35 anos da última das sete Libertadores do Independiente, sobre o Grêmio
O Grêmio é o único time sul-americano a vencer duas finais continentais sobre o Independiente, pelas Recopas em 1995 e 2018 – no mundo, só La Grande Inter conseguiu algo assim, nos Mundiais de 1964 e 1965. Mas, na decisão mais importante entre o Rojo e o Tricolor, prevaleceu quem já era àquela altura o maior conhecedor da Libertadores (sempre terminou campeão quando foi finalista) mesmo enfrentando o então detentor do título. Soube batê-lo na própria casa, em atuação reverenciada pelos próprios brasileiros que tanto minimizam os méritos de conquistas prévias do clube de Avellaneda, atribuindo-as ao apito. De quebra, o sétimo troféu do dono do estádio Libertadores da América veio com um gol que serviu de prévia ao título da seleção na Copa de 1986.
Embora aquele elenco de 1983-84 tenha vencido “só” uma Libertadores, já se disse que jogava melhor até que o conjunto tetra seguido de 1972-75. Pensamento que só não é total heresia pois é compartilhado pelo mítico Ricardo Bochini, único que atuou nos dois elencos. É o maior ídolo da rica galeria do clube, um craque idolatrado até por Maradona, que por causa dele se dizia torcedor do Independiente, recepcionando-o nos minutos finais da Copa do Mundo de 1986 com a declaração “venha, maestro, o estávamos esperando”. Para aquele mundial, nada menos que outros dois dos três jogadores que rodeavam El Bocha no meio-campo rojo foram chamados também: Jorge Burruchaga e Ricardo Giusti. O quarto elemento no clube tinha total condições também – era Claudio Marangoni, de técnica mais apurada que as de Sergio Batista (Argentinos Jrs) ou Julio Olarticoechea (Boca), mas com problemas pessoais com o técnico Bilardo.
Como Bochini, Maranga também cravou que a melhor equipe que integrou foi a do Independiente de 1984, enquanto que o saudoso técnico José Omar Pastoriza, ele próprio campeão da Libertadores como jogador do clube em 1972 e morto em 2004 em pleno exercício do mesmo cargo no Rojo, reconheceu que aquele foi o melhor plantel que treinou: “tinham ganas, força, vontade, inteligência, o manejo. Tinham tudo”. El Gringo Giusti, jogador do Independiente mais vezes usado pela seleção, não teve dúvidas ao cravar seu melhor jogo pelo time: “a final da Libertadores contra o Grêmio em Porto Alegre: ganhamos de 1-0, mas foi um baile”.
Naquela época, a Libertadores era duríssima já na fase de grupos. Para começar, só o líder avançava. E não havia “cabeças-de-chave”, fórmula que evita times teoricamente mais fortes de se estropiarem precocemente: os dois representantes de cada país eram unidos no mesmo grupo. Isso simplificava a logística, mas às vezes originava chaves pesadas. Em 1984, o Independiente encarou inicialmente seu grande concorrente na época, o Estudiantes, que o deixara de vice em dois torneios argentinos seguidos: o Metropolitano de 1982 e o Nacional de 1983, conforme falamos aqui. Aquela foi a única boa fase da equipe alvirrubra entre os tempos de tri na Libertadores entre 1968-70 e o renascimento pós-2006 sob Juan Sebastián Verón. Tanto que o técnico que devolvera os pinchas às glórias, Carlos Bilardo, passou a treinar a seleção em 1983.
Em contraponto ao time operário que primava pelo jogo coletivo de 1968-70, aquele Estudiantes de 1982-83 jogava um bom futebol – ainda que soubesse ser aguerrido, como na épica “batalha de La Plata” com o Grêmio na Libertadores anterior. O maestro era Alejandro Sabella, então um meia-armador que nem imaginava que seria técnico da Argentina vice na Copa de 2014. Além dos pincharratas, a fase inicial teve uma dupla paraguaia. Se o Sportivo Luqueño destoava, o outro era o Olimpia, que vinha descobrindo o que é ser um time copeiro: havia derrotado o Boca na final de 1979, encerrando um ciclo de dois títulos seguidos dos auriazuis e se tornando o primeiro clube do Paraguai a ser campeão continental.
