Especiais

Dez anos sem Silvano Maciel, o único “armênio” na seleção argentina

A falta do sufixo filial “ian” pode causar estranheza na leitura do título da nota. De fato, Sergio Silvano Maciel não pertencia à comunidade do tenista David Nalbandian, o mais célebre esportista armeno-argentino. Mas La Fiera Maciel conseguiu o feito de ser o único jogador que o autoexplicativo Deportivo Armenio cedeu à seleção. O atacante também foi um raro jogador a atuar cada divisão da Primera D até a Primera; e um dos pioneiros argentinos no futebol alemão.

Maciel era proveniente de Resistencia, na província do Chaco, onde nascera em 7 de dezembro de 1965. Porém, foi registrado já na Grande Buenos Aires, na cidade de Gregorio de Laferrere, normalmente divulgada como seu local de nascimento. Seu primeiro clube foi o General Lamadrid, na quarta divisão, na época Primera D (que atualmente compreende a quinta). Era uma época em que o campeonato argentino, apesar do nome, só admitia clubes da Grande Buenos Aires, La Plata, Rosario e Santa Fe. Em todas as (então) quatro divisões da AFA era assim.

A elite, inclusive, era chamada de Torneio Metropolitano, dividindo desde 1967 o calendário com o Torneio Nacional, em que os melhores do Metro enfrentavam os melhores das ligas do interior, incluindo algumas da própria província de Buenos Aires (como as de Mar del Plata ou Bahía Blanca). Pois bem: no Lamadrid, Maciel participou em 1983 do acesso à terceira divisão, então Primera C. Da equipe do bairro portenho de Villa Devoto o atacante foi pinçado pelo Deportivo Armenio, já um time de segunda divisão, então simplesmente Primera B.

O Armenio foi rebaixado logo na chegada do atacante, mas voltou de imediato como campeão da Primera C de 1985. Naquele ano, foi disputado no primeiro semestre o último Torneio Nacional; o calendário da elite foi alterado, com os clubes do antigo Torneio Metropolitano passando a disputar um torneio nos moldes europeus, no que foi a temporada 1985-86. Para compensar a falta de visibilidade aos clubes do interior, a AFA decidiu enfim nacionalizar seu campeonato da segunda divisão, que adotaria o mesmo calendário europeu para a temporada 1986-87.

Para a transição, jogou-se uma edição especial da velha segundona no primeiro semestre de 1986. Os times foram divididos em dois grupos, nos quais os quatro primeiros de cada permaneceriam para a segunda divisão de 1986-87, agora nomeada Primera B Nacional, a ser complementada por campeões do interior. Os demais clubes formariam a Primera B Metropolitana, nova terceira divisão. A velha terceira divisão virou a quarta, que passou a chamar-se Primera C. E para aquela temporada foi criada a quinta divisão, que se apropriou do nome da Primera D.

O “torneio da morte” de 1986 condenou diversas camisas tradicionais da elite ou segundona à naturalidade da terceira divisão, casos de All Boys, Atlanta, Defensores de Belgrano, El Porvenir, Estudiantes de Buenos Aires e Nueva Chicago, que caiu a despeito de ter no veterano Héctor Scotta (ele próprio ex-jogador do Armenio) o artilheiro daquela fase. O Armenio, porém sobreviveu como terceiro colocado do Grupo B. E em seguida daria um show na nova Primera B Nacional: contamos neste outro Especial a saga que rendeu só duas derrotas em 42 jogos e um recorde de 34 partidas seguidamente invictas, um recorde nas divisões inferiores.

Na campanha de um surpreendente mas irrepreensível título, Maciel contribuiu com oito gols, incluindo dois no 2-1 sobre o Colón dentro de Santa Fe e o que abriu o festivo 4-1 sobre o tradicionalíssimo Huracán (pela primeira vez na segundona profissional) na rodada final. Mas o homem-gol do Armenio era Maximiliano Cincunegui. O Armenio pôde sobreviver por duas temporadas na elite. Na primeira delas, Maciel não foi a principal referência ofensiva, e sim o “homem da casa” Walter Oudoukian, artilheiro dos novatos com nove gols, incluindo em dois empates em 1-1 com o Racing e outro com o Independiente, além de um 2-2 com o campeão Newell’s.

Na segunda temporada, o clube não resistiu, mas Maciel enfim fez seu nome. Foram dez gols pelo penúltimo colocado, incluindo dois em 3-3 em visita ao Rosario Central, outro em 4-0 sobre o forte Newell’s da época. Mas nenhum foi tão marcante como o da estreia: o Armenio visitava La Bombonera em 11 de setembro de 1988. No gol adversário, uma lenda do futebol argentino: o dinossauro Hugo Gatti, de 44 anos e desde 1962 participando da elite argentina, por Atlanta, River, Gimnasia, Unión e enfim o Boca. Defendia os xeneizes desde 1975. Já havia passado dos trinta anos quando chegou aos auriazuis, mas conseguiu uma longevidade que lhe permitiu chegar ao segundo lugar entre os jogadores que mais vezes defenderam o clube.

