Especiais

Tragédias aéreas e o futebol argentino

Emiliano Sala dificilmente terá sobrevivido se de fato o pequeno avião em que viajava para o País de Gales houver caído no Canal da Mancha, a ponto de hoje a guarda costeira local anunciar o fim das buscas contínuas. Que em paz esteja onde estiver, sua situação faz lembrar os antecedentes que desastres aéreos fizeram vítimas no futebol argentino.

A primeira delas não era exatamente um jogador, mas era simplesmente o Santos Dumont do país: Jorge Newbery, que dá nome ao aeroporto doméstico de Buenos Aires. Nos primórdios da aviação, causou sensação em 1908 ao se deslocar no balão El Huracán da Argentina até Bagé, no Brasil, cruzando o Uruguai. O clube Huracán já existia na época, mas pegou carona nesse êxito para utilizar um balão (Globo, em espanhol, daí o apelido do time) como distintivo – não sem antes pedir autorização ao próprio Newbery.

Detalhamos aqui que Newbery (que além de aviador era um multiesportista, com títulos no boxe e participação no primeiro time de rúgbi argentino fora da comunidade britânica, o da Faculdade de Engenharia) não só aprovou como impulsionou a estrutura do clube, usando sua influência como secretário de iluminação pública. Redigira sua autorização quanto à imagem do balão “esperando que o team que o levará sobre o peito saberá fazer as honras correspondentes a esse balão que em um voo cruzou sobre três Repúblicas”.

O clube começou a ser auxiliado por Newbery em 1911, ainda na terceira divisão, e em 1914 já era um time de elite, rendendo o telegrama ao mecenas: “cumprimos. O Club Atlético Huracán, sem interrupção, conquistou três categorias, ascendendo à Primeira Divisão, tal como o balão que cruzou três repúblicas”. A estreia na primeira divisão estava marcada para 29 de março. E por exatas quatro semanas o balonista não pôde estar presente: no dia 1º, buscando impressionar algumas damas que o observavam no solo de Mendoza, fez manobras arriscadas e, perdendo o controle, chocou com uma montanha dos Andes o monomotor que pilotava. Estava ali para estudar a topografia da região, visando um primeiro voo entre Argentina e Chile.

O Huracán seguiu adiante e ao fim dos anos 20 tinha mais títulos argentinos que o rival San Lorenzo, o Independiente e o River – mas, por déficit de sócios, ficaria de fora do grupo dos grandes que o trio formaria com Boca e Racing. O quinteto se solidificou com o passar dos anos ao dominar os títulos argentinos a partir de 1930, em oligopólio só furado em 1967, pelo Estudiantes. O Globo fez boas campanhas, sobretudo em 1939, rendendo-lhe o rótulo de “sexto grande”, mas até 1967 o mais perto que um time não-grande esteve do título foi em 1951. Ali, o Banfield do futuro ídolo são-paulino Gustavo Albella terminou líder empatado com o Racing, que venceu o jogo-extra. Uma das estrelas banfileñas era o volante Eliseo Mouriño.

Jorge Newbery, “padroeiro” do Huracán, e o poético tributo da revista El Gráfico a Eliseo Mouriño

Em paralelo, o Boca vivia um período complicado. Estava desde 1944 sem ser campeão e sem vencer o River no Monumental. O único time jamais rebaixado na Argentina esteve inclusive muito perto de ser o primeiro grande a cair, se livrando da queda só na última rodada em 1949. Sofria desde 1947 com a saída de Ernesto Lazzatti e via em Mouriño uma solução. Até demais: foram nada menos que sete tentativas de contrata-lo até El Gallego enfim virar xeneize em 1952. O jejum contra o River caiu no ano seguinte, com direito a virada de 2-1 para 3-2 nos dez minutos finais. E o jejum nacional terminou outro anos depois: o período 1944-54 continua sendo o de maior seca de troféus do futebol boquense.