Seriam os alvinegros quem mais complicaram para a festeira torcida roja, em êxtase especial desde o fim do ano anterior, em que sagrara-se campeã vencendo o arquirrival Racing, que ainda por cima caíra para a segundona: veja aqui. As dificuldades já começariam em tese desde o início, pois o Independiente jogou fora de casa as três primeiras partidas. Mas ainda assim começou bem. Arrancou um 1-1 com o Estudiantes (gol de Alejandro Barberón, desde a direita, para aproveitar passe de Ricardo Giusti aos 31 minutos e empatar) enquanto os paraguaios também empatavam entre si, ainda que o lateral Néstor Clausen virasse baixa após um jogo bastante trabalhado. Em Assunção, Jorge Burruchaga marcou aos 42 minutos o único gol do duelo contra o Luqueño de um jovem jovem José Luis Chilavert – já temperamental àquela altura, questionando descontroladamente o juiz brasileiro Romualdo Arppi Filho por validar o lance.
Três dias depois, ainda na capital paraguaia, com o árbitro brasileiro sendo Arnaldo Cézar Coelho, veio derrota de 1-0 para o Olimpia. Foi em chute de fora da área de Maciel em noite chuvosa no Defensores del Chaco, sem que as boas tentativas rojas vazassem a lenda Éver Hugo Almeida. Os alvinegros lideravam àquela altura. Após pausa de duas semanas, o Independiente recebeu um retrancadíssimo Luqueño. O bom toque de bola dos argentinos era facilmente afastado. O técnico José Omar Pastoriza primeiramente tentou resolver colocando a partir do intervalo o arisco ponta René Houseman, que mesmo quando vencera a Copa de 1978 já mostrava decadência. Foi uma raríssima partida do Loco (que estava no futebol sul-africano…) pelo clube e sua única naquela campanha. De fato, foi necessário recorrer-se a um tiro de fora da área desferido pelo elegante Claudio Marangoni para abrir o placar, aos 8 minutos.
Marangoni ainda perderia pênalti no travessão, mas a vitória foi consumada aos 30 em falta cobrada por Sergio Merlini nas redes de Ubaldo González, que jogou aquela partida no lugar de Chilavert. Outras duas semanas depois, a Doble Visera ardeu no embate com o “asa-negra” Estudiantes. O histórico desfavorável recente parecia pesar quando José Daniel Ponce abriu o placar de pênalti aos 35 minutos do primeiro tempo, especialmente porque o Olimpia já havia ganho do Luqueño na rodada e disparado na liderança. O segundo tempo, então, rendeu a primeira grande noite copeira dos campeões na edição de 1984. Uma meia-volta mortal de Barberón tratou de empatar aos 8 minutos e uma cobertura magistral de Burruchaga virou aos 26. Aos 32, o triunfo consumou-se, com novo gol do Burru. Nem um novo pênalti perdido por Marangoni, aos 38, teve peso: aos 40, Bochini assinalou um inapelável 4-1.
Foi o único jogo vencido por mais de um gol de diferença naquele grupo e seria fundamental adiante. Os de Avellaneda encerraram sua primeira fase recebendo o Olimpia. Como inspiração, homenagearam o velho ídolo Raimundo Orsi, campeão argentino duas vezes nos anos 20 antes de marcar um dos gols do título da Itália na Copa de 1934. Marangoni abriu o placar logo aos dois minutos e tranquilizou os colegas, mas até demais: os paraguaios viraram, com Jorge Guasch igualando ainda aos 17 e Gustavo Benítez anotando o segundo aos 10 do segundo tempo. Foi necessário um pênalti aos 29 para reacender a esperança. Dessa vez, quem chutou foi Burruchaga, convertendo. Nada que fizesse com que a tática desse lugar ao desespero insistente a cada minuto seguinte que se passava. Mas o empenho foi coroado no antepenúltimo minuto.
