na olímpica. Nos Jogos de Roma, até marcou dois gols, insuficientes para evitar a segunda colocação na chave – só a líder Dinamarca avançaria aos mata-matas. Os anos de 1960 e de 1961 (sob expectativa alta, quando uma pedra virou vidraça: o Globo foi treinado por José Gabriel González “Pepe” Peña, jornalista da El Gráfico) já não foram tão marcantes ao Huracán, longe das cabeças e do rebaixamento e com uma única vitória em vinte duelos contra os cinco grandes no período.

O primeiro gol de Rendo na liga argentina só viria em 1961, em 4-1 no Ferro Carril Oeste. Já o torneio de 1962 começou promissor, com três vitórias seguidas – incluindo a única no clássico com o San Lorenzo entre 1957 e 1968. Derrotado só uma vez nas treze primeiras das trinta rodadas, o time murchou no segundo turno e terminou em oitavo. Em 1963, veio então a melhor campanha huracanense na década, um sexto lugar. Curiosamente, foi de via inversa: o time não venceu nas nove primeiras rodadas para então realizar uma arrancada que lhe deixou a três pontos do pódio. Já um volante, Rendo (sem gols em 1962) marcou três vezes, em 1-1 com o River e em 3-1 no Racing. A campanha de 1964 já foi morna, longe do título e da queda. Mas Rendo somou seis gols.

Já apelidado de Toscano por uma suposta semelhança com Toscanito, personagem do filme Pelota de Trapo, ele estreou pela seleção principal naquele ano, e no Maracanã: marcou até gol contra Eusébio & cia no triunfo de 2-0 sobre Portugal, na estreia da Argentina na Copa das Nações. Organizada pelo Brasil em comemoração aos 50 anos da seleção brasileira, a Copa das Nações foi o maior triunfo internacional da Albiceleste até a Copa de 1978. Rendo seguiu titular para os outros dois jogos da campanha: um 3-0 dentro do Pacaembu sobre Pelé e outros bicampeões mundiais e o 1-0 sobre diversos ingleses que terminaram campeões dali a dois anos. Ainda em 1964, mais dois jogos pela Argentina, pelo troféu binacional Copa Carlos Dittborn, contra o Chile: 5-0 em Buenos Aires, com gol de Rendo, e 1-1 em Santiago.

Rendo já aspirava uma transferência ao futebol europeu. Mas então veio a surpresa, nas suas palavras: “acontece que um dia cheguei com a mochila ao treino do Huracán e me disseram: ‘o que fazes aqui, não sabia que te vendemos ao San Lorenzo?’. ‘O quê?’, respondi. ‘Vão me matar’. Eu, que queria viajar 14 mil quilômetros para jogar na Itália, terminei caminhando as 14 quadras que separavam minha casa do campo do San Lorenzo” foi uma declaração destacada naquele Clarín, enquanto o Diccionario Azulgrana registrou que “no San Lorenzo, pensei que iam me matar. Mas fui sincero e as pessoas me entenderam”. Veira, seu colega nos dois clubes, porém, ofereceu em entrevista de 2013 um cenário mais sadio para aqueles tempos: “antes, era diferente. Eu metia o gol do San Lorenzo no clássico e à noite ia jogar bilhar na sede do Huracán. Na mesma noite da partida! E não acontecia nada”. Rendo foi a contratação mais cara do rival para a temporada de 1965 e, já como azulgrana, reapareceu na seleção para três amistosos entre junho e julho: amistosos de 0-0 contra a França em Paris, 0-0 com o Brasil no Maracanã e 1-1 com o Chile em Santiago.

De maior a menor na seleção: agachado ao meio no Maracanã pela Copa das Nações em 1964 (atrás dele, Antonio Rattín, José Ramos Delgado e Amadeo Carrizo) e como quase-herói contra o Peru em 1969

Só que o ano do San Lorenzo, marcado pela tragédia que custou o braço do talentoso Victorio Casa, foi morno, ainda que fosse o único a derrotar na Bombonera o campeão Boca – gol de Narciso Doval, outro a jogar nos rivais de bairro antes de virar a casaca por Flamengo e Fluminense. Rendo contribuiu com três gols na campanha oitava colocada, e acabou não relembrado pela seleção para as eliminatórias da Copa do Mundo, desenroladas no segundo semestre. Só voltaria a defender a Argentina após o Mundial. O ano de 1966, sob reforço de outro ex-huracanense (o goleiro Carlos Buttice, depois jogador de America-RJ, Bahia e Corinthians) começou no mesmo ritmo até uma série de sete vitórias seguidas (incluindo a primeira em cinco anos contra o River e um 4-1, com gol de Rendo, no clássico com o Huracán) saltar o Ciclón ao quarto lugar. Em 1967, o calendário dividiu-se entre os torneios Metropolitano e Nacional. O San Lorenzo dos chamados Carasucias foi bem especialmente no primeiro, terminando a dois pontos da classificação às semifinais.

