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Mancuso, 50 anos: para o público argentino, um volante técnico!

No Brasil, Alejandro Víctor Mancuso é lembrado de três formas: como o último argentino a realmente virar ídolo, ou, pelo menos, não ficar como mero xodó no Flamengo; por, pela Argentina, ter feito um gol na seleção brasileira; e, talvez de modo mais unânime, como um volante brucutu, dos mais raçudos mas também violentos jogadores em atividade no futebol brasileiro na época. Não é exatamente assim que Mancu (a pronúncia é “Mâncu”) era descrito anteriormente, na etapa argentina da carreira. Vale conta-la nos 50 anos do ex-auxiliar de Maradona na Copa de 2010.

“Que metamorfose!”, exclamou Esteban Bekerman quando o informamos sobre a parte violenta da fama de Mancuso (pronunciado “Mancuço” na terra natal, não “Mancuzo”) no Brasil. Bekerman é historiador do futebol argentino, assim como Julio Macías, autor de um livro com perfis de todos os que defenderam a seleção de lá em jogos oficiais entre 1902 e 2010, o Quién es Quién en la Selección Argentina. Eis trechos do perfil dedicado ao volante:

“De boa técnica, sentido de posicionamento, pique, correta distribuição e temperamento. Um dos clássicos centromédios que deu o futebol argentino, inteligente para a antecipação, sempre posicionado como um aríete entre a defesa e o ataque. Teve um bom arremate de longa distância. (…) As lesões o prejudicaram. Na seleção argentina, se manteve invicto durante sua campanha, com 4 triunfos e 6 empates: suas 10 partidas sem quedas são a terceira melhor marca em matéria de toda a história. Foi titular na metade de suas atuações, mas devia disputar o posto (..) nada menos que com Fernando Redondo”.

Mancuso surgiu como craque e jogou nos dois rivais do clássico do Oeste, em tempos pacíficos nos dérbis argentinos (ao meio, reencontra pelo Vélez o goleiro Germán Burgos, ex-colega no Ferro)

O início de carreira de Mancuso foi singular. Sempre foi torcedor do Vélez, mas fez toda a carreira juvenil exatamente no Ferro Carril Oeste, justamente o rival velezano no Clásico del Oeste da capital federal – a revista Placar chegou a noticiar em 1995 que o volante não se inibia de, após seus jogos, rumar em direção às arquibancadas de onde jogasse La V Azulada, inclusive se metendo entre os barrabravas; o jogador até relatou ter tocado bumbo na final contra o Argentinos Jrs, pelo Torneio Nacional (ocorrida em 1985, com título do adversário). Os anos 80, porém, foram justamente a única década em que o Ferro esteve melhor. Foi campeão em 1982 e em 1984, podendo por nove anos se gabar de ter mais títulos que o vizinho, que virou freguês no clássico; foi também a única década com mais vitórias verdolagas no duelo, inclusive dois 4-0 em pleno Fortín de Liniers.

O clube do bairro de Caballito ia além e obtinha títulos nacionais e internacionais também no basquete e no vôlei, sendo premiado até pela Unesco em 1988. Foi nesse ano que Mancuso estreou no time principal. Mas só constou em duas súmulas: relacionado ao banco no 0-0 em visita ao campeão Newell’s, em 26 de fevereiro, sem entrar em campo; e em derrota de 1-0 em casa para o Independiente em 13 de março, mal durando meia hora – substituindo o defensor Oscar Garré (campeão do mundo em 1986) aos 12 minutos do segundo tempo, Mancu terminou ele próprio também substituído, dando lugar aos 43 ao veterano meia Alejandro Sabella, pouco após após o Rojo abrir o placar mesmo com um jogador a menos. Desconsiderando-se amistosos, foi a única partida de Mancuso pela equipe adulta do Ferro antes de um troca-troca entre rivais, rumando ao Vélez enquanto o vizinho cedia Adrián Bianchi. Foi no time do coração que Mancuso firmou-se como volante, após começar a carreira como lateral-esquerdo.