Sergio Buffarini completou a segunda virada da noite ao cabecear cruzamento de Barberón, lançado por Bochini. Ainda era preciso torcer para o Olimpia não golear o Estudiantes no jogo que restava da chave apenas 48 horas depois. Os paraguaios até venceram, mas só por 1-0 (curiosamente, com gol do goleiro Éver Almeida, de pênalti), e se igualaram em pontos. Porém, diferentemente dos anos 70, não haveria jogo-extra: aquele 4-1 no Estudiantes terminou determinante para os rojos levarem a vaga pelos três gols a mais no saldo, rumando a semifinais que na época não eram mata-matas e sim uma nova fase de grupos, desta vez triangulares. O Independiente voltou a ter de encarar fora de casa os dois primeiros jogos. E novamente soube como fazer, empatando ambos para depois vencer tudo em casa.
Primeiro, levou à Argentina um 1-1 com o forte Nacional uruguaio (gol de Barberón completando grande jogada de José Percudani, futuro herói mundial contra o Liverpool). O grande susto veio dois dias depois, em 2 de junho, e não em campo: o técnico Pastoriza sofreu um infarto e sua função foi assumida interinamente pelo restante da fase pelo assistente Ramón Toribio Adorno. Em 7 de junho, mesmo com Mandinga Percudani expulso para os dezesseis minutos finais, o Rojo segurou empate sem gols em Santiago contra a Universidad Católica. Em 26 de junho, os chilenos foram recebidos em Avellaneda diante da presença do próprio presidente Raúl Alfonsín, primeiro mandatário pós-ditadura e rojo assumido, no estádio – ele deu o pontapé inicial. Buffarini, aos 16, abriu o marcador que Miguel Ángel Neira empataria aos 2 do segundo tempo. Aos 29, brilhou então a estrela de Burruchaga para dar números finais.
Iluminado como nunca no clube, Burruchaga também faria o único do embate com o Nacional em 4 de julho: “nessa Copa, fiz seis gols. Fiz em quase todas as decisões até a final. E a equipe foi sensacional”. Os dois adversários deveriam enfrentar-se depois, mas a partida nem foi realizada pela falta de necessidade: os resultados não lhes permitiam mais chances matemáticas de irem à final. Só havia pela frente o Grêmio, que, como campeão anterior, pôde entrar já na fase semifinal – um mimo que soube justificar ao, logo de cara, sapecar um 5-1 no Flamengo e, fora de casa, arrancar um 2-0 no outro concorrente, os surpreendentes venezuelanos da Universidad Los Andes. Os cariocas venceram os gaúchos por 3-1, mas a seguir o Grêmio aplicou outra goleada no sul: 6-1 na Universidad. Só não se classificou logo porque o Flamengo chegou aos mesmos 6 pontos.
O jogo-extra nesse caso, que já não havia na primeira fase, continuava existindo na segunda. A neutra São Paulo recebeu a dupla brasileira, com os gremistas tendo vantagem do empate pelo enorme saldo. Mais longe de casa que os rubronegros, os tricolores cozinharam friamente o 0-0 ao fim de 120 minutos, pois houve prorrogação. Tudo observado em pessoa no Pacaembu pelo técnico rojo Pastoriza, já recuperado do infarto. Cinco dias depois, ocorreria no Olímpico o primeiro jogo final. Teriam os gaúchos a oportunidade de, quem sabe, encher novamente de gols um adversário sabidamente qualificado? Pastoriza rechaçou. Ainda no Brasil, declarou que o Independiente seria ofensivo em Porto Alegre, levando alguns pachecos a pensarem que o técnico ainda estaria sob efeito de sedativos cardíacos.
Mas El Pato cumpriu a palavra, além de orientar que o rústico lateral Carlos Loco Enrique anulasse Renato Gaúcho, ordem cumprida à risca, segundo declarações de Enrique em 2013 – “Renato: um louco lindo, media 2 metros. Me haviam passado alguns dados, que era meio afeminado, e que lhe chamasse de ‘Pimentel’ ou algo assim. Não sei por que, mas comecei a dizer: ‘Pimental, pedaço de puto’, o gracejava, e o estádio inteiro gritava ‘Re-naaaa-to’. As meninas grudavam pelo vagabundo, uma boa pinta bárbara. Lhe meti uma cotovelada na boca que quase o mato, depois tive que aguentar. Pensas o quê, que eu não levava também?”. À parte esse duelo particular, os argentinos gastaram a bola. A ponto de o capitão Enzo Trossero, embora assumido torcedor do Racing na infância, jamais imaginar que aquela seria a última Libertadores do Rojo.