Dono do recorde de pênaltis defendidos no futebol argentino, Gatti já tinha o recorde de presenças no campeonato argentino, na somatória por todos os seus clubes. E o recorde de partidas pelo Boca estava ao alcance de ser muito provavelmente superado naquela temporada. Faltavam dezesseis para Gatti superar o ex-lateral Roberto Mouzo. Mas a experiência nunca significou sobriedade para um goleiro apelidado de El Loco. Gatti não se inibia em sair da área para prevenir ataques adversários. E naquele dia se deu mal: Maciel lhe encobriu e decretou a inesperada vitória do Armenio na icônica cancha boquense.

O treinador adversário José Omar Pastoriza teve peito para barrar o veterano, que não voltou mais a jogar oficialmente, substituído à altura pelo reforço Carlos Navarro Montoya, também espalhafatoso no visual mas mais pragmático entre as traves. O desempenho individualmente interessante de Maciel ao longo da temporada então lhe rendeu dois testes pela seleção argentina, já em abril de 1989. Carlos Bilardo vislumbrou nele um atacante de versatilidade tarimbada, uma vez que por jogar em time pequeno Maciel vinha sendo o único homem de ataque, conseguindo desempenhar-se em qualquer posto ofensivo.

Maciel somou 27 minutos pela Albiceleste, em dois empates amistosos: 2-2 com o Equador em Guayaquil no dia 13 e 1-1 com o Chile em Santiago no dia 20. Em ambos, substituiu os autores dos gols argentinos (Carlos Alfaro Moreno no primeiro e Mauro Airez no outro). Foi insuficiente para convencer Bilardo a chama-lo para a Copa América, mas La Fiera pôde cavar uma então incomum transferência do futebol argentino para o alemão. Foi jogar a Bundesliga de 1989-90 no Homburg, recém-campeão da segundona local.

Maciel marcou oito gols, incluindo sobre o campeão Bayern Munique, o Borussia Dortmund e nos dois jogos contra o Stuttgart, vice-campeão da Copa da UEFA em 1989. O argentino não evitou que o Homburg (não confundir com o Hamburgo) ficasse na lanterna, mas seguiu uma boa carreira individual nas divisões inferiores germânicas. O Homburg ficou a uma posição do acesso na temporada 1990-91. À exceção da temporada 1991-92, em que o argentino esteve no Blau-Weiss Berlim (rebaixado nos tribunais ao terceiro nível), ele seguiu no Homburg até 1995.

O Homburg caiu para as ligas regionais em 1995, mas Maciel voltou em alta à Argentina: aos trinta anos e já como ponta, pôde acumular dez gols pelo tradicional Estudiantes, que voltava à elite. No caminho, marcou nos quatro principais times portenhos (Boca, River, San Lorenzo e Huracán) e terminou contratado pelo San Lorenzo para a temporada seguinte. Porém, não cativou a massa azulgrana, não passando de três gols em suas 17 partidas. Seguiu carreira no Gimnasia y Tiro, de Salta (ainda um clube da elite), e depois no futebol venezuelano até virar representante de jogadores. Em uma partida de veteranos, o coração de Maciel o fez tombar em 4 de agosto de 2008.

Armênios genuínos no futebol argentino

Jogadores da comunidade armeno-argentina não precisaram do Deportivo Armenio para terem seus 15 minutos de glória, embora nenhum tenha defendido a seleção. Antes da fundação do clube, em 1962, a elite argentina já havia registrado as participações de Julio Marcarian, ex-ponta-esquerda de Huracán e Boca (chegou a marcar o único gol de um Superclásico com o River em 1953); Eduardo Balassanian, atacante destacado do Platense; Luis Kolandjian, zagueiro do Ferro Carril Oeste; e Eduardo Bazarbachian, atacante do Atlanta.

Nos anos 80, Eduardo Abrahamian (apelidado de El Turco!) conseguiu títulos como reserva no River e no San Lorenzo. Como treinador dos juvenis do River, foi quem coordenou a breve passagem de Messi como atleta do clube, não tendo seu anseio de efetiva-lo atendido pela diretoria. Já Luciano Krikorian foi um zagueiro que ganhou títulos nas divisões inferiores por Tigre e San Martín de Tucumán nos anos 2000.

Embora nunca restrito à comunidade, o Armenio naturalmente fomentou gente da colônia, como o citado Walter Oudoukian. O ex-goleiro Alberto Parsechian treinou o elenco vencedor da segundona de 1987, no qual o capitão era o líbero Miguel Gardarian. Mais recentemente, teve o atacante Fernando Zagharian e Martín Gardarian (filho de Miguel). Vale ainda lembrar de Noray Nakis, presidente do Armenio que também foi cartola no Independiente; Eduardo Seferian, fundador do Deportivo Mandiyú, cascudo time de Corrientes que figurou na elite na virada dos anos 80 para os 90, e primeiro time treinado por Maradona; e Eduardo Eurnekian, empresário que bancou a própria ida de Maradona ao Boca em 1995.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

One thought on “Dez anos sem Silvano Maciel, o único “armênio” na seleção argentina

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

onze − quatro =

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.