15 anos sem o artilheiro Delfín Benítez Cáceres, ídolo de Boca e Racing que defendeu Paraguai e Argentina
Se recentemente argentinos vêm cada vez mais reforçando a seleção paraguaia, antigamente ocorria o inverso: Heriberto Correa figurou nas eliminatórias à Copa de 1974 e Constantino Urbieta Sosa foi ao mundial de 1934, mesmo ano em que Delfín Benítez Cácares representou a equipe principal da Argentina – país que teve a sorte de ver de perto os chamados “quatro marechais do futebol do Paraguai”, os principais jogadores guaranis da primeira metade do século XX: ele, Arsenio Erico (que, maior artilheiro do Independiente e do futebol argentino, só não defendeu a Albiceleste por recusa-la), Manuel Fleitas Solich e Gerardo Rivas. Ontem completou-se 15 anos do falecimento de El Machetero, brilhante nos anos 30 por Boca (onde ainda é o estrangeiro com mais gols) e nos 40 pelo Racing.
Benítez Cáceres, nascido em 24 de setembro de 2010 em Assunção, dizia que “nasceu em um estádio”. No seu caso, o do Libertad, situado de modo aberto em frente à sua casa – “era como meu pátio, atravessava a rua e o tinha ali. Ali aprendi a caminhar e a jogar futebol, vivia ali”. Ficava à espreita das partidas adultas aguardando oportunidade e ela veio aos 17 anos, para substituir exatamente o lesionado Gerardo Rivas contra o Olimpia. Entrou e marcou o gol da vitória por 2-1. Ainda em 1929, Rivas rumou ao futebol argentino, sendo um raro vira-casaca profissional por Rosario Central e Newell’s. Na época, não se convocava quem atuasse fora do país e com isso ele e Fleitas Solich (já no Boca, na época) ficaram de fora da Copa do Mundo de 1930; Erico, que ainda tinha 15 anos na época do mundial, jamais defendeu a Albirroja ao partir cedo demais ao Independiente e também em função da Guerra do Chaco com a Bolívia. Só defendeu a seleção da Cruz Vermelha reunida para angariar fundos em prol das vítimas do conflito.
Diferentemente deles, o precoce Benítez Cáceres seguiu no Paraguai na ocasião da Copa de 1930, após já ter participado da Copa América de 1929, descoberto pelo treinador argentino José Laguna. A estreia pela Albirroja veio no sul-americano, no 3-0 sobre o Uruguai recém-bicampeão olímpico, triunfo maiúsculo mesmo com os vencedores jogando com só dez após a lesão de um zagueiro. No mundial, figurou nas partidas com Bélgica e Estados Unidos. Em setembro, começou o campeonato paraguaio de 1930, rendendo-lhe seu primrito título com o Libertad – que, curiosamente, concorreu à taça contra um River Plate, o do bairro de Mburicaó de Assunção. Apesar do currículo mundialista, campeão nacional e com um gol marcado sobre a seleção argentina (em derrota de 3-1 em julho de 1931, seu primeiro já no sétimo jogo pelos guaranis), o meia ainda era um desconhecido quando foi incorporado pelo Boca em 1932.
O paraguaio, inicialmente, só participava de jogos do time B. Foi exatamente em um Superclásico entre equipes B de Boca e River que o novato começou a marcar território, marcando três gols. Em 19 de junho de 1932, ele então estreou no time principal, exatamente em um Boca x River encerrado em 1-1. Apesar de campeão argentino de 1931 (e também de 1930), na primeira edição oficialmente profissional do campeonato argentino, o Boca não vivia harmonia interna. A contratação do atacante Luis Sánchez junto ao Platense causara ciúmes no elenco, revoltado com o que entendia ser dinheiro demais pelo reforço. O superartilheiro Roberto Cherro, maior artilheiro do clube no século XX, extrapolou no tom e foi suspenso, assim como Mario Evaristo. Ambos haviam ido à Copa de 1930 e mantiveram a forma jogando no campeonato da associação amadora, no Sportivo Barracas. A crise afetou os resultados dos outrora campeões, ainda que conseguissem terminar o torneio apenas quatro pontos abaixo dos líderes.
