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70 anos da largada do Racing para o primeiro tri seguido do profissionalismo

O técnico Guillermo Stábile, Ernesto Gutiérrez, Higinio García, Antonio Rodríguez, Saúl Ongaro, Nicolás Palma e Juan Fonda; Juan Carlos Salvini, Norberto Méndez, Rubén Bravo, Llamil Simes e Ezra Sued

“O passado volta. A história se repete. Os muchachos de hoje se unem em um estreito abraço com os muchachos de ontem para celebrar jubilosos o triunfo que une farda que é tradição e relíquia, que é visão de otimismo e expressão de progresso: a farda celeste y blanca do Racing Club. É nome que se pronuncia com carinhoso respeito, quando não com juvenil entusiasmo ou com sotaque nostálgico. O Racing Club é um conceito antes de um simples nome. Quem esteja à margem de bandeiras e tenha vivido a trajetória do futebol nosso tem que alegrar-se espontaneamente por esta magnífica vitória do Racing no campeonato de 1949. E temos de celebrar, ademais, o que neste triunfo há de recuperação, o que se demonstra em capacidade de luta, em riqueza de espírito. As centenas de milhares de aficionados do futebol que formam a legião de simpatizantes do Racing Club, espalhados por todos os âmbitos do país, são iguais em sua índole aos de todos os outros clubes, mas se distinguiam particularmente por seu apego ao passado. Era preciso que se ‘atualizassem’, e para isso resultava imprescindível a máxima conquista, a que dá renome e força”.

Assim começava o sensível relato da El Gráfico na edição pós-jogo de partida encerrada após semanas, literalmente. Celebrava um clube que sempre pôde orgulhar-se, ao menos, em ser um pioneiro. O Racing, afinal, foi a primeira equipe “latina” a ser campeã argentina, em 1913, encerrando duas décadas de conquistas exclusivas de clubes da comunidade britânica. Como se não bastasse, seis títulos vieram em sequência àquele, em um hepta seguido. Primeiro clube argentino campeão mundial (em 1967) e da Supercopa (em 1988), o time de Avellaneda jamais esteve perto de ser sequer igualado quanto ao hepta: o máximo que houve desde então foram tricampeonatos seguidos. Pois coube a La Academia lograr o primeiro deles após aquele ciclo. Também foi, inclusive, o primeiro tri do profissionalismo, em largada de onze minutos iniciada há 70 anos. E que de quebra encerrava um largo jejum.

Após o hepta de 1913-19, o clube ainda foi campeão em 1921 e em 1925 no amadorismo – que àquela altura, a bem da verdade, já era “marrom”, a ponto de seu astro Natalio Pertinetti (único remanescente do hepta a ir a uma Copa do Mundo, em 1930) se permitir a recusar o Real Madrid. Os nove títulos faziam do Racing a equipe em atividade mais vezes campeã e, não por acaso, o clube mais popular do país juntamente com o Boca. Mas então, com o envelhecimento do elenco de 1925, sobreveio uma estiagem.  A equipe até ficou a um ponto do título em 1932, mas nem a aparição fulgurante do superartilheiro Evaristo Barrera (dono de incríveis 136 gols em 142 jogos) pouco após aquela campanha deu jeito.

Um dos primeiros resultados maiúsculos da campanha: 5-2 no clássico com o Independiente dentro da casa rival

O Racing começava uma sina: a de depender de ciclos pontuais de astros alinhados que propiciavam algumas alegrias em curto período, pois imperava institucionalmente sérios problemas de (des)organização administrativa. Seria assim com a mesma espinha dorsal campeã em 1958 e em 1961; com El Equipo de José campeão de tudo no biênio 1966-67 e que se manteve no páreo por mais dois anos; com a equipe vencedora da Supercopa e que dava pinta de título na temporada 1988-89; e com o elenco vice da Supercopa de 1992, com muitos remanescentes a um ponto do título do Apertura 1992; ou com os vices do Apertura 1995 que ficaram até as semifinais da Libertadores de 1997. Já havia sido assim com os tricampeões de 1949-51.

A campanha de 1932 vinha sendo a única em que o clube lutou seriamente pelo título desde 1925. Nas outras vezes em que terminou no pódio, a distância ao líder era excessiva. Isso quando conseguia: ficou comum o time terminar abaixo dos cinco primeiros, por vezes beirando a metade da tabela. Algo grave em uma liga onde os grandes eram cinco – ele, o rival Independiente, o San Lorenzo e a dupla Boca e River, que cooptara muitos torcedores a partir de títulos e investimentos em astros a partir dos anos 30. O ano de 1948, então, parecia dar jeito na seca que perdurava desde 1925. Foi, inclusive, o ano de chegada de muitas peças-chave do tri.