Embora ainda tivesse idade de juvenil e de fato passasse primeiramente por um período no campeonato de times B, figurou já em diversas partidas do elenco fortinero principal na temporada 1988-89; estreou na 8ª rodada, participou de 25 jogos e até conseguiu um golzinho, no 2-2 com o Deportivo Español pela 33ª rodada. Na temporada 1989-90, já era titular absoluto de um elenco qualificado, que continha ainda o ídolo local Carlos Ischia (em sua última temporada no clube), o ídolo nacional Ubaldo Fillol, o experiente atacante Ricardo Gareca e o jovem Diego Simeone. A grande partida de uma campanha encerrada a quatro pontos do segundo lugar foi um 3-3 com o Boca após estar perdendo de 3-0. O desempenho do volante que fez Mancuso ser lembrado na primeira convocação pós-Copa da seleção argentina em 1990, embora não chegasse a entrar em campo. A temporada 1990-91 iniciou a era dos torneios curtos e no Apertura 1990 o Fortín esteve no páreo, com um 3º lugar a quatro pontos do vencedor Newell’s embora já não tivesse chances de título – mas na qual derrotou em pleno Monumental o vice River, permitindo o título dos rosarinos comandados por Marcelo Bielsa.

Coloccini (pai do zagueiro), Simeone, Ischia, Mancuso, Fillol e Lucca; Morresi, Funes, Gareca, Cardozo e Gallego. Timaço do Vélez em 1990

No Clausura 1991, o clube decaiu para 6º, mas recuperou-se na temporada 1991-92: no Apertura 1991, foi 4ºe no Clausura 1992, reforçado com José Luis Chilavert, disputou o título palmo a palmo com o Newell’s bielsista, que somou dois pontos a mais. O Newell’s também seria carrasco no tira-teima pré-Libertadores sobre um Vélez que havia vencido a liguilla em final com um forte Gimnasia LP dos gêmeos Barros Schelotto – um raro gol de Mancuso havia ocorrido nessa final, em chute forte de longe para abrir já aos 30 do segundo tempo uma vitória pelo enganoso placar de 3-0, na qual os velezanos vinham jogando com dez jogadores na maior parte. As boas estatísticas do clube na temporada 1991-92 enfim renderam a estreia de Mancuso na seleção, em 23 de setembro de 1992, um 0-0 amistoso contra o Uruguai em Montevidéu.

A partida seguinte seria a mais lembrada, por diferentes aspectos. Brasil e Argentina se enfrentaram em Buenos Aires em amistoso que celebrava os cem anos da AFA. A ocasião também era a reestreia de Maradona pela seleção após 1990. A atuação de Mancuso sequer foi digna de maior nota, mas foi dele o gol da Albiceleste, em chute de longe aceitado por Taffarel, abrindo o placar no 1-1. O outro aspecto é que no dia seguinte foi anunciado o repasse do jogador ao Boca, campeão do Apertura 1992 após onze anos de jejum nacional (o maior período de seca doméstica dos auriazuis). A estreia na seleção e a venda ao campeão, segundo o historiador Bekerman, esconderiam um declínio do volante. Também torcedor do Vélez e autor do Diccionario Velezano, publicado em 1996, Bekerman relatou nesse livro que Mancu não teria feito um bom Apertura 1992.

Já no grupo Coleccionistas de Vélez Sarsfield, no facebook, Bekerman foi além, descrevendo um jogador viril mas não reduzido a mero brucutu: “os dois primeiros campeonatos de Mancuso no Vélez foram espetaculares. Uma barbaridade o que metia e jogava. Nos dois últimos, já não foi o mesmo. Por um lado, afetaram as lesões, e por outro começou a cuidar da perninha pensando em uma transferência, a ponto de reduzir suas virtudes ao excelente manejo de sua perna esquerda. O reconhecimento a nível Seleção lhe chegou nessa época, mas antes dava pinta de que seria muito mais do que terminou sendo. E por sorte saiu no início de 1993 ao Boca, o que permitiu que aparecesse El Negro Gómez e o Vélez voltasse a ter um camisa 5 metedor a sério, como deve ter sempre por mandato histórico”.

