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70 anos do jogador que renegou ir à Copa 78: nada menos que o capitão Jorge Carrascosa

Boa parte da aura mitológica em torno de Daniel Passarella deve-se ao posto de capitão da Argentina no primeiro título mundial da Albiceleste, em casa, em 1978. Em que pese ter sido um zagueiro fenomenal também ofensivamente (é o segundo maior defensor-goleador do futebol mundial), talvez El Kaiser tivesse menos renome se não fosse tão atrevido Jorge Omar Carrascosa, que ontem fez 70 anos. Ele, e não Passarella, seria o portador da braçadeira, mas ao fim de 1977 anunciou não desejar jogar aquela Copa. Segundo ele, para ser coerente com seus ideais.

Carrascosa nasceu em Valentín Alsina, na zona sul da Grande Buenos Aires, profissionalizando-se em um dos principais times daquela região, o Banfield. Foram três temporadas tumultuadas na elite, entre a estreia em 1967 e a saída, ao fim de 1969: nas três, o Taladro brigou contra o rebaixamento, não sobrevivendo à última delas. Carrascosa não era e nunca foi um craque, mas, mesmo sem técnica apurada, exibia alta cota de sacrifício e solidariedade, além de saber jogar nas duas laterais – ao menos defensivamente, pois não era tão lúcido atacando (só marcou dois gols no campeonato argentino). Preferencialmente, na lateral-esquerda. Era o bastante para atrair o Rosario Central, em 1970.

Em Arroyito, Carrascosa virou El Lobo. O Central não fez um Metropolitano notável, mas brilhou no Nacional, fazendo a melhor campanha geral da primeira fase. Nesse embalo, Carrascosa estreou pela seleção argentina, em 1-1 contra o Paraguai em Assunção em 22 de outubro de 1970, um amistoso em tributo ao paraguaio Arsenio Erico, maior artilheiro do campeonato argentino. No mata-mata, o Central não tomou conhecimento da sensação do campeonato, o elenco apelidado de La Barredora do Gimnasia LP, derrotado por 3-0.

A decisão, em jogo-único no neutro estádio do River, foi contra o Boca, segundo colocado no grupo que o Central havia liderado. Até então, nenhum time de fora da província de Buenos Aires havia ganho o campeonato argentino. Por dez minutos, os rosarinos estiveram a esse alcance: abriram o placar, mas tomarem o empate aos 35 do segundo tempo e a virada a doze minutos do fim da prorrogação, já em 23 de dezembro. Carrascosa esqueceu a decepção com mais dois jogos pela seleção já em janeiro de 1971, ambos contra a França (derrota de 4-3 e vitória de 2-0).

Campeão por Rosario Central em 1971 e pelo Huracán em 1973: ambos títulos históricos em especial

O grito preso em 1970 foi solto naquele 1971. O Rosario Central enfim levou a taça nacional pela primeira vez para o interior argentino, em trajetória em que a decisão contra o San Lorenzo chega a ser menos lembrada que a semifinal, em que os canallas eliminaram justamente o arquirrival Newell’s no dia da Palomita de Poy. Foi nesse ano que o lateral marcou seus dois únicos gols no campeonato argentino. A temporada de 1972, porém, não terminou com o mesmo ímpeto para os auriazuis. Já um nobre decadente se aquecia: o Huracán (por sinal, vítima de um dos gols de Carrascosa, em um duro 4-0) ficara em 3º no Metropolitano e em 4º no seu grupo no Nacional.

Treinado por César Menotti, aquele elenco promissor reforçou-se para 1973 basicamente com um recém-campeão da terceira divisão, René Houseman, e os laterais do Rosario Central: Alberto Fanesi e Carrascosa. O clube padecia de um jejum de 45 anos, exatamente o mesmo acumulado nesse 2018. Afinal, a taça veio em 1973 para o time de Parque de los Patricios, em uma campanha memorável especialmente pelo primeiro turno. “Entrei no Huracán com um bom pé e me mantive titular porque fui regular. Não sou um fenômeno, mas cumpro meu papel”, admitiria.

O grande inimigo daquele Huracán foi ironicamente a seleção, que começou a desfalcar seguidamente o time para as eliminatórias à Copa de 1974. Não foi o caso de Carrascosa, ignorado na época. Assim, no segundo turno o que prevaleceu foi uma defesa bem postada, liderada por Alfio Basile e Carrascosa: “o time de Menotti, sem ser defensivo, (…) sabe diminuir espaços para quitar projeção ao adversário”, escreveu-se já naquela parte do campeonato a revista El Gráfico, revelando méritos a quem já não vivia a rotina de goleadas do primeiro turno.

O título com o Globo e a ótima campanha na fase de grupos da Libertadores em 1974 reprojetaram Carrascosa à seleção. Mesmo ausente desde 1971, foi lembrado para a Copa do Mundo de 1974, a que mais contou com jogadores huracanenses: além dele, também Houseman, Miguel Brindisi e Carlos Babington. No entanto, El Lobo tinha uma concorrência ingrata para as duas laterais: na direita, morava o ícone Roberto Perfumo, e a esquerda era ocupada por Francisco Sá, vindo de dois títulos seguidos na Libertadores com o Independiente – Sá seria o maior campeão do torneio, com seis títulos entre o Rojo e Boca.