Em agosto, Rendo também esteve na vitória por 2-1 sobre o Atlético de Madrid em amistoso em Boedo. El Toscano voltou à seleção em amistosos não-oficiais de fim de ano, contra os combinados regionais de Posadas (6-1) e de Comodoro Rivadavia (4-0). Em 1968, então, os cuervos fizeram história. Mesmo desfalcado de Doval, suspenso por quase um ano após assediar uma aeromoça, o time treinado pelo brasileiro Tim tornou-se o primeiro clube campeão argentino invicto no profissionalismo – e derrotando na final o Estudiantes recém-campeão da Libertadores e logo campeão mundial. Los Carasucias viravam Los Matadores. O equilibrado Rendo era o único jogador que Tim autorizava a ausentar-se das concentrações, inclusive. O fôlego não se manteve para o Torneio Nacional, embora quatro pontos tenham separado o Sanloré da liderança. Mas serviu para Rendo ter seu ano de maior uso pela seleção. Foram sete jogos oficiais, com dois gols, incluindo sobre o Brasil (representado por uma seleção mineira em Belo Horizonte, os canarinhos ganharam por 3-2). O problema é que ele justamente não pôde vencer nenhum.

Em 1969, Tim voltou ao Brasil e o elenco armado por ele acabou fazendo um Metropolitano discreto – embora se classificasse na rodada final, em pleno clássico com o Huracán, para disputar o Nacional. Rendo marcou o gol da vitória por 2-1. Ele então voltou uma última vez para a seleção: foi para o jogo final das eliminatórias à Copa de 1970. A Argentina precisava vencer em casa o Peru para classificar-se e assim agendou a partida para La Bombonera. Mas a Blanquirroja não se intimidou, colocando-se duas vezes à frente do placar. Coube a Rendo, pedido pela torcida, entrar no decorrer do segundo tempo e pôr fogo: cavou o penal do 1-1 e anotou no antepenúltimo minuto o golaço do 2-2 que permitiu alguma sobrevida no finalzinho. “Foi o gol mais triste da minha vida, nem festejei. Peguei a camisa rápido para tentar buscar o terceiro gol que nunca chegou. Nunca vi tanta amargura em um vestiário. Eram vários companheiros chorando. Foi uma decepção coletiva e pessoal, pois era a minha última oportunidade de jogar um Mundial”, declararia El Toscano ao site da FIFA.

Ao livro Así Jugamos, detalhou mais: “veja, o Peru não era a equipe que as pessoas acreditam. Rubiños não era um bom goleiro, Chumpitaz não era craque, nesse dia não brilharam nem Cubillas e nem Baylon e Cachito Ramírez, que nunca havia feito um gol, fez dois. Ficamos fora. Foi a pior experiência da minha vida. Impressionante ver tanta amargura num vestiário, alguns choravam, [o técnico Adolfo] Pedernera fumava em um canto. Fiquei só num lado, me meti no chuveiro e quando saí não havia ninguém, vim caminhando sozinho desde La Bombonera até minha casa na rua Beazley, em Pompeya, passei caminhando por trás do campo do Huracán. Não estavam nem meus pais nem meu irmão, me atirei na cama, comi uma barra de chocolate e dormi”. Após a desclassificação argentina, foi disputado o Torneio Nacional. O Ciclón começou mal, embalando tarde demais, mas a tempo de ficar a dois pontos do campeão Boca. O torneio marcou a primeira despedida de Rendo em Boedo, após 142 jogos e dez gols oficiais.

