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15 anos do primeiro ouro olímpico – do futebol e do basquete!

Tévez e Ginóbili: por causa deles o prêmio de esportista argentino do ano foi dividido pela primeira e única vez

Há exatos 15 anos, a Argentina festejava em dose dupla: com Tévez e D’Alessandro como estrelas-mor (Messi ainda era um desconhecido que nem havia marcado seu primeiro gol profissional), foi campeã olímpica pela primeira vez no futebol – e muito bem, com 17 gols a favor e nenhum contra; em seguida foi, também pela primeira vez nos Jogos, vencedora em outro esporte dos mais populares no país, o basquete, embalada pela Generación Dorada de Ginóbili, Scola & cia. De quebra, encerrou-se um jejum de mais de meio século: o último ouro havia sido nas Olimpíadas de Helsinque, em 1952, com a dupla Eduardo Guerrero e Tranquilo Capozzo, no remo. Gols e cestas em Atenas também amenizaram recentes decepções hermanas em ambas as modalidades.

Como era 2004? Boca e River haviam acabado de protagonizar o maior Superclásico até então na Libertadores, ainda pela fase semifinal. A contratação recorde do Manchester United não era para sobrevalorizar Harry Maguire e sim para trazer o promissor adolescente Wayne Rooney, em reação ao título inglês invicto do Arsenal (nossa!). Aliás, a Inglaterra via José Mourinho recém-chegar ao Chelsea após levar o Porto de Deco ao título da Liga dos Campeões em final de zebras com o Monaco dos argentinos Ibarra e Bernardi. A própria Grécia foi outra zebra, vencendo o anfitrião Portugal (do adolescente Cristiano Ronaldo) duas vezes na Eurocopa, tudo acompanhado nas nascentes redes sociais: o Facebook foi lançado naquele ano, mas a febre inicial foi com o Orkut, e os fotologs antecediam o Instagram – sem usar-se Chrome ou o Firefox, que só saiu naquele ano também.

A polêmica na Ucrânia da vez era com o envenenamento que deformou o galã candidato presidencial anti-Rússia, em um ano onde o Leste Europeu aderia em massa à OTAN e à União Europeia e via a própria Rússia sofrer tragédia em escola atacada por chechenos. Houve atentado também em Madrid no ano em que partiram Reagan (e seu fã Johnny Ramone), Arafat, Brizola, pai & filho em Superman (Marlon Brando e Christopher Reeve) e, em pleno campo de futebol, o húngaro Fehér e Serginho. O astro musical a receber uma cinebiografia não era Freddie Mercury ou Elton John e sim Ray Charles, morto meses antes do lançamento; outra baixa no meio foi o guitarrista do Pantera, em pleno show.

As catástrofes naturais de outro filme, O Mundo depois de Amanhã, ficavam pequenas na vida real, com o ano acabando com um devastador tsunami no Sudeste Asiático (e com os argentinos chorando na véspera do réveillon o incêndio na Cromañón, versão portenha da tragédia da boate Kiss) e com o Brasil registrando seu primeiro ciclone, em Santa Catarina. Brasil que vivia o primeiro escândalo político pós-FHC (não o Mensalão, mas o Caso Waldomiro) e cujo futebol só apareceu naqueles Jogos no feminino: no pré-olímpico, Diego, Robinho e demais subiram no salto após eliminarem o anfitrião Chile de Valdivia e Beausejour e perderam a vaga para o Paraguai, mesmo só precisando empatar.

Ayala (2), Mascherano (5) e Colloccini (4) veem Adriano empatar a Copa América: semanas depois, desafogariam com Delgado (8), Heinze (6), Lux (18), Lucho (16), Tévez (10), D’Alessandro (15), Kily (11) e Rosales (12). Só Lux não estava na Copa América