O beque direito Higinio García na verdade voltava após três anos, passando por Atlanta em 1946 e pelo Tigre em 1947 para tornar-se então o recordista de presenças no ciclo do tri (foram 99 jogos). De caras novas à torcida, chegaram em 1948 o goleiro Antonio Rodríguez, brilhante no Lanús após não ter espaço no River, seu clube de formação; o adolescente Manuel Blanco, de 18 anos, aparecia como sombra ao titular Rubén Bravo para ficar até 1957; e do Huracán vinha um formidável trio: o ponta-direita Juan Carlos Salvini e a dupla de meias Llamil Simes e Norberto Méndez, que àquela altura já era o maior artilheiro das Copa América, com 17 gols ao longo do tri de 1945-46-47 da Albiceleste. Salvini, inclusive, figurou na edição de 1946.

O lance eternizado como gol histórico, do caído Galgiardo sobre Carrizo e o River, no Monumental

Já Simes entraria para a história também como autor do primeiro gol do Cilindro racinguista, inaugurado já em 1951. Eis aí outra façanha daquele título de 70 anos atrás: com a reforma de seu estádio, La Acadé mandou suas partidas sobretudo na quase vizinha Bombonera ou no Gasómetro sanlorencista. Quem já estava no clube desde antes eram, sobretudo, o citado Rubén Bravo (maestro de 88 gols em 149 jogos em estadia de 1946-52, ainda que não tenha honrado a fama no Botafogo depois); o veterano lateral Saúl Óngaro, reserva da seleção campeã de 1946; e três reservas da campeã de 1947: o ponta-esquerda Ezra Sued e os defensores Nicolás Palma e Ernesto Gutiérrez; e o próprio técnico da seleção, Guillermo Stábile, a se alternar nas duas funções.

Em 1948, esses nomes recolocavam o Racing no páreo por um título, impressão reforçada quando o concorrente River (da revelação Di Stéfano) começou a decair. Começaram com um 4-1 sobre o Boca dentro da Bombonera, dois de Simes e dois de Bravo. Ainda no primeiro turno, vieram um 4-0 no Lanús, um 3-0 no Gimnasia LP, um 5-2 no Rosario Central, um 3-2 no Clásico de Avellaneda dentro da casa do Independiente, um 4-0 no Platense, um 6-2 fora de casa sobre o Banfield e um 3-1 no San Lorenzo. Tudo parecia bem até as cinco rodadas finais, altura em que o time já havia também ganho de 6-3 do Tigre, por 2-1 sobre o concorrente River e por 4-1 sobre o Huracán do craque Adolfo Pedernera – o maior da história, para Di Stéfano. O Racing era o líder quando então sobreveio a famosa greve de jogadores.

Sem seus astros, o time então levou de 6-2 do Rosario Central, perdeu o dérbi com o Independiente e só empatou em 1-1 com o Platense. Nas duas rodadas que restavam, preferiu o W.O. e foi punido com quatro pontos a menos na tabela. Quem se deu bem com o imbróglio generalizado foi justamente o rival. O Independiente, que vinha à espreita, ganhando de 4-3 do River dentro do Monumental na última rodada antes da greve, teve melhor sorte com o quadro de amadores que o representou nas rodadas seguintes; só foi derrotado na rodada final, após garantir na penúltima a taça, e encerrou seu próprio jejum (dez anos).

A surra de 6-1 no San Lorenzo, calando críticas após a suspensão do jogo contra o Boca

O campeonato de 1949 começou em abril, com a greve aparentemente solucionada, com a instituição de um salário mínimo à categoria dos jogadores. Não era o único pleito do sindicato, mas mesmo essa concessão veio tarde. No decorrer do torneio, muitos astros rumaram ao exterior, em especial às ligas mais atrativas do mundo na época: a italiana e a do Eldorado Colombiano. Isso naturalmente enfraqueceu as camisas mais pesadas, com o Huracán (perdendo Pedernera para o Millonarios) e o Boca (perdendo o artilheiro Mario Boyé ao Genoa) brigando até a rodada final pela primeira vez contra o rebaixamento enquanto o campeão Independiente despencava para nono após Mario Fernández rumar ao Santa Fe enquanto o Deportivo Cali cooptava Oscar Sastre, Camilo Cerviño – os três haviam participado da vitoriosa Copa América de 1947.