Mancuso, Trotta, Gómez, Ruggeri, Almandoz e Chilavert; Bassedas, Gareca, González, Ortega Sánchez e Cardozo. Vélez em 1992 já germinando o timaço de 1993-1994

O tal Negro Gómez é Marcelo Gómez, que viria a ser titular do elenco campeão da Libertadores em 1994. Outro usuário do grupo, Chino Velez, já havia anteriormente comparado ambos: “El Negro Gómez era mais rústico, Mancuso, mais técnico… dois grandes jogadores, mas com características totalmente distintas”. O negócio com o Boca fora aprovado pelo novo treinador velezano, Carlos Bianchi, que não aprovava estrelismos. Ironicamente, dois notórios torcedores fortineros deixaram a equipe (o outro foi Gareca) logo antes de ela, após 25 anos, voltar a ser campeã, naquele Clausura 1993. Já como jogador do Boca, Mancuso reapareceu na seleção seis dias após aquele 1-1 contra o Brasil. O placar se repetiu, agora contra a Dinamarca pela Taça Artemio Franchi, tira-teima entre as campeãs da última Copa América e da última Eurocopa (o troféu, disputado também em 1984, foi descontinuado com o surgimento da Copa das Confederações).

A Copa Artemio Franchi foi o último título da carreira de Maradona. Ele e o volante começaram naquela convivência uma amizade de anos. O Boca, por sua vez, fez um semestre errático, com um racha interno entre as panelinhas falcones e palomas significando um  7º lugar, mas sem impedir a convocação de Mancuso para a Copa América – o último troféu da seleção principal. Mancu só jogou uma partida na Copa América, que inclusive lhe tirou de outra volta olímpica: desfalcado dele, o Boca venceu naquele mês de julho a Copa Ouro, em final contra o Atlético Mineiro. Inicialmente, o volante ficou de fora das eliminatórias à Copa de 1994, desenroladas totalmente no segundo semestre de 1993. Escapou de estar no vergonhoso Argentina 0-5 Colômbia – ocorrido um dia após o aniversário do jogador. Em dezembro, já após a suada classificação aos EUA, Mancuso então retornou à Albiceleste, no 2-1 amistoso sobre a Alemanha.

Afinal, o volante e o Boca tiveram um fim de semestre promissor. As dez primeiras rodadas do Apertura 1993 foram decepcionantes, com quatro vitórias, quatro derrotas e só seis gols. Mas a lenda César Menotti assumiu o time na 12º rodada e comandou uma sequência de bons resultados, com um 6-0 no Racing (então líder do torneio) sendo o mais notável. O Boca, embora nesse mesmo período tenha perdido de 6-1 para o Palmeiras e ficado na lanterna de seu grupo na Libertadores de 1994, saltou naquele Apertura 1993 (finalizado só em março de 1994) para uma colocação a dois pontos do campeão River. Em paralelo, na pausa de temporada em janeiro, Mancuso se deu ao luxo de até marcar em um Superclásico amistoso, vencido por 2-1 em Mendoza.

Em 1993, comemorando seu gol contra o Brasil no jogo onde Maradona reestreou na seleção após três anos, e entre ele e Simeone na volta olímpica pela Copa Artemio Franchi. À direita, consola Redondo na Copa 1994

Assim, Mancu foi confirmado para a Copa de 1994, onde somou minutos contra Grécia e Nigéria, as últimas partidas dele e de Maradona no time. Em paralelo, o Boca decaiu para um 7º lugar no Clausura 1994 e um 13º no Apertura. Mas foi bem na Supercopa, chegando à decisão. No jogo de ida, Mancuso foi expulso nos minutos finais do 1-1 contra o Independiente em La Bombonera. Foi só o seu terceiro cartão vermelho em 74 jogos pelo Boca, 72 dos quais como titular. De fato, o volante não era exatamente sinônimo de violência gratuita. Está lá, no Jornal do Brasil, quando a parceria que a Parmalat mantinha com Boca e Palmeiras em 1995 permitiu que os auriazuis repassassem Mancuso e o colombiano John Tréllez (pai do são-paulino Santiago Tréllez) aos alviverdes, a seguinte declaração do treinador palmeirense Valdyr Espinosa:

“Pedi a contratação de Mancuso porque o time precisa de um jogador experiente e talentoso no meio de campo”. Espinosa também citou “a habilidade na perna esquerda” do argentino, cuja importação visava suprir a venda exatamente de um volante classudo – César Sampaio, de embarque ao futebol japonês. O gringo, vale desde já ressaltar, jamais aceitou a má fama adquirida no Brasil, considerando-a exagerada: “sou um jogador chato, que não gosta de perder. Brigo com o juiz, brigo com todo mundo. Mas daí a ser violento tem muita diferença. Essa fama foi toda arrumada. (…) Não sei se por ser argentino”, afirmou à Placar em 1997, quando já estava de volta a seu país. Em 1995, notava que atitudes similares eram praticadas por brasileiros, sem a mesma condenação pública. O mesmo Jornal do Brasil registrou, na nota de título “Mancuso acredita que sua equipe pode virar”, em alusão ao milagre necessário para reverter o 5-0 do Grêmio na Libertadores:

“No Brasil, vigorava a lenda de que jogador argentino e uruguaio era famoso pela truculência e violência que costumavam exibir em campo. mas Mancuso está vendo que no futebol brasileiro não é diferente. Ele condena os que o consideram um volante violento, justifica seu comportamento como uma maneira de estar sempre brigando para levar o time à vitória. ‘Você acha certo jogar como o Sávio jogou contra a Argentina?’, questiona, citando a omissão do atacante da Seleção Brasileira na partida contra os argentinos, pela Copa América”. A partida, como se sabe, terminou em 5-1. O argentino marcou de pênalti o quarto gol palmeirense em uma exibição ovacionada pela torcida, mas que não impediu as lágrimas do gringo, descrito pelo mesmo jornal como “um leão” e “o pulmão do time palmeirense” na final estadual com o Corinthians, a despeito de ter cometido a falta que originaria o gol da derrota.

As outras camisas argentinas de Mancuso. E as outras brasileiras – no Palmeiras, chora o 5-1 incapaz de reverter o 5-0 do Grêmio na Libertadores 1995. Marcou o quarto

Mancuso não virou exatamente um ídolo histórico palmeirense, calhando de vivenciar justamente o único ano sem títulos entre 1993-2000 na Era Parmalat. Mas a Placar não deixou de noticiar que sobre o negócio com o Flamengo que “as duas torcidas tiveram ímpeto de correr às sedes dos clubes. Os flamenguistas para encher de beijos o presidente Kléber Leite e os palmeirenses para atear fogo no Parque Antártica. Acertar um troca-troca do grande Mancuso pelo reserva Marquinhos não fazia sentido”. A etapa flamenguista seria a parte mais conhecida da carreira de Mancuso no Brasil, em um time forte que só perdeu uma única partida no primeiro semestre de 1996, ganhando de modo invicto o Estadual, indo às semifinais da Copa do Brasil e vencendo também a esquecida Copa Ouro (em curiosa edição que fez o Rosario Central jogar em Manaus) sobre o São Paulo em agosto.

O desempenho caiu depois, mas o que teria feito o argentino sair do Flamengo e do Palmeiras seria a postura enérgica em cobrar os prêmios prometidos e nem sempre cumpridos pelas diretorias dos dois clubes. Em 1997, voltou à Argentina e o Boca de Maradona sondou-o. Mas preferiu voltar a ser treinado por César Menotti, dessa vez no Independiente. No Rojo, concorrendo sem sucesso com Raúl Cascini, já não vingou e entrou de vez em espiral descendente na carreira. Em 1998, chegou a treinar no Atlético Mineiro, mas preferiu outro alvinegro, o obscuro Badajoz da segunda divisão espanhola – comprado na época por Marcelo Tinelli, um Faustão-galã na Argentina também conhecido pela cartolagem no San Lorenzo.

Se Tinelli conseguiu sucesso no time do coração, a empreitada europeia, colonizando o Badajoz de argentinos, não deu certo. O clube ficou em 14º lugar e Mancuso voltou ao Brasil, agora para o Santa Cruz, saindo por atrasos salariais para pendurar as chuteiras em 2000 no nanico Bella Vista uruguaio. Já na Argentina, a grande polêmica de Mancuso deu-se mesmo em 2011, quando a amizade com Maradona – então forte a ponto de Diego ter preferido deixar o comando técnico da seleção argentina ao ter a permanência do ex-volante como auxiliar negada pela AFA – foi rompida em um episódio nunca esclarecido; Mancu teria falsificado a assinatura de Diego para abocanhar um gordo contrato publicitário na China. Segundo o volante, houve apenas uma negociação sigilosa, mas sem qualquer assinatura; a história não foi perdoada por Maradona nem nos 50 anos do ex-amigo, relembrada no stories do Instagram de Dieguito...

Seu sobrenome hoje voltou ao Vélez. Agora, empregado no filho Gianluca.

Como assistente de Maradona na Copa de 2010. Hoje se odeiam

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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