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Há 10 anos, o River vencia a segunda divisão. Pior para o garoto Dybala

Publicado originalmente nos cinco anos, em 23-06-2017, revisto, ampliado e atualizado

“Esta não é a crônica de um acesso anunciado, é uma catarse. Não se pode contar de outra maneira. Nasce nas tripas e não na cabeça”, começava o relato da revista El Gráfico sobre aquele 23 de junho de dez anos atrás. Em partes, porque o campeão, irregular, só conseguiu duas sequências de meras três vitórias seguidas e outras três séries de dois triunfos. E porque não houve segundona mais badalada na Argentina do que a da temporada 2011-12. Por mais que a Primera B já conhecesse os grandes San Lorenzo (1982), Racing (1984-1985) e dali a um ano recebesse o Independiente, nenhum deles tinha o alcance do River. Mas mesmo os outros rebaixados ao fim de 2010-11, como Huracán e Gimnasia LP, tinham camisa. Ainda havia o Rosario Central, desde 2010. Ambiente que ofuscava até o retorno do clássico entre Atlanta e Chacarita após doze anos. Ao fim, River e Central realmente lutaram pelas cabeças, com a intromissão do belo futebol do Instituto de Córdoba, de um adolescente que ali estreava no futebol adulto: Paulo Dybala. Como na nota que relembrou o rebaixamento millonario em 2011 (clique aqui), lembraremos o acesso principalmente de matérias publicadas na época pelo Futebol Portenho.

Outra fonte é aquela edição pós-título da El Gráfico, a prosseguir assim sua análise: “é preciso se por por uns minutos na pele do torcedor do River para tratar de entender e contar. Se deve festejar ou não? Quem pergunta? Desde onde? Desde o freezer dos sentimentos? Ou desde o púlpito de Oxford? Ah, sim, claro. Mas como se vai festejar se o acesso é uma obrigação?, anunciam com tom doutoral aqueles que jamais pisaram numa arquibancada. Ou que a pisaram muito pouco. (…) Isto não é uma festa. Isto se chama desafogo. Descarga. Alívio. Recuperação da autoestima. Da paz interior. Um bálsamo. Agora se pode respirar”.

E havia na mesma nota a mensagem a quem era torcedor do River: “escute-me uma coisa. (…) Agora sabes que sempre se pode estar pior. (…) Lembre de que te queixavas quando o River deixou de dar uma volta olímpica por ano. Depois, quando deixou de jogar a Libertadores (14 seguidas entre 1995 e 2008). Mais tarde, quando já nem sequer brigava pelos campeonatos até a última rodada. ‘Ah, pior que isto não se pode estar’, dizias. Sim, pode. O meio da tabela fez-se comum. Até uma equipe venezuelana te limpou na primeira fase da Libertadores. (…) Aconteceriam coisas piores. Lanterna de um campeonato, com o Boca campeão. ‘Tocamos fundo’, pensaste. Tampouco. Sempre se pode estar pior. Que sirva a lição”. Um dos torcedores passaria de jogador a técnico com aquele rebaixamento. Matías Almeyda, que já havia se comprometido com o presidente Passarella e mesmo com o bombeiro Juan José López a substitui-lo como novo treinador do clube em breve, embora com o pensamento de que se salvariam da queda, manteve a palavra e começava a colocar a casa em ordem. Sua última partida fora na ida da fatídica repescagem contra o Belgrano.

Expulso e suspenso para 26 de junho de 2011, El Pelado Almeyda descreveria àquela El Gráfico que “vi o primeiro tempo meio camuflado atrás das placas de publicidade, mas no intervalo me informaram e tive que sair dali. Terminei na rouparia, em um quartinho, atirado na maca vendo o segundo tempo por uma TV pequenina que há ali. A cada tanto fumava um cigarrinho, caminhava, me cruzava com El Loncho [Paulo Ferrari] ou com El Indio [Daniel Vega], fumava outro trago, não podia acreditar. Quando começaram a atirar coisas, nem sequer pudemos nos aproximar dos nossos companheiros, nos obrigaram a subir à concentração porque o assunto havia se tornado pesado. Me meti em meu quarto na concentração, me atirei na cama e chorei. Chorei muito. A mim custa um montão soltar uma lágrima, mas nessa noite chorei de verdade, enquanto os encarregados da segurança sustentavam a porta da concentração, porque queriam derruba-la e pela TV mostravam o desastre. Depois da descarga, fui consolar meus companheiros, sobretudo os mais jovens. Fui um dos últimos a sair, passada a meia-noite. Subi no ônibus e enquanto ia para casa pensava que minha única revanche possível era ser o técnico e subir à primeira”.