O River viu Di Stéfano, o ponta Hugo Reyes e o xerife Néstor Rossi acompanharem Pedernera no Millonarios enquanto o malabarista José Manuel Moreno preferiu levar a Universidad Católica a seu primeiro título chileno naquele 1949. Mas o time de Núñez seguia com remanescentes respeitáveis, sobretudo com o goleiro Amadeo Carrizo, enfim firmado na titularidade, e com os experientes Ángel Labruna e Félix Loustau como atacantes remanescentes da saudosa La Máquina que encantava no início da década. O Millo seria o grande concorrente à Academia, que, se derrapara com os amadores no fim de 1948, soubera reter suas figuras (o San Lorenzo, por exemplo, perdera René Pontoni, ídolo do Papa, ao Santa Fe; seu então maior artilheiro, Rinaldo Martino, à Juventus; e o classudo zagueirão Oscar Basso faria escala Internazionale antes de brilhar no Botafogo). Assim, em um campeonato avaliado de nível técnico geral medíocre, times pequenos se destacaram e o gigante sem desfalques se sobressaiu com tranquilidade.

Afinal, além de manter suas peças, o Racing pôde até receber de volta o beque esquerdo José García Pérez, que voltava de uma experiência no Tigre após já ter defendido a equipe de Avellaneda de 1942 a 1946. A única cara realmente nova era a de Alberto Rastelli, defensor que reforçou o Racing com o torneio já em andamento. Homem do trabalho sujo, chegou inclusive temeroso de sua recepção após ter distribuído patadas nos futuros colegas em jogo prévio, quando ainda defendia o Gimnasia. Até lá, La Acadé vinha de somente duas derrotas nas dez primeiras rodadas – uma delas, para o próprio River (3-0 na “Bombonera racinguista”), já na quinta rodada. Por outro lado, soube aplicar um 4-2 no Huracán, com El Turco Simes fazendo valer por quatro vezes a lei do ex, enquanto o comparsa Turco Sued (o bom entrosamento de ambos na esquerda geraria lendas de que ambos até conversariam em árabe, o que não era bem verdade; Sued era inclusive judeu) anotava o do triunfo mínimo sobre o Vélez em Liners.

O desespero do Boca com a anulação do seu gol há 70 anos

Mas foi a partir da 9ª rodada que o elenco engrenou, emendando uma sequência de resultados sonoros: 6-1 no Lanús, 5-2 sobre o Independiente na casa rival, 6-2 no Boca (com Simes anotando outra vez quatro gols), 3-1 fora de casa no San Lorenzo e 4-0 (três de Simes) no Ferro Carril Oeste. A série foi interrompida com uma derrota de 2-0 para a grande surpresa do campeonato, o Platense, 3º colocado no certame – e que logo perderia o goleirão Julio Cozzi (titular da Argentina campeã continental de 1947) e o maestro Antonio Báez para o mesmo Millonarios de Di Stéfano e Pedernera. A Academia tratou de retomar a fase, impondo um 4-1 no Rosario Central e um 5-1 em La Plata sobre o Estudiantes, fechando um ótimo primeiro turno com uma vitória mínima sobre o Atlanta.

Placares mais modestos seriam a tônica do segundo turno: 2-1 no Banfield, clube do artilheiro do campeonato, o mesmo Juan José Pizzuti (autor do gol banfileño ali) que posteriormente se tornaria a maior figura racinguista da história; 1-0 fora de casa sobre o Huracán, em nova lei do ex aplicada por Simes; 1-1 com o Tigre; um ponto já fora de curva com um 4-1 no Vélez para a rotina voltar na 22ª rodada. Rotina de placar magro, pois o que o Racing conseguiu foi o ineditismo de uma vitória sobre o concorrente direto River dentro do Monumental. Julio Gagliardo, de peixinho, foi o homem que vazou Carrizo na ocasião, tão importante (o Millo lideraria se vencesse, atraindo para o jogo até o casal Perón) que mandaria confeccionar cartões de si exaltando-se como “Julio Gagliardo, autor do gol histórico”. Rubén Bravo, por sua vez, foi o homem da rodada seguinte, anotando os três gols no 3-1 sobre o Newell’s, o 5º colocado.

O líder então fraquejou, perdendo como mandante para o Chacarita (2-1) e sem bater o Lanús (2-2), mas já pôde triscar na taça na 27ª rodada. Foi quando Salvini, Simes e El Tucho Méndez assinaram na Bombonera um 3-0 no clássico com o Independiente. A Academia voltaria a La Boca na rodada seguinte, agora para enfrentar os donos da casa, em 30 de outubro. Francisco Campana pôs os xeneizes na frente aos 18 minutos. Aos três do segundo tempo, Méndez empatou. Faltando onze minutos, Bravo virou, desencadeando uma confusão generalizada: para a desesperada torcida da casa, El Turco Sued fornecera em impedimento a assistência. O jogo foi interrompido e os pontos em disputa foram sobrestados. E o Racing tratou de mostrar que não precisava de ajuda do apito: De volta à Bombonera em 6 de novembro para enfrentar o San Lorenzo, exibiu um show de Méndez e Simes diante do antigo rival dos tempos de Huracán – El Tucho marcou três e El Turco, outros dois, com Sued completando os 6-1. Em 13 de novembro, foi a vez de um 3-1 fora de casa no Ferro para no dia 20 ser a vez de receber aquele forte Platense.

