50 anos de Sergio Berti, ícone do festeiro River dos anos 90
A arrancada imparável, a visão profunda e o gol menos pensado foram algumas marcas de Sergio Ángel Berti, assim como a versatilidade como volante tanto na marcação como para jogadas ofensivas – e também um temperamento forte que rendeu cartões vermelhos além do tolerável. O que mais marcou La Bruja (“A Bruxa”, apelido não proveniente de magia com a bola, embora não fosse perna de pau, e sim pelo seu nariz adunco mesmo), porém, foi o feito de render muito bem no River mesmo vindo do maior rival, algo raro. E render bem em três diferentes passagens, em carreira que também fez dele um raro campeão continental pelos dois principais clubes do país. Berti faz hoje 50 anos. Dia para relembrar um ícone do festeiro River dos anos 90.
Nascido no interior santafesino de Villa Constitución, Berti foi revelado pela equipe local do Atlético Empalme, estreando com 15 anos no time principal, em jogos da liga municipal – inclusive, marcando o único gol do clássico com o Empalme Central. Também aparecia na seleção regional e de um duelo dela contra a seleção rosarina chegou a ser pinçado pelo Newell’s. Embora torcedor do rival Rosario Central na infância, sujeitou-se a três meses nos juvenis rojinegros, mas não aguentou o trajeto rodoviário diário a Rosario somado aos treinos exigentes de um anônimo Marcelo Bielsa, preferindo voltar ao Empalme.
Ainda haveriam outras linhas tortas ao sucesso: não tardou para que fosse com um emissário para testes em Buenos Aires e Berti agradou no Vélez, mas não pôde ficar por falta de algum auxílio material do clube, ainda distante do patamar sólido dos anos 90. Também foi aprovado no Independiente e parecia que ficaria em Avellaneda, mas o então técnico rojo José Omar Pastoriza logo acertou com o Boca e tratou de levar a promessa consigo aos auriazuis. Ele estreou no time boquense principal quinze dias após completar 20 anos. Foi em 1º de março de 1989, em 4-0 amistoso sobre o Gimnasia de Mendoza, substituindo Walter Perazzo no intervalo. No dia 12, veio a primeira partida competitiva, na visita ao Talleres pelo campeonato de 1988-89. Novamente, substituiu Perazzo, agora aos 15 minutos do segundo tempo, sem evitar a derrota de 1-0.
Usado ainda como atacante, Berti só voltou a campo em julho, incluindo um Superclásico pela semifinal da liguilla pre-Libertadores (derrota de 2-1, em rara titularidade), e depois viria a ganhar sequência apenas em novembro. Nesse mês, jogou duas partidas pelo campeonato de 1989-90 e outras três pela Supercopa Libertadores. Em sua segunda edição, a Supercopa era um torneio que reunia somente os campeões da Libertadores e representou o maior desafogo que o Boca tivera entre 1981 e 1992, período em que os xeneizes vivenciaram seu pior jejum no campeonato argentino. Sempre saindo do banco, Berti esteve nas duas finais com o Independiente, que representaram outro troco: o Rojo havia deixado os auriazuis de vices no campeonato de 1988-89. Dentro de Avellaneda, o Boca foi campeão nos pênaltis, finalizando sete anos de seca pendentes desde o maradoniano Metropolitano de 1981.
Mas, após o título, Berti só defendeu o Boca mais duas vezes, ainda em 1989. Descontente com uma diferença de mordomias estruturais do clube entre os astros e não-astros, brigou com o técnico Cai Aimar e foi colocado na geladeira em todo o primeiro semestre de 1990, sendo relegado ao time B. Assim, foi observado em certa tarde pela lenda César Menotti, que recomendou ao empresário Gustavo Mascardi que adquirisse o passe da promessa. Mascardi, por sua vez, negociou-o com o River, fechando o negócio em março de 1990. Já era tarde para que Berti pudesse ser utilizado oficialmente no campeonato de 1989-90, mas os meses treinando com os novos colegas (inclusive um jovem Gabriel Batistuta, com quem pôde conviver em Núñez naquele período embora costume se dizer que foram trocados) foram de valia para que já estivesse entrosado para a temporada seguinte.