A estreia do paraguaio também veio nesse contexto. Mas Cherro reestreou já em 10 de julho no Boca e Benítez precisou aguardar até 25 de setembro por uma segunda partida. Logo demonstro que o desfecho do certame poderia ser diferente se fosse valorizado antes: marcou duas vezes no 7-0 sobre o Quilmes e deixou o seu nas duas rodadas seguintes (6-1 no Platense e derrota de 6-2 para o Gimnasia LP). Após passar em branco outra rodada depois, marcou no 5-1 em visita ao Talleres de Remedios de Escalada e, sobretudo, marcou os dois da vitória por 2-1 em novo Superclásico – no mesmo goleiro que havia sofrido três dele naquele duelo de times B, Sebastián Sirni. O jogo valeu pela antepenúltima rodada, mas era tarde demais às aspirações xeneizes, ainda que o time tenha vencido os dois jogos seguintes, contra Racing e Huracán – esse, por 5-1 com outro gol do paraguaio. O campeão seria o próprio River e o Boca terminaria pela primeira vez abaixo do segundo lugar desde 1922.
Em 1933, já estava consolidado um senhor trio, entre Cherro, Francisco Varallo e Benítez. Se Cherro foi o maior artilheiro do Boca no século XX, Varallo (também participante da Copa de 1930 – foi seu último sobrevivente, falecendo aos cem anos, em 2010) foi o segundo maior. E em dado momento o paraguaio foi o quarto maior, atrás também de Domingo Tarasconi, que saíra em 1932 – foi depois superado também por Mario Boyé e Jaime Sarlanga, já no século XXI, também pelo recordista geral Martín Palermo. Foi no ano de 1933 que Benítez recebeu seu característico apelido. Fez dezoito gols, destacando-se pelos encontros com o Vélez: marcou os três tentos boquenses na vitória por 3-1 no primeiro turno. No segundo, pela 23ª rodada, deixou outro em triunfo de 4-2 no campo adversário, onde o La V defendia uma larga invencibilidade. O Fortín não perdia em seu estádio desde a 27ª rodada do torneio anterior. Assim, um diário soltou a manchete de que “o pequeno forte do Vélez Sarsfield caiu sob o poder do machetero Benítez Cáceres”, em referência às machetes empregadas pelos soldados paraguaios na Guerra do Chaco, em andamento na época.
O humor negro pegou, ainda que o Boca, que na 26ª rodada se igualara ao então líder Gimnasia ao virar confronto direto perdido inicialmente por 2-0 para 3-2 (com Benítez marcando o gol que iniciou a reação), tenha deixado escapar na última rodada um campeonato que parecia ganho: era líder e na última rodada visitava o River, contra quem jamais havia perdido no profissionalismo e que ainda com 12 minutos perdeu o jogador Roberto Basílico, fraturado. Mas o rival venceu por 3-1 e o San Lorenzo terminou ultrapassando os xeneizes. Apesar do sucesso de público e crítica da liga profissional, a associação argentina reconhecida pela FIFA seguia sendo a amadora e ela não convenceu os clubes da liga “pirata” profissional a cederem seus jogadores ao mundial de 1934 – pois estes podiam perder suas estrelas ao futebol da anfitriã Itália (onde muitos poderiam adquirir cidadania pelas origens) sem nada receber, em função do caráter ainda não-oficial. Foi por defender o amador Godoy Cruz que o citado Urbieta Sosa foi ao mundial.
Assim, o combinado da liga profissional, que usava camisas brancas com detalhes em verde, era de facto o representante dos principais jogadores do país, e não exatamente a Albiceleste. Em 18 de julho de 1934, já após a Copa, Benítez Cáceres defendeu esse combinado em 2-2 em Montevidéu contra o Uruguai, inclusive marcando gol. Em 1935, houve enfim a unificação entre as associações amadora e profissional, o que viria a convalidar essa partida como jogo oficial da seleção argentina, ainda que o reconhecimento da FIFA tardasse até 2001. Benítez se credenciara a jogar pela “Argentina” ao manter a boa fase em 1934, quando vinha de doze gols nas 16 rodadas anteriores àquele amistoso (que foi sua única aparição pelos hermanos). Vazou ao longo do torneio todos os outros grandes – no 2-2 em visita ao San Lorenzo, no 2-2 e no 1-1 com o Independiente, no 2-0 sobre o Huracán (ainda visto como um grande), no 2-1 em visita ao Racing e no 2-0 em novo Superclásico com o River – ou Clásico Boquense ou Clásico de La Boca, como a rivalidade ainda era mais chamada na época, em referência ao bairro portenho que originou ambos.