A volta olímpica na Bombonera após um jogo de onze minutos contra o Boca

Pedra no sapato da Academia, o clube marrom igualou em 2-2, com gols de Báez e Santiago Vernazza enquanto Sued e Salvini anotaram os dos líderes. A rodada seguinte ocorreria no dia 27, contra o Rosario Central, mas em 23 de novembro o Racing já voltava a campo. Era preciso jogar aqueles onze minutos finais que faltavam da partida contra o Boca. O polêmico gol de Bravo estava convalidado e os donos da casa atacaram freneticamente no parco tempo. Até conseguiram um empate mediante Juan José Ferraro, mas a arbitragem do inglês Maddison esfriou tudo ao considerar faltosa a sua dividida com o rebote do goleiro Rodríguez – gerando algumas cenas lamentáveis, que não impediram que as arquibancadas terminassem aplaudindo ao fim a efetivação da vitória racinguista por 2-1. Com essa confirmação, abriu-se sete pontos de vantagem já insuperáveis com três rodadas para se disputar (na época, a vitória ainda valia dois).

As anotações da El Gráfico após o jogo também foram proféticas: “tudo isso pensando na possibilidade de que o Racing de 1950 seja ainda melhor que este de 1949, (…) as perspectivas que se apresentam são magníficas. Isso é importante: o Racing só está começando, é um team que se formou no ano passado. É uma máquina que tem que andar muito mais porque está ajustando-se. Considerando a bondade do material que a compõe, lógico é admitir que seu funcionamento irá aumentar. Se olharmos ao redor, as perspectivas do Racing são todavia mais lisonjeiras. Justo é assinalar no caso particular do Racing o acerto que teve nas aquisições, a decisão para resolver sim dilações o que convinha, e a certeira visão com que afrontou a crise da greve e reparou suas consequências sem prejuízo algum. O mesmo critério governou para escapar do perigo que significou o êxodo de jogadores, tão sentido por outros clubes e felizmente salvo pelo Racing. Já se vê bem, como dizia Stábile na charla que teve conosco, que não foi só a equipe no campo que andou bem. Poderia dizer-se que a boa marcha do team sobre o gramado não foi senão o reflexo – a dobragem – da regularidade e harmonia com que funcionou a complexa maquinaria que é a instituição. Lograda essa valiosa e difícil homogeneidade, o futuro se apresenta realmente propício para os racingusitas. Por isso, dizemos no título que só está começando”.

De início, a ressaca pelo fim dos 24 anos foi tamanha que os campeões perderam os dois jogos seguintes (no primeiro, uma surra de 4-1 para o Central), algo ainda inédito na campanha. Mesmo assim, conservou-se uma vantagem de seis pontos para o vice River ao fim do torneio, com o interesse racinguista subsistindo na briga de Simes pela artilharia – ele anotou o gol de honra contra o Central e outro na rodada final, em 2-0 sobre o Atlanta, mas ficou um gol abaixo do banfileño Pizzuti. Mas estava formada a espinha-dorsal do time campeão com sobras também em 1950 (oito pontos de vantagem contra um renascido Boca reforçado com José Manuel Moreno), com o acréscimo pontual de Mario Boyé na posição de Salvini; e que em 1951 (com a grande alteração sendo Juan Carlos Giménez no posto de Óngaro) já dividia a Argentina contra si, com o concorrente Banfield reunindo a seu favor, sem êxito, as torcidas rivais já cansadas do domínio blanquiceleste. O título de 1949 serviu ainda para uma última alegria em vida ao ídolo Alberto Ohaco, oito vezes campeão argentino com o time no amadorismo, com o título de 1921 somado à presença no hepta inteiro. Considerada a maior figura racinguista nos primeiros 50 anos, ele faleceria em janeiro de 1950.

O ciclo do tri de 1949-51 ainda subsistiu com dois vices seguidos em 1952 e 1953, antes da tônica medíocre voltar até o título de 1958 – já sem qualquer remanescente dos primeiros tricampeões profissionais da Argentina.

À esquerda, outro ângulo da imagem anterior. À direita, Salvini (camisa 7) ergue Méndez, seu compadre desde os tempos de Huracán. É o fim de jejum de praticamente duas décadas e meia… e o início de um tricampeonato

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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