No novo clube, Berti foi então gradualmente deslocado à posição onde saberia render, a de volante pela esquerda. Para a temporada 1990-91, vieram ao River também Juan Amador Sánchez, Juan José Rossi e Ramiro Castillo enquanto Gabriel Batistuta enfim saía, fazendo a via inversa (indo ao Boca), assim como Héctor Enrique, Rubén Gómez e Julio Zamora também deixavam o Millo. No Apertura, a equipe se deu ao gosto de bater o Boca por 2-0 e tira-lo da corrida pelo turno, mas terminou em segundo lugar ao ser derrotado em casa pelo Vélez – onde jogava pela última vez na carreira o veterano Ubaldo Fillol, destaque ao pegar um pênalti na vitória visitante. Apesar da decepção, já em 13 de março de 1991 aquele volante estreava pela seleção, em 0-0 com o México em Buenos Aires.
No Clausura, o Millo teve um desempenho medíocre, com direito a onze jogos seguidos sem vencer. Berti, que ainda jogou outras duas vezes pela Argentina no período, em maio (1-0 sobre os EUA em Palo Alto e 1-1 com a URSS em Manchester, pela Copa Stanley Rous), terminou então de fora da Copa América. O torneio seguinte, porém, viu o River registrar um recorde de oito vitórias nas oito primeiras rodadas, algo inédito no país. Em paralelo a esse embalo, o clube chegou à final da Supercopa e parecia tê-la ganho ao vencer o Cruzeiro por 2-0 em casa. Mas, em noite irreconhecível, perdeu de 3-0 no Mineirão, gerando dúvidas de como isso repercutiria no Apertura. Berti fez um dos gols da vitória de 3-1 sobre o Independiente e, ainda que o time perdesse na rodada seguinte a invencibilidade (contra o San Lorenzo), pôde festejar outra semana depois, mesmo perdendo de novo (contra o Argentinos Jrs).
Afinal, havia uma gordura de cinco pontos de diferença quando a vitória ainda valia dois, em relação ao rival Boca, que seguia em sua maior seca nacional. Foi o primeiro dos sete títulos de La Bruja pelo River, embora ele não voltasse a defender a seleção até 1995; o time não foi tão sólido no Clausura 1992 e ficou a cinco pontos do campeão Newell’s, mas Berti cavou sua primeira transferência à Europa, contratado por um emergente Parma. Adicionou ao currículo o título da Recopa Europeia, mas só; eram tempos pré-Lei Bosman, em que apenas três não-italianos (inclusive europeus) podiam figurar em campo e ele, interessado em manter-se na seleção, optou por voltar a Núñez após uma temporada. Era uma das velhas caras novas no plantel, junto com Ernesto Corti e Sergio Goycochea, que também voltavam ao River.
Apostando nos jovens Ariel Ortega, Hernán Crespo, Matías Almeyda e Marcelo Gallardo, todos sub-20, o time não chegou a encantar, mas foi sólido. Inicialmente, o Racing tinha pinta de campeão, mas a Banda Roja ocupou a liderança ao fim da antepenúltima rodada ao bater por 5-3 o cascudo Deportivo Mandiyú – Berti marcou duas vezes nesse jogo. O Apertura 1993 só foi finalizado em 19 de março de 1994 e o empate já bastou ao River, mas a ressaca significou derrotas nas três primeiras rodadas do Clausura 1994, iniciado já na semana seguinte. O time chegou a crescer a ponto de liderar o torneio à altura da 13ª rodada, mas novamente decaiu e terminou em quinto – o que não impediu que o técnico Daniel Passarella fosse catapultado à seleção após a Copa do Mundo. O que, por sua vez, não impediu uma campanha espetacular no torneio seguinte.
Agraciado com o retorno de Enzo Francescoli, no Apertura 1994 o River foi pela primeira e única vez campeão argentino de forma invicta. Américo Gallego foi o treinador naquele semestre mas logo incorporou-se à seleção também, como auxiliar do amigo Passarella. A invencibilidade foi garantida na rodada final com uma assistência de Berti, em cruzamento para cabeceio de Gabriel Amato, outro obscuro ex-Boca reconstruído em Núñez. Gallego foi substituído inicialmente por Carlos Babington, que não se firmou. Berti, por sua vez, irrompeu como um inesperado goleador, com sete gols nas sete primeiras rodadas, incluindo em 4-1 no Independiente (recém-campeão da Supercopa) em Avellaneda e em 3-2 no San Lorenzo – o clube que terminaria campeão. Somaria mais um gol e, ainda que o River terminasse só em décimo, chegou às semifinais da Libertadores.