Um novo título para o clube demoraria novamente, até 1962. O que não impediu que Mouriño fosse reconhecido pela torcida pela garra, sem piedade dos tornozelos adversários quando preciso, como pela liderança, dando ordens até quando estava no chão, em contraste com a personalidade respeitosa e calada que era fora dos gramados. Não era um caudilho de pura imposição como Ángel Perucca ou Néstor Rossi, e sim por serenidade de quem entendia de cinema e Nietzsche. Assim, mesmo em meio a nova estiagem do Boca ele virou figurinha carimbada na seleção nos anos 50, sendo capitão em 20 das 26 partidas oficiais que fez pela Argentina. Sua única expulsão, curiosamente, ocorreu quando ele era o elemento que buscava separar a briga, contra o México no Pan-Americano de 1956.

Mouriño jogou as Copas América de 1955, 1956 e foi um raro participante das duas realizadas em 1959, ganhando duas vezes o torneio. Esteve na Copa do Mundo de 1958, embora sem atuar. Com a ascensão de Antonio Rattín, foi gradualmente perdendo espaço e fez seu último jogo pelo Boca em julho de 1960, recebendo passe livre. Incorporou-se então à equipe chilena do Green Cross. E em 3 de abril de 1961, a dois dias do 56º aniversário do Boca, o volante morreu juntamente com todos os ocupantes do avião utilizado pelo novo clube. A aeronave chocou-se nos Andes em local de difícil acesso – apenas em 2015 é que o aparelho foi (por acaso) avistado. Assim, foi necessário aguardar o fim daquele mês de abril para que o capitão recebesse um tributo na capa da revista El Gráfico (a principal esportiva do país), cuja edição do dia 26 tinha-o envolto na bandeira argentina com a legenda “aqui estarás sempre”.

Em quantidade, a maior tragédia aérea envolvendo jogadores argentinos foi a que vitimou a equipe do The Strongest em 26 de setembro de 1969, no desastre de Viloco, em pleno dia de golpe de estado na Bolívia. Nenhum deles chegou a ter maior êxito na terra natal, com o volante Hernán Andretta tendo o maior renome no futebol argentino, com passagens por San Telmo, Deportivo Español e Nueva Chicago na segundona argentina. Ele, Ángel Porta, Héctor Marchetti, Eduardo Arrigó, Raúl Farfán, Oswaldo Franco e Julio Díaz Gutiérrez foram as vítimas argentinas do acidente. No país vizinho, o mais prestigiado talvez fosse Díaz, que, naturalizado, no mês anterior estreara pela seleção boliviana. Foi sua única partida por La Verde, em derrota de 3-0 em 17 de agosto para o Peru pelas eliminatórias da Copa de 1970. A tragédia fará 50 anos em 2019, assim como a do Torino fará 70 – a respeito, relembramos em 2014 a solidariedade prestada pelo River na época (em um dos últimos jogos de Di Stéfano pelo time), originando amizade entre os dois clubes.

A única menção anterior a Sala no Futebol Portenho deu-se no ano passado, quando listamos os (diversos) argentinos de destaque pelo Nantes nos 75 anos do clube francês, precisamente o primeiro time europeu a fornecer um jogador à seleção argentina (Ángel Bargas, em 1973; até o ano anterior, proibia-se convocar quem jogasse fora do país). A melhor fase de Sala nos canários viria exatamente em seguida, sendo contratado pelo Cardiff City credenciado exatamente pela briga da artilharia da Ligue 1 de 2018-19 com Kylian Mbappé, Neymar e Edinson Cavani, todos do líder PSG enquanto o argentino carregava um time abaixo do 10º lugar.

Sigamos com esperança por ele e tripulação.

Algumas vítimas do acidente do The Strongest em 1969. Franco, Arrigó, Porta, Andretta, Díaz, Marchetti eram alguns dos argentinos, com Díaz sendo jogador da seleção boliviana

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

doze + 16 =

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.