Almeyda e o presidente Daniel Passarella apresentando Cavenaghi e Chori Domínguez, que forçaram a saída de Internacional e Valencia. A estreia na segundona, contra o Chacarita

O rebaixamento, paradoxalmente, aumentou o número de sócios e faria do River, no torneio, o campeão de público em todas as divisões. A administração buscava fazer a sua parte, com a venda de Erik Lamela à Roma podendo saldar dívidas. Alejandro Chori Domínguez voltou para enfim ser ídolo, pois, em seu único título (Clausura 2002) com o clube do coração, só havia entrado em duas partidas; logo depois o regressado anunciado foi Fernando Cavenaghi, que buscou a saída do Internacional já naquele maldito 26 de junho de 2011. Outra figura do passado seria Cristian Ledesma, mas El Lobo jogaria pouquíssimo: só três vezes, com a redenção só lhe vindo pessoalmente com a autoria de gol no jogo do primeiro título millonario na primeira divisão, já em 2014. Foram atrás também de Carlos Sánchez. Almeyda sabia dos espinhos no caminho e queria alguém com faca nos dentes e aquele uruguaio careca – que lhe fissurara involuntariamente uma costela ao enfrenta-lo pelo Godoy Cruz, obrigando El Pelado a jogar “como um Frankenstein” as dez rodadas finais do rebaixamento – ao logo mostrou-se um leão sem juba na caminhada.

Já Manuel Lanzini foi emprestado ao Fluminense e Mariano Pavone foi vendido ao Lanús, enquanto Ariel Ortega, preferindo seguir jogando a ser assistente de Almeyda (“embora sempre fôssemos amigos, eu tinha que pensar no que era melhor para o River e não precisava dele como jogador”, lamentaria El Pelado), era definitivamente descartado para o Defensores de Belgrano. O interesse cresceu também no Brasil, nos motivando a publicar uma radiografia. Já a torcida, ainda inconformada (e simbolizada pelo Tano Pasman), chegou até a fazer campanha para o time usar uma faixa negra, para ao menos a camiseta “não ser rebaixada”.

Por causa da presença do River, os jogos da segundona estavam passíveis de mudanças, com um número limitado de visitantes (algo antes proibido já havia seis anos) e com adversários no interior buscando usar campos maiores (seja estádios públicos ou de outros clubes) em detrimento das próprias canchas particulares. O River iniciou a temporada em amistoso contra o Unión de Mar del Plata, que não deve ser confundido com o clube de mesmo nome situado na cidade de Santa Fe. Uma virada de mesa chegou a ser especulada; e não ajudou o time titular perder para o Unión… mas pressão popular desmobilizou a federação. Grondona ordenou a suspensão da virada, e a marcha de torcedores manteve-se agora para pedir a saída do chefão da AFA. Mas Cavenaghi, em outro amistoso, ajudou o time a empatar em 3-3 contra o Nacional uruguaio após estar perdendo de 3-0.

