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Diferentemente de Son Heung-min, astros argentinos não escaparam do serviço militar obrigatório. Incluindo Kempes e Maradona

Equivalentes locais dos Pan-Americanos, os últimos Jogos Asiáticos tiveram sua competição de futebol recebendo relevância acima do normal. Afinal, estava em jogo o seguimento em alto nível da carreira de Son Heung-min, astro da Premier League. O meia sul-coreano estava no limite para o alistamento obrigatório de dois anos em seu país, só podendo escapar sem deserção caso se lesionasse seriamente ou, pelo caminho mais fácil, se conseguisse o ouro continental. O alívio incontido pelo triunfo na final rodou o mundo e é um bom gatilho para relembrar que tal sorte não era desfrutada pelos hermanos até os anos 80, se refletindo até no visual de quem se consagrou com longas madeixas.

Até a redemocratização nos anos 80, o serviço militar era obrigatório por cerca de um ano aos argentinos entre os 18 e 21 anos. As pouco emocionantes tarefas braçais de “correr, limpar e varrer” eram a realidade em um país sem preocupações bélicas antes da ditadura dos anos 70. Assim, as três tarefas renderam o acrônimo colimba (“varrer” em espanhol é barrer), a virar a gíria pejorativa para o serviço. Em alguns casos, como de Di Stéfano, não atrapalhou tanto – foi em seu ano de colimba que ele, servindo aos 21 anos irrompeu no River, em 1947. No serviço, raspou o bigodinho de Errol Flynn que ostentara no ano anterior, quando estava no Huracán.

Outro sem maiores queixas foi o irreverente Héctor Veira, eleito em 2008 o maior ídolo do San Lorenzo no ano do centenário azulgrana. Artilheiro do campeonato aos 18 anos, em 1964. Em entrevista em 2013 à revista El Gráfico, El Bambino recordou que “perdi um ano inteiro, com guarda e tudo. Foi no Regimento I de Palermo, tinha que estar todos os dias às 8 da manhã. Me deu um toque de responsabilidade”. Uma vez livre, farreou tanto que quando enfim pôde ser campeão jogando, em 1968, já não se mantinha na titularidade. “Ia do motel ao treinamento”, declarou na mesma entrevista. Os cabelos curtos logo ficaram grandes e tingidos de loiro, visual que seguia em sua curta passagem pelo Corinthians em 1976 e ainda mantido como septuagenário.

Antes e depois de Veira (San Lorenzo e Banfield) e Veglio (San Lorenzo e Boca) 

Já Maradona não passou mais do que “nove horas e meia” no batente militar. Foi logo após ter ganho o mundial de juniores de 1979, título que não privou Dieguito e outros colegas (como Gabriel Calderón, que iria às Copas de 1982 e 1990, ou Juan Simón, presente também na de 1990) de cumprir algum serviço. A própria participação no torneio havia necessitado de autorização das forças armadas, que não foi estendida à subsequente turnê que a seleção principal, sedenta em usar algumas revelações, faria pela Europa. Maradona jamais perdoou isso. Mas foi da iniciativa dele pedir a baixa, em reunião em que ele e colegas precisaram se uniformizar para servirem de propaganda a observadores internacionais.

Em plena ditadura em 1978, muitos dos jogadores campeões não se inibiram em ostentar cabelos compridos, como Mario Kempes, Ubaldo Fillol, Alberto Tarantini, Daniel Bertoni ou Oscar Ortiz. Rebeldia que não teve vez quando estiveram na famigerada colimba nos anos prévios – as figurinhas de Tarantini e Bertoni no álbum da Copa ainda conservam o visual militar. A revista El Gráfico também registrou declarações de muitos deles a respeito, informando variados graus de liberdade:

Carlos Veglio [autor do gol do primeiro título de Libertadores do Boca, em 1976, sobre o Cruzeiro]: “após subir [de divisão] com o [Deportivo] Español, em pouco tempo fomos ao Monumental e ganhamos por 3-1 do River. Estava fazendo a colimba nesse ano, então no outro dia me agarrou o capitão, que era torcedor do River, o baile que me deu! Foi um ano muito fodido para mim: entrava no quartel às 6 da manhã, às 9 me deixavam ir treinar, voltava 12h30 e ficava até meia-noite. Muito duro”.

Reconheceriam Kempes (Rosario Central) e Tarantini (Boca) sem a cabeleira?