La Bruja voltou então à seleção em maio (1-1 contra a África do Sul, pela Copa Nelson Mandela em Joanesburgo), sendo convocado à Copa América embora não entrasse em campo; e recebeu nova aposta europeia, contratado pelo Real Zaragoza. O modesto clube aragonês vivia a melhor fase de sua história: com os argentinos Fernando Cáceres, Juan Esnáider e Darío Franco, acabara de faturar a Recopa sobre o Arsenal. Berti, porém, novamente não se adaptou – dessa vez, por bater de frente com o treinador Víctor Fernández, já uma figura local, ao sentir-se injustamente um bode expiatório em críticas públicas do técnico. Logo voltava outra vez ao River após um ano de Europa.
No processo, deixou de integrar o elenco vencedor da Libertadores de 1996 (embora não se inibisse em aparecer nas fotos comemorativas), mas chegou a tempo de ganhar naquele ano novo Apertura. Passaria a armar as jogadas junto com outro reforço, Roberto Monserrat. Chegaram também Eduardo Berizzo, Julio Cruz e Marcelo Salas. Embora o River tenha perdido o Mundial Interclubes, sobrou no Apertura de modo impressionante: chegou a ter sete pontos de vantagem para o segundo colocado. No jogo do título, bateu por 3-0 um Vélez que no mesmo ano vencera o Clausura e a Supercopa, com Salas abrindo o placar após triangular com Berti.
E isso que havia uma partida atrasada, suspensa pela agressão da torcida do Huracán Corrientes a Roberto Bonano. Igualada em 1-1 exatamente no lance do apedrejamento no goleiro, ela foi disputada 48 horas depois da vitória sobre o Vélez; e Berti marcou o gol da vitória. O Apertura 1996 marcou o início do último tricampeonato do campeonato argentino: o Millo venceria tanto o Clausura como o Apertura em 1997, com Berti (participante de nova Copa América com a seleção) anotando em dois Superclásicos históricos – no primeiro, pelo Clausura, o Boca abriu 3-0 nos primeiros 30 minutos, mas La Bruja reoxigenou os colegas ao diminuir ainda aos 43 minutos do primeiro tempo, em jogada individual desde o meio. No segundo tempo, o River conseguiu empatar, igualdade jamais alcançada antes ou depois para quem perdia de 3-0 na rivalidade.
No outro duelo contra o arquirrival, Berti abriu o marcador, embora o rival vencesse de virada na última partida da carreira de Maradona – que, por outro lado, despedia-se sem títulos após diversas tentativas desde seu retorno ao Boca em 1995. Embora nem sempre com calmaria, chegando a perder de 4-1 para o Estudiantes (em Núñez) e de 5-1 para o Colón no Clausura e sair da liderança, enquanto também era derrotado na Recopa pelo Vélez e caíam cedo na Libertadores, Berti e colegas conseguiram recuperar-se a ponto de garantir o título ainda na penúltima rodada. No Apertura, a derrota no Superclásico foi o único revés: o rival fez uma das melhores campanhas dos torneios curtos, superada só seis vezes. E uma delas calhou de ser exatamente ali, pois a eficiência impressionante do River permitiu ao Millo um ponto a mais.
O título tardou até a última rodada para sair, mas a antepenúltima foi a mais decisiva: ali o River abriu três pontos de conforto ao vencer o Gimnasia de Jujuy no norte argentino por 3-1, com Berti anotando o segundo. Em paralelo, o time também ia bem na Supercopa, uma taça que faltava e que já se sabia que viveria a última edição antes de ser substituída no calendário pela Copa Mercosul. O clube terminou de fato campeão, no que foi a última conquista internacional riverplatense até 2014: o volante destacou-se especialmente contra o Racing, marcando em cada vitória de 3-2; já na final contra o São Paulo, foi expulso no Morumbi após uma das faltas desleais que volta a meia fazia. Mesmo sem jogar a volta, tornou-se o segundo campeão continental por Boca e River; Amato, campeão da Libertadores de 1996, lhe antecedera por detalhes, ao vencer pelo rival a obscura Copa Master de 1992. Depois deles, só Jonathan Maidana e Nicolás Bertolo (xeneizes na Libertadores 2007 e millonarios na de 2015; Maidana, também na de 2019) conseguiram também.