Um bom prenúncio para o esporte argentino nos Jogos de Atenas veio na França: naquele ano, Roland Garros foi decidido por dois argentinos, Guillermo Coria e o vencedor Gastón Gaudio. Mas o futebol enfrentou forte decepção a semanas das Olimpíadas: além do Boca perder a Libertadores para o Once Caldas, Marcelo Bielsa fracassava novamente na seleção ao perder nos instantes finais (e depois nos pênaltis) a final da Copa América com uma seleção B do Brasil, sem o logo melhor do mundo Ronaldinho Gaúcho e também sem Roberto Carlos, Kaká e Ronaldo, este com folga para namorar Cicarelli. Os jogos na Grécia eram assim a desforra histórica a Bielsa e mais da metade dos vices: Tévez, D’Alessandro, Mascherano, Saviola, Clemente Rodríguez, Coloccini, Luciano Figueroa (ainda cabeludo), Lucho González, Mariano González, Mauro Rosales, Nicolás Medina e César Delgado eram sub-23 que haviam estado na Copa América; em negrito, os que enfrentaram o Brasil – contra quem Delgado fez o gol quase decisivo na final, aos 42 do segundo tempo.

Tévez e D’Alessandro, então, ficaram marcados como supostos provocadores pelas firulas para ganhar tempo nos acréscimos. Mascherano dedicaria o ouro aos demais vices da América que, veteranos, não teriam lugar nos Jogos. Destes, Bielsa escolheu Heinze, Kily González e Ayala, capitão e o único remanescente de outra decepção, a prata em 1996. A grande ausência entre os jovens foi Fernando Cavenaghi, então um matador com média superior à de Di Stéfano no River, mas ignorado desde o pré-Olímpico. El Loco também se deu ao luxo de abdicar de Leandro Romagnoli, também dentro da idade limite de 23 anos como Cavegol mas já um jogador de vidro e igualmente ausente no pré-Olímpico – cujas peças descartadas para Atenas foram Gastón Aguirre, Pablo Jerez, José María Calvo, Osmar Ferreyra e Franco Cángele (muitos deles chamados para aquele torneio eliminatório no Chile porque clubes europeus não haviam aceitado liberar Saviola, D’Alessandro e outros mais renomados). Leandro Fernández era outro do pré-Olímpico a ser inicialmente esquecido, mas acabou chamado já no meio da competição para o lugar do lesionado Nicolás Burdisso.

Na terra de Alexandre Magno e dos guerreiros que combateram em Troia (duas facetas da antiguidade que, como o polêmico A Paixão de Cristo, ganharam superproduções no cinema naquele 2004), Michael Phelps deu um banho (com o perdão do trocadilho) em outra promessa nas Olimpíadas, Cristiano Ronaldo: após a decepção na Euro, Portugal caiu na primeira fase, perdendo até para a surpresa Iraque na estreia. Os argentinos, do seu lado, davam um recado ao azar logo cedo: em um prenúncio do que fariam com o mesmo adversário na Copa 2006, começaram a campanha sapecando um 6-0 na Sérvia & Montenegro. Tévez  já se mostrava como o protagonista, com dois gols. Mas o mais bonito foi o de Kily González, dividindo com o goleiro após bela enfiada de D’Alessandro. Os jogos seguintes, contra adversários tecnicamente mais fracos, foram mais magros.

Tévez, em lindo peixinho após longo cruzamento de Kily, e Saviola, na cara do gol após belo malabarismo de Mariano González, anotaram sobre a Tunísia; e D’Alessandro fez o único contra a Austrália, concluindo na entrada da área bela jogada coletiva que ele mesmo armou. A produção de gols voltou com tudo nos mata-matas, especialmente em Tévez, que fez três nos 4-0 sobre a Costa Rica (um, de voleio). Mesmo a Itália de Pirlo foi goleada, na semifinal: 3-0, com o Apache marcando em potente sem-pulo, fazendo ainda outro gol, anulado, e dando assistências em rápidos contra-ataques aos xarás Lucho e Mariano González quando a Itália estava melhor. A final seria contra o Paraguai, cujos jovens que eliminaram o Brasil estavam reforçados por Gamarra. Enlutecidos por um incêndio que naquele agosto matou centenas em Assunção em supermercado fechado pelos donos para que a clientela não saísse das chamas sem pagar pelas compras (!), os guaranis já haviam feito muito. Prata ou ouro, seria a primeira medalha olímpica do país, dentre todos os esportes.