Último em pé no Huracán de 1973

Na Alemanha Ocidental, Carrascosa jogou somente nas partidas derradeiras da campanha argentina, contra o Brasil e Alemanha Oriental, onde deu-se ao gosto de marcar um raríssimo gol na carreira. O Huracán, por sua vez, caiu nas semifinais da Libertadores em 1974, bom momento que fez Menotti virar o treinador da Argentina. Carrascosa virou o intocável capitão de Menotti entre 1976 e 1977, embora não se livrasse de questionamentos de parte do público e imprensa. Em defesa do treinador, as grandes campanhas do Huracán no período, com o bivice-campeonato argentino em 1975 e em 1976. Mas já ali o clima não era o mesmo.

Para atenuar as diabruras de Houseman nas concentrações, El Lobo era o encarregado de dividir quarto com El Loco. Não bastava: o ponta dormia pouco, escutava música no máximo e ia embora jogar peladas de rua. O goleiro Héctor Baley chegou a dar um basta contra o alcoolismo de Houseman, tolerado conforme este ainda rendia em campo. Mas quando o Huracán perdeu em 29 de dezembro de 1976 para o River o tira-teima pela vaga na Libertadores de 1977 (jogo propiciado porque o Boca havia vencido tanto o Metropolitano como o Nacional, deixando-os como vices), o racha escancarou-se. Carrascosa já anunciava desejo de sair ali.

O lateral terminou seguindo no Huracán até 1979. O clube caiu para um pálido oitavo lugar em 1977, mas a vaga e a braçadeira de Carrascosa seguiam cativas para Menotti. Até que o lateral anunciou ao fim do ano não desejar mais jogar a Copa. Ele nunca definiu uma causa clara, e já nos anos 90 esclareceu ao jornal La Nación que a escolha deveu-se a diversos fatores, sustentando que não via um Mundial como algo mais transcendente do que o lado humano e que preferia ter paz na consciência. “Em 1978, me permiti a liberdade de dizer que até aqui cheguei”.

Não faltaram especulações na época, desde protesto pessoal pela possível convocação de jogadores do exterior (seria apenas Mario Kempes) e/ou pela longa concentração de seis meses que Menotti imporia aos pré-convocados a partir de fevereiro de 1978, à versão mais difundida e aceita de que Carrascosa não concordava com o uso político da seleção pela ditadura. Menotti sempre demonstrou respeito pela opção de seu capitão e então passou a braçadeira a Passarella. A lateral-esquerda terminou nos pés de Alberto Tarantini, permitindo uma vaga na reserva ao novato Rubén Pagnanini, que só no próprio 1978 estrearia pela Argentina.

À esquerda, cena que permite imaginação concreta de como 1978 poderia ter sido para a imagem de Carrascosa

Dedicando-se apenas ao Huracán, Carrascosa naufragou com o Globo nos Metropolitanos de 1978 (15º lugar geral) e 1979 (antepenúltimo no grupo A), mas ainda esteve em boas campanhas nos Nacionais: o time avançou aos mata-matas em 1978 e ficou a um ponto da classificação em 1979. A vaga foi decidida em confronto direto com o River na rodada final do grupo, com o 1-1 favorecendo os millonarios em 2 de dezembro. Adiante, o oponente terminaria campeão. Restou apenas o gosto de vencer o rival San Lorenzo no último clássico realizado no velho estádio Gasómetro, em outubro.

Tal como no fim de 1977, Carrascosa surpreendeu o público ao fim daquele 1979 ao anunciar a aposentadoria mal chegado aos 31 anos. Declarou que preferia retirar-se com dignidade, ainda em bom nível. Eis as declarações proferidas à El Gráfico em 1980 (em reportagem na qual reiterava não ter arrependimentos por não ter se tornando um campeão mundial):

“Faz tempo que estou preparado para isto: o futebol, para mim, é uma etapa cumprida. A ambição do homem não pode e nem deve voltar-se somente ao material. Chega um momento que alguém tem que parar e pensar que há outras coisas que têm tanto ou mais valor: a convivência com os que se gosta, a necessidade intelectual de adquirir mais conhecimentos, a espiritual de compartilhar os gostos, a necessidade física de praticar esportes recreativos que são os que verdadeiramente te fazem sentir bem. Saio agradecido. Treze anos de primeira divisão me permitiram viver um montão de experiências que serviram pra formar meu modo de pensar. Nesses treze anos, conheci todo tipo de gente. Viajei pelo mundo e em cada viagem que fiz tratei de assimilar o melhor possível todo a novidade que via. Eu escolhi esse modo, esse tipo de vida e não me arrependo.

Eu entendo o esporte como uma competição digna, leal, além de qualquer resultado ou interesse pessoal. Por isso, não justifico as agressões ou especulações que às vezes utilizam. Se meu time para sair campeão tem que recorrer à mala preta, ao suborno ou à aplicação de estimulantes, eu me sentiria muito mal. Penso que os triunfos assim logrados carecem de sentido, não têm nenhum valor porque desvirtuam a essência do que deve ser o esporte. Nessa situação, só tens três opções: contar com suficiente poder para mudar tudo isso, fechar os olhos e submeter-te, transformando-se em um cúmplice, ou se distanciar. Eu preferi me distanciar.

Minhas grandes alegrias foram dadas sempre por pessoas a nível humano, nunca os êxitos esportivos por si sós.”

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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