Com um susto, a caminhada na segundona começou com 1-0 no Chacarita. Dos jogadores do dia da queda, apenas Maidana e Juan Manuel Díaz começaram. Os tumultos no estádio na tarde do rebaixamento ainda não haviam sido julgados e assim a estreia pôde ocorrer normalmente no no Monumental (“fui o primeiro a entrar em campo, chorando, olhava as arquibancadas e não podia crer, muito forte tudo”, declararia Cavenaghi), embora em seguida se anunciasse a punição: cinco jogos sem mando de campo, incluindo dois sem torcida, sanção mantida após recurso do clube. Em seguida, o Millo virou sobre o Independiente Rivadavia em Mendoza – o estádio particular El Gargantini era pequeno demais e a partida foi no municipal Islas Malvinas. Ali começou a turnê pelo interior, a tornar o gigante enfim acessível a uma massa de apaixonados pelo país adentro. A edição pós-título da El Gráfico traz reflexões aplicáveis ao debate similar sobre os “mistos” no Brasil:

Parte complicada: River perde para o Boca Unidos um dia antes do “outro” Boca ser campeão invicto da elite. À direita, velas do rival nos “amistosos” de verão

“Os fanáticos do River que vivem em Buenos Aires e a cada fim de semana peregrinam até os campos em que sua equipe compete estão convencidos de que não há maior fidelidade que a sua. Apesar disso, são mais genuínas esses portenhos e bonaerenses que em certa medida precisam ver para gostar, ou os autenticamente incondicionais são os milhões do interior que desde sua lonjura constroem a grandeza nacional do River? Esses anônimos de qualquer ponto do país que não conhecem o Monumental, ou que talvez só estiveram uma vez, e que aprenderam a ser River por imagens televisivas, relatos de rádio, sites modernos, jornais amassados, fotos em preto e branco, algum pôster amarelado, aquelas figurinhas da infância, simples herança familiar ou antigas versões tribais de façanhas pretéritas. Fazer apologia de uma equipe à qual só se acessa desde um ato de fé, e não a partir de uma experiência tangível, é a consagração de uma paixão cega”.

Na mesma nota, a observação prossegue assim: “só se trata de abrir um mapa da Argentina e descobrir povoados minúsculos ou aldeias perdidas em nossa geografia, de 5 mil pessoas ou menos, e saber quem todas as apresentações do River há ao menos um torcedor que escuta o rádio ou olha a TV com a mesma tensão dos que periodicamente vão a campo. O paradoxo é que o rebaixamento de 2011 pressupôs um (indesejado) ato de reparação histórica aos militantes do interior: se conjurava que as profundidades da Segundona obrigariam o River a viajar a cidades nas quais fazia muito tempo que não visitava ou que, inclusive, nunca havia estado”. Seria o caso, principalmente, de Puerto Madryn, de uma província (Chubut, na Patagônia) que o Millo não visitava desde 1971, quando jogara a 400 quilômetros dali, na cidade de Comodoro Rivadavia para enfrentar o clube local no Torneio Nacional. Seriam finalizados ainda quinze anos sem jogar em Corrientes, oito sem um jogo competitivo em Mar del Plata, dentre outros jejuns.

“A revolução do River no interior, então, não teve raízes históricas e sim sentimentais: se houve gente que ficou dormindo em frente a um hotel ou passou a noite em claro para comprar um ingresso ou acompanhou em caravana os jogadores desde o aeroporto até o hotel, não aconteceu porque nunca haviam tido essa possibilidade e sim porque queriam e (sobretudo) precisavam fazê-lo na pior hora do clube. Uma multidão de anônimos, desses que à distância reverenciam o Monumental como os hindus veneram as águas sagradas do Rio Ganges, decidiram multiplicar o fervor religioso por sua equipe. Como diz o hino que cantaram enquanto esperavam durante horas para ver em um segundo um sorriso de David Trezeguet, uma piscadela de Matías Almeyda, um polegar levantado de Fernando Cavenaghi ou um tweet de Alejandro Domínguez”. Trezegol ainda demoraria um tempo para voltar e, em suas próprias palavras, recuperar “sensações perdidas”, como a de jogar para 60 mil pessoas após ser testemunhado por 300 em seus jogos nos Emirados Árabes.

A terceira vitória em três jogos, por 3-1, veio sobre o Desamparados, com o River ainda alugando sem torcida o estádio do Huracán (que reclamou de falta de pagamento). A quarta, em visita ao Quilmes, só não veio após levar o empate cervecero nos acréscimos; mas serviu para Cavegol voltar a marcar pelo River após 2.638 dias, desde as quartas-de-final da Libertadores 2004 – uma bomba sem sutilezas para finalizar o branco das três rodadas anteriores.