Se a ausência de Berti não impediu que o River vencesse o São Paulo, o volante realçou sua importância na volta olímpica possibilitada apenas quatro dias depois, a do Apertura 1997: forneceu a assistência para o gol de Salas sobre o Argentinos Jrs. Após ausentar-se de 1994, La Bruja enfim adicionaria uma convocação à Copa do Mundo no currículo, sendo o penúltimo nome confirmado após Passarella divulgar inicialmente 20 da lista final de 22, praticamente confirmando a ausência de Fernando Redondo, da mesma posição de volante canhoto – uma semana depois, se confirmaria Abel Balbo como último homem. A hesitação em confirmar Berti deveu-se a uma lesão nos meniscos que ele sofrera a dois meses do torneio, contra o San Lorenzo.
Desfalcado com muitos convocados à “Riverção”, o River terminou o Clausura 1998 dezessete pontos atrás do campeão Vélez, focando em uma Libertadores encerrada nas semifinais. Mas tampouco houve recuperação rápida após a Copa (em que Berti foi usado contra Croácia e Inglaterra, substituindo respectivamente Gallardo e Simeone; inclusive, bateu e converteu o primeiro pênalti na decisão nos penais contra os ingleses): além da queda na Libertadores contra o Vasco ocorrer já com os titulares, no Apertura 1998 o clube só venceu cinco vezes, enquanto caiu nas quartas da primeira Copa Mercosul ao perder os dois jogos com o Cruzeiro.
No Clausura 1999, o clube logo saiu da briga pelo título, mas novamente avançou às semifinais da Libertadores. Nelas, Berti fez o gol da vitória em Buenos Aires sobre o Palmeiras, mas novamente caiu diante do brasileiro campeão, ao levar de 3-0 em São Paulo. Ainda antes do Apertura 1999, que marcaria o retorno dos títulos a Núñez, Berti, por diferenças com o técnico Ramón Díaz, novamente deixou o River, agora em definitivo. Acertou com o América, pelo qual parou pela terceira vez seguida nas semifinais da Libertadores – exatamente contra o Boca.
Ameaçado, pediu para não jogar em Buenos Aires e foi defenestrado ao Al-Ain do ainda obscuro futebol dos Emirados após o príncipe dono do clube sentir-se esnobado pelo argentino em uma visita aos vestiários. O volante voltou a seu país em 2001, mas para defender o Huracán no Clausura 2001. Como quemero, Berti não foi mal: foram quatro gols para apenas dez jogos, incluindo o do empate em clássico fora de casa com o campeão San Lorenzo (na primeira visita huracanense sem derrota no Nuevo Gasómetro; esticou o pé para tirar a bola do alcance do chutão de Sebastián Saja, deslocou-o e tocou para o gol vazio) e em 2-1 sobre o Independiente. Embora em sétimo, o Globo, recém-saído da segunda divisão, terminou a dois pontos do terceiro lugar e só perdeu na última rodada a classificação à Copa Mercosul.
Mas o volante também foi acometido de uma bronquite severa que lhe custou a participação na reta final. Rumou brevemente ao Barcelona de Guayaquil e dali a uma última tentativa de Europa, onde o futebol escocês se mostrava receptivo a argentinos, mesmo veteranos, após o sucesso de Claudio Caniggia por Dundee e Rangers. Mas se foi subutilizado no Parma e no Zaragoza, no Livingstone o volante sequer estreou oficialmente: o despediram após ele ter alegadamente cuspido em um colega em amistoso de pré-temporada, saliva que ele clama ter escapado acidentalmente. O argentino processou o clube e até ganhou, mas não levou; a falência do Livingstone inviabilizou que ele recebesse alguma compensação e em meio à celeuma e para acompanhar uma gravidez complicada da esposa, preferiu parar com o futebol.
Fato é que seu único lugar no mundo parecia ser Núñez mesmo, onde foi um dos últimos volantes pela esquerda a ditar jogo; pela seleção, foram 23 jogos, mas em apenas dez foi titular, marcando dois gols (em 2-1 amistoso no Paraguai em 1995 e no 2-0 sobre o Chile na Copa América 1997), embora em só três vezes fosse derrotado.
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