Mario Kempes: “foi muito light, já estava no Central e na seleção. Cada vez que tinha que jogar me deixavam sair, mas uma vez me deram quatro rodadas de suspensão e não tive desculpas. Até me obrigaram fazer a guarda. Outra divertida foi quando me apresentei e me cortaram o cabelo, mas não raspado. Até que um cabo me perguntou porque tinha o cabelo tão cumprido e me obrigou a raspar zero. Era junho e fazia um frio impressionante. Depois soube que tudo era porque o cabo era fanático pelo Newell’s”.

Daniel Bertoni [autor do último gol da Copa 1978, ao ser indagado por seu pior momento]: “tive vários. O ano da colimba, 1975, o tenho marcado mal. Não podia treinar a fundo e se notava no jogo”.

Alberto Tarantini [ao ser indagado se tinha ciência das atrocidades da ditadura ao protestar na comemoração a seu gol no 6-0 sobre o Peru]: “não, como ia saber? Eu os xingava porque tive que fazer a colimba apesar de tirar número baixo e ser a única sustentação de mãe viúva. Ocorre que [o desafeto e presidente do Boca, onde jogava] Armando era íntimo dos milicos, de fato combinou com eles esse pacto que assinaram todos os clubes para não me contratar [Tarantini jogou a Copa sem pertencer a nenhum clube]. Eu tinha irmãs menores, meu irmão mais velho não vivia no país, mas me rejeitaram o pedido e tive que fazer a colimba do mesmo jeito porque Armando buscou tudo para que fizesse. Depois, não bancava [o ditador] Videla, tinha uma cara de filho da puta tremenda, mas dos desaparecidos não sabia nada, essa é a verdade”.

Bertoni antes de 1978 e comemorando na final. À direita, Bochini com ele segurando o Mundial Interclubes em 1973, e em 1975

Enzo Trossero [Copa de 1982 e capitão do Independiente campeão internacional em 1984]: “se em algum lugar passei muito mal, esse foi o Liceu Militar General Belgrano, em Santa Fe. Me calhou ali o serviço militar e tinha um capitão que não me era simpático porque eu era jogador de futebol e ele preferia os cavalos. Em 1974, embora pareça mentira, como tinha que me apresentar às 7 da manhã e cheguei às 10h, me deram dez dias de calabouço. Tinha que jogar com o Colón contra o Banfield como visitante, mas não pude fazê-lo porque seguia preso”.

Jorge Rinaldi [raro jogador a ter defendido o trio San Lorenzo, Boca e River, além da seleção]: “a colimba era uma autêntica dor nos bagos. Elimina-la foi o melhor que o país fez nos últimos 30 anos. Foi defender de verdade a gente jovem, porque te faziam um lixo. Não tinha nenhum contato para safar, e tive que me apresentar no dia seguinte de um 4-0 no Atlanta em que joguei extraordinariamente. Fiz a instrução no Campo de Mayo, desse não se salvava ninguém, e tive a sorte de que me calhou um subtenente, de sobrenome Kitayima, esse nome não me esqueço mais, que me disse que não sabia nada de futebol mas que ao comentar em sua casa, como o pai era fanático do San Lorenzo, lhe havia dito: ‘se acontece algo a Rinaldi na colimba, te mato’. Ia um par de dias ao Campo de Mayo e me deixavam sair, até que explodiu o das Malvinas e me deram licença até a baixa. A maioria que foi às ilhas era de 1962; eu era de 1963, mas do interior foi gente de 1963, ou seja, poderia ter-me acontecido”.

Ricardo Bochini [Copa de 1986 e maior ídolo do Independiente]: “[fiz a colimba] em 1975. Eu havia estreado na primeira divisão em 1972. Já era campeão do mundo [foi dele o gol do título, no Mundial Interclubes de 1973], mas igualmente tive que fazer. Inclusive durante a instrução me passou algo curioso: numa quarta à noite jogávamos contra o Boca, eu estava concentrado no hotel com a equipe e me avisaram que tinha que me apresentar no quartel. Pensava que ia e voltava em seguida. Mas não, durante uma hora e meia tive que fazer salto em distância e corridas, e à noite não podia nem me mexer, estava todo duro. Perdemos de 2-0 e fui um desastre. Na instrução, que durou alguns meses, tinha que ir quase todos os dias; depois pude manobrar melhor. Ainda por cima, havia um sargento torcedor do Racing que me deixava louco. Nesse ano me rasparam”.

À esquerda, Rinaldi comemorando o título do San Lorenzo na segunda divisão em 1982, quando prestou o serviço. Seguiria no clube inicialmente, defenderia Boca e River e ainda voltou nos anos 90

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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