Dybala foi a revelação do campeonato. Mas o Instituto foi atrapalhado pela própria “torcida”. Vice-líder, perdeu de 3-0 em casa na rodada final para o Ferro Carril Oeste

Cavenaghi admitiria à El Gráfico que “eu tive jejuns no dobro de jogos em fazer gols, então não me preocupei. Mas era o click do primeiro gol, porque todo o mundo estava esperando esse primeiro gol, eu mais do que ninguém”. Ele declarava uma meta de deixar de 15 a 20 gols na campanha. Cumpriria, o suficiente para se colocar no Top 15 de artilheiros históricos do Millo. O time saiu da liderança no jogo seguinte (mandando no campo do San Lorenzo em função de aluguel mais barato), após novo empate, chorado: o Millo empatou em 2-2 aos 44 do segundo tempo contra o Defensa y Justicia, então sob prestígio nulo na época.

O líder era o Gimnasia de Jujuy e a segunda colocação irritava a torcida millonaria. Novo empate seguido veio no 0-0 em que o Deportivo Merlo jogou melhor no estádio do Independiente – usaria a renda possibilitada pela maior capacidade dali para construir uma arquibancada extra em sua casa própria. Já era o suficiente para se cogitar a saída de Almeyda, ainda que a segunda colocação se mantivesse em função do empate caseiro do perseguidor Rosario Central com o lanterna Guillermo Brown. Almeyda teria provocado racha entre veteranos e jovens ao não punir indisciplina daqueles relacionada a uma farra com mulheres sem a presença da garotada…

Mas a vitória e a liderança voltaram na rodada seguinte, batendo-se por 2-0 o Gimnasia LP em grande exibição de Rogelio Funes Mori, com Leandro Chichizola até pegando pênalti. Almeyda agora estava tranquilo enquanto os cartolas tinham documentação confiscada a partir de denúncia de lavagem de dinheiro. Mandando o jogo no estádio do San Lorenzo novamente, o River empatou sem gols com o Ferro Carril Oeste, mas se manteve líder: o Rosario Central, do técnico Juan Antonio Pizzi, bobeou e empatou em casa com o Almirante Brown. Outro perseguidor era o Instituto de Córdoba, do jovem Paulo Dybala, que chegou a assumir a liderança provisoriamente ao bater o Gimnasia LP.

No dia seguinte, a reposta categórica do River: 7-1 no Atlanta com três gols de Cavenaghi no estádio do San Lorenzo no reencontro após 27 anos entre Millo e Bohemio. A luta ainda era embolada: o Atlanta a seguir foi goleado (4-0) pelo Instituto, que assim recuperou a liderança provisória. E o Gimnasia de Jujuy poderia ultrapassar, mas perdeu para o xará de La Plata. Só que o River ratificou a liderança ao virar para cima do Huracán, ficando um ponto à frente do Instituto antes do confronto direto com os cordobeses. O goleiro Chichizola se empolgava: “se estivesse na 1ª, o River disputaria o título”. No que prometia ser uma final antecipada (os 51 mil ingressos vendidos quebraram um recorde de 46 mil que parecia eterno na segundona, o de San Lorenzo x Tigre em 1982), os dois líderes decepcionaram e ficaram no zero em Córdoba, resultado que manteve a ponta em Núñez.

Pizzi comandava o Rosario Central, que subiria na penúltima rodada se não perdesse em casa para o Chacarita. Única e fatal derrota canalla no Gigante de Arroyito

O Instituto, por sua vez, já tinha Dybala sendo alvo de empresários. Com 17 anos, ele era vice-artilheiro do campeonato e na rodada seguinte marcou o gol da vitória sobre o Gimnasia de Jujuy. A liderança provisória se confirmou diante da grande zebra: no dia seguinte, o River sofreu sua primeira derrota. Mesmo contando com um pênalti irregular, sofreu aos 39 do segundo tempo o 2-1 para um dos lanternas, o Aldosivi. No dia em que o Millo comemorava 25 anos de seu título mundial, o time de Mar del Plata fez história no estádio do San Lorenzo. Aquele foi o terceiro e último jogo do Lobo Ledesma na campanha, trocado no intervalo por Chori Domínguez. Ledesma só atuara antes contra Merlo e Quilmes – ele ainda seria usado em dezembro uma quarta vez na temporada, na Copa Argentina, contra o Defensores de Belgrano.