Com o futuro ídolo botafoguense Rodolfo Fischer e com Héctor Veira no San Lorenzo. Rendo depois voltou ao Huracán, acompanhado por Veira (depois jogador de Palmeiras e Corinthians)

Ele acertou seu regresso ao Huracán (inclusive se permitira participar de uma reportagem da El Gráfico a reunir camisas 8 históricos do clube: os citados Norberto Méndez, Oscar Rossi, ele e Miguel Ángel Brindisi, que despontava na época), acompanhado do colega Héctor Veira. O Libro de Oro de San Lorenzo, publicado em 2014, lamentou: “com os afastamentos de Héctor Veira e Alberto Rendo (ambos ao Huracán), o San Lorenzo iniciou o efêmero Torneio Metropolitano com resultados adversos que o levaram a não ter chances pelo título apesar da boa reação final. No Nacional, continuaram os altos e baixos e não se pôde classificar às instâncias finais para brigar pelo campeonato”. Recebido de volta “com os braços abertos”, na descrição do Clarín, Rendo inclusive pôde marcar pela primeira vez como quemero no clássico com o San Lorenzo, vencido por 3-2 na oitava rodada. Mas o Globo precisou lutar para não cair, jogando ao fim da temporada regular a primeira etapa de um torneio reclassificatório que definiria os sobreviventes na elite (ali salvou-se sem sustos, registrando inclusive sua maior goleada no profissionalismo, um 9-0 no Colón).

O clube reagiu em 1971 contratando para técnico a lenda Osvaldo Zubeldía, comandante do Estudiantes tri da Libertadores entre 1968-70, mas permaneceu instável a ponto de Zubeldía dar lugar ao iniciante César Menotti ainda no decorrer do Metropolitano. O time terminou em nono, mas definindo o campeonato ao surpreendentemente derrotar de virada fora de casa na rodada final o então líder Vélez, que acabou ultrapassado pelo Independiente. Rendo prosseguiu a carreira por mais um ano no Santos Laguna mexicano (onde Veira novamente o acompanhou), após totalizar 112 jogos e quinze gols somando-se suas duas passagens pelo Huracán. Ele regressou ao San Lorenzo como técnico, em meados de 1975, para substituir o mesmíssimo Osvaldo Zubeldía. O elenco havia faturado o Torneio Nacional de 1974, mas a crise institucional levou a desmanche e declínio técnico. Sob Zubeldía e depois Rendo, o time terminou só em 11º no Metropolitano. Rendo pôde trabalhar melhor no Nacional, onde o Ciclón terminou em terceiro.

Mas a permanência do Toscano ficou insustentável em 1976; mesmo classificando-se ao dodecagonal final do Metropolitano, ali os cuervos só somaram seis pontos em onze rodadas em meio a uma sequência de dezesseis jogos sem vitória, a pior que o clube já teve. O time ainda perdeu os cinco clássicos com o Huracán (que, em contraste, fora vice-campeão em 1975 e em 1976) ao longo do ano e a gota d’água foi uma derrota de 3-0 contra o Ferro. Não demorou muito e Rendo reapareceu no próprio Huracán: foi em 1978. Desde janeiro, o time viveu o desfalque de Osvaldo Ardiles, Héctor Baley e René Houseman, focados na longa concentração promovida pela seleção argentina rumo à Copa do Mundo. Chegou-se a brigar contra o rebaixamento, distando seis pontos da degola. Após a Copa, Ardiles foi vendido ao Tottenham Hotspur, mas o Huracán de Rendo parecia que daria liga: com Baley e Houseman de volta, fez bom papel no Torneio Costa do Sol, em agosto, em Málaga. Após vencer os donos da casa, o time só foi derrotado de virada na prorrogação pelo Athletic de Bilbao.

Ainda assim, como o Metropolitano só terminou em outubro, El Toscano não ficou para o Nacional, sendo substituído por Cayetano Rodríguez. Sua carreira de técnico ainda teria capítulos no All Boys, Deportivo Laferrere e Deportivo Mandiyú de Corrientes, sem maiores realizações. Recentemente, ele iniciou um novo passo pelo clube de Boedo, como olheiro e técnico infantil – em 2014, chegou a ser entrevistado para um documentário brasileiro (ainda sob produção) sobre Doval, um dos colegas que teve nos dois lados da segunda rivalidade mais expressiva de Buenos Aires. Para sempre atrelado à dupla, Rendo dividiu a própria família: Romina e Diego, seus dois filhos mais velhos, são torcedores do Globo. “E Melisa, a mais nova e inteligente, é do Ciclón”, espetou o Diccionario Azulgrana

O folclore entre San Lorenzo e Huracán já rendeu um Especial de anedotas quando o clássico voltou à elite, em 2015, ano em que também destacamos o centenário do “maior clássico de bairro do mundo”. E em 2012, já havíamos feito uma listagem de vira-casacas.

Ainda como jogador do San Lorenzo, reuniu-se em 1969 com outros históricos camisas 8 do Huracán (Norberto Méndez, Miguel Ángel Brindisi e Oscar Rossi). À direita, em foto recente como técnico infantil dos azulgranas
https://twitter.com/CaslaAntifa/status/1085219787565875201

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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