Laureados: Heinze, Fernández, Mariano González, Caballero, Medina, Coloccini (coberto), Mascherano, Lux, Kily González e Ayala; Saviola, Lucho González, Rosales, Tévez, Delgado, Figueroa, Clemente Rodríguez e D’Alessandro

Paralelamente, a geração dourada do basquete, com muitos oriundos de clubes de futebol, fazia bonito outra vez. Dois anos antes, em 2002, já havia sido vice na Copa do Mundo, com direito a vencer nada menos que os EUA em Indianápolis, na primeira derrota ianque só com atletas da NBA. Mas o feito virou anticlímax com o vice na prorrogação para a Iugoslávia por erro de arbitragem no fim, ainda que tal adversário seja exatamente o maior campeão das Copas de basquete – é penta e um dos títulos, o último antes da separação, foi exatamente na Argentina, em 1990. O troco veio logo na estreia, que, como no futebol, também opôs os hermanos com a Sérvia & Montenegro (nome que a Iugoslávia remanescente adotara em 2003). Só que foi muito mais complicado.

Os europeus ficaram na frente nos três últimos quartos, mas prevaleceu a enorme diferença aberta pelos sul-americanos no primeiro, onde haviam aberto um 27-15. O placar final foi um apertadíssimo 83-82 no embalo de Ginóbili, que fez a cesta da vitória cravadamente no último segundo (mal conseguiu respirar após ser soterrado pelos colegas) em contra-ataque depois de Tomašević desempatar em tiro livre a 3,8 segundos do fim. Na época, estava embalado por seu primeiro título na NBA logo em sua estreia nela, em 2003, sempre no San Antonio Spurs. O desgaste cobrou preço no compromisso seguinte. Scola, único argentino cestinha de uma Copa (em 2010), jogou demais e foi o máximo anotador, com 28 pontos. Venceu o duelo individual com Pau Gasol (quem teve a melhor média de cestas por jogo em Atenas), que fez 26, mas a Espanha, asa-negra dessa geração, é que ganhou, por 87-76. O descanso veio sobre a China de Yao Ming, que caiu por 82-57 com destaque especial para Andrés Nocioni, cestinha do jogo com 17 pontos.

O equilíbrio voltou contra a Nova Zelândia: os Tall Blacks venceram o primeiro e o último quarto e houve empate no terceiro. Os sul-americanos só venceram o segundo, mas por diferença maior e, graças especialmente a Scola e seus 25 pontos, ganharam por 98-94. Contra a Itália, então, foi ainda mais parelho. Primeiro quarto, Itália 23-13. No segundo quarto, troco quase na mesma proporção: Argentina 22-13. A diferença mínima no placar geral seguiu ao fim do terceiro quarto, com mais 18 pontos para cada um. No último, a diferença de uma cesta (23-21) foi favorável aos italianos, que ganharam por 76-75 apesar do esforço de Scola e Ginóbili, cestinhas da espetacular noite com 19 pontos cada um. Apesar das duas derrotas, os argentinos se classificaram em terceiro; só haviam dois grupos de seis no torneio, e os quatro melhores de cada avançavam. Mas a dureza seguiria.

O jogo seguinte foi contra a torcida da casa e a Grécia endureceu, especialmente por um segundo quarto onde somou 21-7 e virou o placar, que estava em 22-14 para os visitantes. Mas os comandados do técnico Rubén Magnano (depois, treinador do Brasil) venceram os quartos seguintes e o jogo foi ganho por 69-65. Ginóbili outra vez fez mais diferença, com duas assistências e 13 pontos, cestinha da dura partida ao lado do colega Fabricio Oberto. Já Pepe Sánchez brilhava na armação. Frenético, o torneio não parava e um dia depois teve as semifinais. Contra os EUA – que, se não impunham mais o respeito de outrora nem no próprio quintal (na fase de grupos, perderam para Porto Rico e por muito: 92-73), não podiam ser subestimados após eliminado Gasol e demais espanhóis nas quartas. Além de terem no elenco, Allen Iverson, LeBron James, Dwayne Wade, e o embalado Stephon Marbury.