O Boca enfim voltou a ser campeão, um ponto acima do Independiente, mas ainda na penúltima rodada. O trio do Machetero com Varallo e Cherro foi fundamental, responsável por 60 dos 101 gols dos campeões, que em contrapartida sofreram 62 gols – por conta dessa deficiência, o Boca contratou para 1935 o astro brasileiro Domingos da Guia. Aí não teve para ninguém: conservando o trio ofensivo e com um ás na defesa, o Boca se tornou o primeiro bicampeão do profissionalismo argentino, com Benítez Cáceres terminando em terceiro na artilharia geral e em primeiro na artilharia do elenco, com 24 gols. O time engrenou em especial com sete vitórias seguidas ainda no início, incluindo um 5-1 no Quilmes com gol do Machetero, que se destacava mesmo quando não vencia – caso do 4-4 na visita ao Ferro Carril Oeste, em que marcou três, na 12ª rodada, partida que encerrou a primeira série de vitórias. Depois, viriam outras nove vitórias seguidas, entre a 23ª e 31ª rodadas, incluindo um 8-0 com quatro gols do paraguaio sobre o Atlanta e um 6-1 no Platense com dois dele. O Boca só perdeu uma vez em casa, para o bivice Independiente, que ainda assim terminou agora três pontos abaixo.
A taça novamente se garantiu na penúltima rodada, em que Benítez marcou o último dos 3-0 sobre o Tigre, cujos jogadores se juntaram na volta olímpica, onde se carregou o mesmo estandarte da exitosa turnê europeia (a primeira de um time argentino) de dez anos antes. Foram ao todo dezoito jogos seguidos de invencibilidade, que caíram exatamente em Superclásico válido ainda pela terceira rodada de 1936, na primeira vitória fora de casa do River em vinte anos no dérbi. Benítez Cáceres deixou o dele, mas o baque maior viriam com as suspensões longadas dadas a Cherro e em Domingos da Guia por agressões verbais e/ou físicas deles contra a arbitragem em jogos posteriores. O time ainda terminou a quatro pontos do campeão San Lorenzo no primeiro campeonato de 1936, mas no segundo a diferença para o campeão River foi de oito. O paraguaio, nesse torneio, só marcou quatro vezes. Por ironia, na soma dos dois campeonatos, o líder da pontuação seria o Boca, com a fórmula tradicional de um único torneio sendo retomada para 1937.
Cherro ainda pôde voltar na reta final, mas o trio infernal não se reuniu mais após o 3-0 no Huracán em novembro daquele ano: Benítez voltou um tempo ao Paraguai. Quando voltou à Argentina, já em maio de 1938, Cherro e Varallo estavam às voltas com lesões. O forasteiro reestreou com quatro gols em um 7-1 no Talleres de Escalada, ainda pela quarta rodada, mas outro desfalque sentido era o do estádio: para construir La Bombonera (inaugurada em 1940), o clube demoliu seu campo. Terminaria em quinto a humilhantes 18 pontos do campeão Independiente. Após o torneio de 1938, Benítez Cáceres só jogou mais duas vezes pelo Boca e os jogos não ajudaram: derrota de 6-2 em amistoso em janeiro de 1939 para o Argentino de Quilmes, recém-campeão da segundona, derrota de 5-3 em Superclásico travado como critério de desempate pela segunda colocação do primeiro turno de 1937 (!). El Machetero havia feito 19 gols nos 23 jogos em que atuara em 1938, incluindo os dois gols xeneizes na visita em 2-2 com o River. Mas, para a surpresa geral, a diretoria cometeu o erro de descarta-lo.
O paraguaio então se juntou ao Racing. E já na estreia pela Academia, dois meses depois, pela terceira rodada de 1939, demonstrava o brilho na margem sul do Riachuelo: marcou um dos gols da vitória racinguista por 2-0 sobre o rival e recém-campeão Independiente. Na rodada seguinte, dois gols em 3-0 visitando o Argentino de Quilmes. Outra rodada depois, mais dois em um 4-0, agora sobre um grande, o San Lorenzo… Benítez marcou no Clásico de Avellaneda também pelo returno (3-3, contra um Independiente que terminaria bi seguido) e chegou a marcar cinco em reencontro com o pobre Argentino, que levou de 7-1, além de quatro em 6-1 no Atlanta – e, para não perder o velho hábito, deixou o dele em 3-1 no River. Foram ao todo 23 gols por um time que só terminou em 7º. Em 1940, o Racing não foi muito além, terminando apenas em 5º, mas deveu ao paraguaio não passar vexame: Benítez Cáceres terminou o campeonato na artilharia, pela primeira e única vez. Foram 33 gols e os primeiros quatro vieram em um só jogo, ao reforçar novamente o velho hábito: a vítima foi o River, surrado por 6-3. Outros três vieram em 5-2 no Atlanta, em 5-0 no Gimnasia e em 4-1 no Ferro Carril Oeste.