A recuperação e volta da liderança veio via Cavenaghi, que fez os quatro gols de um 4-1 sobre o Gimnasia de Jujuy na casa deste. Mas, após má fase, o Rosario Central se recuperava e se igualou a provisoriamente ao River e Instituto ao bater por 3-1 o Aldosivi. Os cordobeses ficaram novamente à frente ao fazerem 3-0 no Boca Unidos, já os millonarios decepcionaram. Em pleno retorno ao Monumental após 89 dias, perderam de 2-0 para o Atlético Tucumán. Ao menos a recuperação foi rápida, indo à Patagônia golear por 4-1 o Guillermo Brown enquanto os tucumanos a seguir aprontaram em casa para cima do Rosario Central, vencendo-o. As duas principais camisas da segundona depois travaram confronto direto no Monumental: 1-1.

Com aquele 1-1, o Instituto reassumiu a liderança mesmo só empatando em casa, também em 1-1, com o Independiente Rivadavia. Ponta que se manteve na rodada seguinte: enfrentando clima de guerra em Corrientes, o River jogou bem, mas perdeu para o Boca… Unidos. A piada estava pronta no país, especialmente porque no dia seguinte o “outro” Boca garantiu, e pela primeira vez de forma invicta, o título da primeira divisão, cenário dos sonhos para os arquirrivais. Especialmente porque no dia do título xeneize, o River começou sorrindo ao ver o Instituto só empatar com o Quilmes, mas caiu para o terceiro lugar, ultrapassado pela vitória do Rosario Central sobre o Patronato.

Após reencontrar Ortega como adversário no embate com o Defensores de Belgrano pela renascida Copa Argentina, em 7 de dezembro (um jogo único na neutra San Juan, 1-0 com gol de Domínguez), a temporada em 2011 se encerrou com o River, graças a Sánchez, batendo por 1-0 o Patronato e voltando à vice-liderança: o Central ficou só no 1-1 em visita ao Chacarita enquanto o Instituto seguia líder após virar sobre o Merlo. Já o Quilmes entrava no G4. Era hora do campeonato dar lugar aos amistosos de verão, com dois reencontros com o Boca agendados. Almeyda defendia que os Superclásicos amistosos fossem jogados em Miami para minorar as provocações. Claro que existiram: em duelos nada amistosos contra o rival, o River perdeu ambos; 2-0 no Chaco com uma expulsão para cada lado, e 1-0 em Mendoza. Ficou famosa a provocação auriazul em acender velas nas arquibancadas e exibir lágrimas de crocodilo pelo “co-irmão”.

Festa de Quilmes na Patagônia (o clube celebraria seus 125 anos) e do River no Monumental naquele 23 de junho de 2012

As boas notícias na virada de ano pelos lados de Núñez se limitaram a contratações. O volante Leo Ponzio, remanescente do título anterior na primeira divisão, no Clausura 2008, voltava sem desconfiar que se converteria no jogador mais vezes campeão com o clube –  mas, mesmo antes dessa transformação, já tinha sua importância no acesso, em contraste com a recepção fria em sua volta, reconhecida por aquela El Gráfico com um “sejamos sinceros: quando se soube que um dos reforços para o returno era Leonardo Ponzio, o torcedor do River não armou um bandeiraço para celebra-lo”. Quem realmente foi festejado na época foi David Trezeguet, anunciado ainda em dezembro. Almeyda, que tanto o conhecida em diversos enfrentamentos por Lazio, Parma ou Internazionale contra a Juventus do francês, implorou: “se estás 30% do que conheci na Itália, te quero aqui agora mesmo”.