No basquete, a decepção havia sido perder a Copa do Mundo de 2002 no fim da prorrogação por erro de arbitragem. À esquerda, Wolkowsky, Nocioni, Fernández, Scola e Oberto; Gutiérrez, Delfino, Sconochini, Montecchia, Herrmann (atrás), Ginóbili e Sánchez

Marbury foi o cestinha contra a Espanha e de fato foi quem mais deu trabalho à Argentina, com 18 pontos. Só que um espetacular Ginóbili fez 29 e permitiu nova vitória hermana sobre a NBA, por 89-81. Para Ginóbili, só faltava vencer (e dar um troco) a Itália outro dia depois para sua redenção pessoal também: na final da Copa 2002, ele só jogou 15 minutos, lesionado. O seu desgosto seria outro naquele 28 de agosto, o penúltimo dia de Jogos, que começou cedo e terminou tarde já no horário grego: às dez da manhã, a final do futebol, e às 22h45, a do basquete. Para quem estava em Buenos Aires, então, a cobertura para os louros sobre Tévez começou na madrugada: as seis horas de diferença fizeram a exibição começar às 4 da manhã. Carlitos não desapontou para quem acordou antes da hora ou a quem resolveu emendar. Antes dos 20 minutos, já puxava a dancinha de cumbia, antecipando-se a Manzur e Gamarra na saída do goleiro após cruzamento de Rosales. Gamarra, inclusive, perdeu sua famosa classe, soltando o cotovelo no atacante.

O zagueirão declararia em 2019 ao Globo Esporte sobre o lance que “na minha vida, só bati uma vez, e fiquei arrependido depois. O juiz não me expulsou porque era um juiz grego, e eu estava jogando na Grécia. O que mais me doeu foi que o cara falou pra mim: ‘Gamarra, você não precisava fazer isso aí comigo. Você é um cara que sabe jogar futebol’. Isso doeu mais pra mim do que o cotovelo doeu pra ele”. Após o gol, não houve mais lances dignos de nota. Mascherano & cia lá atrás não tiveram maiores trabalhos para neutralizar a referência ofensiva máxima guarani, o veteraníssimo José Cardozo. Com o título que faltava à seleção, Bielsa podia se recompor. A ponto de, ao anunciar dias depois sua saída do cargo de técnico da seleção, enfim como vencedor, causar surpresa; só o semifundista marroquino Hicham El Guerrouj teve desforra maior na Grécia. O ouro em Atenas segue sendo o último título do cultuado técnico…

A única final olímpica da Albiceleste havia sido aquela de 1928, perdida em clássico com o Uruguai. No básquet, o desafogo não seria tão menor: a única conquista mundial da Argentina havia sido na primeira Copa do Mundo, em 1950, sediada em casa, com uma geração que seria atirada no ostracismo por fatores políticos após o golpe que anos depois derrubou o presidente Perón. Doze horas após Tévez e colegas serem laureados, era a vez de acompanhar Ginóbili. Mas quem brilhou mais foi Scola. O sósia de Loco Abreu fez parecer fácil a final contra a mesmíssima Itália, que os derrotara na primeira fase e havia eliminado na semifinal a dona da melhor campanha do torneio (a Lituânia): foi o cestinha da decisão, com 25 pontos, demonstrando todo o seu oportunismo em 11 cestas após rebotes. O desgosto de Ginóbili, por sua vez, se limitou a ser “esquecido” pelo ônibus na volta à vila olímpica (enquanto falava com o pai em uma intrincada chamada internacional na era pré-internet 4G e pré-WhatsApp) e perder a bola da partida, furtada nas comemorações.

Contra o ótimo momento boleiro da Itália (bronze no futebol e que um dia depois via sua grande geração do vôlei nos anos 90 ser prata após tie break contra o Brasil), a Argentina teve a vitória mais folgada dos mata-matas. Foi 84-69. Um momento tão especial que até a torcida de um Newell’s x Colón, pelo Apertura que se desenrolava, ficou de costa para o gramado para assistir em uma televisão da cabine de imprensa o segundo ouro argentino no mesmo dia. Já os prêmios Olimpia, simbolicamente, não conseguiram se decidir. Trata-se do Oscar do esporte argentino, desde 1954 outorgando o Olimpia de Prata ao vencedor de cada modalidade e, ao vencedor dentre os vencedores, o Olimpia de Ouro, que é rigoroso: nele, o vitorioso futebol argentino só rendeu seis (a última em 2011, o único de Messi) e o basquete, três. O ano de 2004 viu o prêmio máximo ser entregue pela primeira e única vez a duas pessoas: os protagonistas Tévez e Ginóbili.

*Já falamos sobre o bi olímpico, com Messi, Riquelme e Agüero campões em 2008: clique aqui

Os técnicos Magnano (erguido pelo assistente) e Bielsa nos festejos

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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