Em 1941, no entanto, os cartuchos pareceram acabar, com só nove gols, sendo que três vieram só em partida contra o Ferro (3-0). Mas Benítez pôde deixar Avellaneda deixando gol em outro clássico com o Independiente, derrotado na última rodada por 3-1. Em 1942, El Machetero seguiu carreira no Ferro, repetindo os nove gols – incluindo em cada encontro com o Independiente (uma vitória e um derrota, ambas em 3-1), em 3-1 no Boca e em visita ao campeão River (2-1), mas a referência ofensiva verdolaga foi Alberto Lije. O clube de Caballito foi 10º ali e caiu para penúltimo em 1943, contando com só seis gols do veterano – dois deles cada vieram em visitas de 4-4 ao Gimnasia e em 3-3 ao San Lorenzo.
Em 1944, na campanha do 13º lugar, foram quatro gols do paraguaio, um deles, o último, no Clásico del Oeste com o Vélez (que venceu por 2-1). Benítez Cáceres voltou ao Libertad em 1945. E imediatamente foi reincorporado pela seleção, após 14 anos de ausência por jogar fora. A última partida havia sido aquela em que marcou em derrota de 3-1 para a Argentina em 1931. Reestreou enfrentando novamente os hermanos, pelo mesmo troféu: a Copa Rosa Cheva.
Foi um jogo histórico para o Paraguai, que marcou quatro vezes no espaço de seis minutos. El Machetero fez o último de um inapelável 5-1 da Albirroja sobre a Albiceleste. Pouco importou uma derrota de 3-1 na revanche, também em Assunção. O Libertad foi campeão paraguaio em 1945 e Benítez Cáceres figurou assim na Copa América realizada no início de 1946. Exibiu-se pelas últimas cinco vezes pelo Paraguai, deixando um gol, no 4-2 sobre a Bolívia, além de participar do 1-1 com o Brasil – resultado cabal para os canarinhos terminarem no vice, somado à derrota destes para os argentinos na rodada final.
Com o piloto Juan Manuel Fangio em 1941 e condecorado pela Conmebol em 1997 – é o penúltimo da esquerda para a direita, ao lado do presidente Nicolás Leoz
Benítez seguia prestigiado no Brasil após a competição, realizando em fevereiro excursão com o Libertad, a ponto de O Globo registrar sem pachequismos que a vitória do Vasco foi creditada a uma arbitragem parcial, na qual “além das falhas técnicas, o juiz carioca teve um gesto condenável com Benítez Cáceres. O Sr. Angelino Medeiros empurrou agressivamente o captain do Libertad, provocando até protestos do público”, em “gesto que provocou viva repulsa de todos os esportistas cariocas”. Já em 1947 o astro se tornou o primeiro jogador com participação em Copa do Mundo a estrelar o incipiente futebol venezuelano, defendendo o extinto Le Salle, campeão da Copa nacional naquele ano. Rumaria depois ao Eldorado Colombiano, chegando a defender os extintos Sporting de Barranquilla e Boca Juniors de Cali.
Alternando-se entre Colômbia e Venezuela (onde se radicaria e teria seus filhos), venceu como jogador-treinador o campeonato venezuelano de 1952 pelo La Salle; e, apenas como treinador, o campeonato colombiano de 1955 pelo Independiente Medellín recheado de argentinos e o venezuelano de 1959 pelo Deportivo Español. Foi a primeira conquista de todos esses três clubes nas respectivas ligas nacionais.
Ainda em vida, El Machetero recebeu em 1997 uma condecoração de uma Conmebol cujo presidente provavelmente vibrara com ele nos anos 40: Nicolás Leoz, paraguaio torcedor do Libertad. O ex-atacante pôde lutar até os 93 anos contra uma prolongada doença que o ceifou em Caracas, em 9 de janeiro de 2004, pouco após o último título mundial do Boca e do futebol argentino.
#UnDiaComoHoy en 2004 falleció Delfín Benítez Cáceres, "el machetero". Es el máximo goleador extranjero en la historia xeneize: https://t.co/FV4cOza51C pic.twitter.com/euFEZd5nEX
— Historia de Boca (@historiadeboca) January 8, 2019
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