Trossero ao menos falaria nesse sentido em 2016: “essas coisas são impossíveis de pensar no momento. O que jogamos nessa final contra o Grêmio no Brasil foi impressionante. Ganhamos de 1-0 e a revista El Gráfico deu várias notas 10. Lhes demos um baile impressionante, três bolas na trave, o gol de Burru…”. Houve mesmo veículos que deram 10 a todos os ganhadores: Trossero e sua dupla Hugo Villaverde (tio materno de Papu Gómez, torcedor assumido do clube embora tenha integrado os infantis do Racing) eram firmes no miolo da defesa e El Negro Clausen anulava o outro ponta gremista, Tarciso; Giusti, Burruchaga e Marangoni recuperavam a bola no meio para repassa-la ao maestro Bochini; Barberón abria espaços na defesa tricolor ao atrai-la às laterais e Buffarini fazia algum trabalho sujo para retardar as subidas de Hugo de León. “Todo o estádio aplaudiu de pé”, recordou Bochini sobre o triunfo argentino presenciado por 75 mil pessoas.
Assim, enquanto o resto do mundo via as Olimpíadas de Los Angeles, gaúchos e gauchos praticavam jogo em que “foi tal o domínio que os jogadores do Grêmio terminaram totalmente desmoralizados, impotentes ante o toque desconcertante, ante esse açoite de vai-não-vai, freios e passes ao centímetro em que ninguém falava. (…) Poderia e deveria ser goleada. Terminou em baile. Com o povo do Grêmio paralisado, submetido à humilhação de não encontrar a bola que saíam a buscar” foram as palavras da revista El Gráfico sobre o confronto em Porto Alegre. Mas também vale transcrever o relato da revista brasileira Placar:
“O Independiente vence pela sétima vez, jogando duro e bonito. (…) É um time todo ajustado para mesclar jogadores de grande efeito com entradas duras nos adversários, os jogadores atiram-se obstinadamente nos lances mais comuns, como se fossem decisivos. Um time que começa muito bem com o goleiro uruguaio Carlos Goyen, de excelentes reflexos, responsável, tanto no Estádio Olímpico de Porto Alegre, quanto em Avellaneda, pelo zero do Grêmio no marcador. A linha de zagueiros é caracteristicamente argentina. Clausen e Enrique são dois laterais rápidos, marcadores implacáveis, que raramente saem ao apoio mas que ‘matam’ as jogadas pelas pontas – Renato e Tarciso que o digam. O miolo de área fica com o gigante ruivo Trossero e o atlético Villaverde, ambos de grande impulsão, imbatíveis pelo alto. O meio-campo, coordenado por Bochini, tem no louro Marangoni um guarda fiel da cabeça da área e municiador insistente do ataque, mais Ricardo Giusti que frequentemente se transforma em ponta-dirieta. Burruchaga, Bufarini e Barberón são os homens de frente. Burruchaga é falso ponta-direita, cujos chutes fortes deram a maioria das vitórias do time na Libertadores, inclusive a de 1-0, contra o Grêmio, em Porto Alegre. (…) Bufarini, só um brigador, abre espaços para Bochini e Giusti. E Barberón, arisco, fecha com bastante frequência para o meio, buscando sempre o chute a gol”.
O morno 0-0 ocorrido em 27 de julho de 1984 em Avellaneda terminou protocolar. O título fora definido três dias antes, quando Burruchaga foi lançado em velocidade pela ponta-direita por Bochini aos 24 do primeiro tempo e, perseguido por Hugo de León, tocou na saída de João Marcos. Dois anos depois, a jogada se repetiria, mas com Maradona na vaga de Bochini, Hans-Peter Briegel no lugar de De León e Harald Schumacher no de João, no lance que definiu os 3-2 da Argentina sobre a Alemanha Ocidental na final da Copa do Mundo apenas três minutos depois dos germânicos empatarem jogo que perdiam por 2-0.
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