A segundona foi retomada em fevereiro para o River, em empate em 1-1 com o Almirante Brown fora de casa. Sentia a aproximação do Boca Unidos, dois pontos atrás após bater fora de casa o Independiente Rivadavia, e era igualado pelo Central, graças a um gol canalla nos 50 do segundo tempo sobre o Desamparados. Por outro lado, o líder Instituto só empatou em casa com o Huracán. Assim, na rodada seguinte, a primeira do returno, o Millo recuperou a ponta ao bater por 2-0 o Chacarita, que mandou o jogo em La Plata, ainda assim rendendo farpas entre Cavenaghi e Chori Domínguez.

“Raro caso o do Chori; difícil encontrar uma comparação… a ver: como o vizinho que se oferece gentilmente a apagar o incêndio e, enquanto vai combatendo as chamas, o dono da casa lhe questiona que lhe salpique os sapatos. A ver: como o cavalheiro que se levanta para dar o assento e a senhora reclama porque, ao sentar-se, o sol lhe bate na cara”, lhe defenderia a El Gráfico. A carga emocional extra vinha também por uma tristeza extracampo a todos os argentinos: torcedor riverplatense confesso, o lendário guitarrista Luis Alberto Spinetta havia acabado de falecer (daí os braceletes negros usados pelos jogadores). Era preciso seguir viviendo sin tu amor, como cantava El Flaco Spinetta em uma de suas mais lindas canções. Especialmente porque o Central demonstrava futebol de campeão ao virar par 3-2 sobre o Defensa y Justicia.

Só que os canallas, que poderiam virar líderes provisórios, perderam em seguida no finzinho para o Gimnasia LP, outro a sonhar com o acesso. A liderança ficou dividida entre River e Instituto: foi após o Millo bater por 3-0 o Independiente Rivadavia (com direito ao primeiro gol de Trezeguet pelo clube do coração) ao ritmo do auge internacional de Michel Teló; e La Gloria assegurar um 3-1 sobre o Aldosivi em Alta Córdoba. Quieto, o Quilmes assumiu rapidamente a ponta após um sonoro 7-1 no Rivadavia. A dianteira logo foi retomada pelo River após um 4-1 fora de casa sobre o Desamparados… e reigualada pelo Instituto, que igualmente fez quatro em sua visita, ao Atlético Tucumán.

Funes Mori como herói agônico contra o Boca Unidos, Cavenaghi às lágrimas com a missão cumprida

Veio a rodada que coincidentemente teve os confrontos diretos do G4. O River e Quilmes não saíram do zero no Monumental, enquanto Dybala e colegas abriram um 3-0 no Central desde os 15 segundos de jogo, isolando novamente o Instituto na frente. E continuou lá porque, embora Trezeguet tenha feito dois, o River ficou no 3-3 com o Defensa y Justicia. Usando o estádio do Vélez para alugar o Monumental a nove shows de Roger Waters, o Millo recuperou-se com um 3-0 no Merlo, um gol de cada do tridente ofensivo entre Trezegol, Cavegol e Chori – enfim escalados juntos pela primeira vez. O técnico Almeyda era até homenageado pela legislatura portenha e Lucas Ocampos era sondado pelo Barcelona – Ocampos quem mais esteve na longa jornada, em 38 jogos (em contraste à única de um anônimo Germán Pezzella, ou às seis de Gustavo Bou, que precisaria ir ao Racing para se consagrar, já em 2014).

Mas o Instituto não se descuidava, batendo o Chacarita por 3-1. Para piorar, o River ficou no 0-0 em visita ao Gimnasia LP, no primeiro jogo da segundona argentina transmitido ao vivo no Brasil, pela ESPN. Em estado de graça, o líder Instituto fez 3-0 em visita ao Desamparados, três gols de Dybala (um logo no primeiro minuto), ensejando essa matéria sobre a mania gerada em torno de La Joya. Já o River gerava notícias de brigas de egos no seu trio ofensivo. Um dos membros, Chori Domínguez, por sua vez garantia que eventual título da segundona seria “o mais importante da carreira”. Domínguez seria um dos torcedores ilustres nas arquibancadas do Santiago Bernabéu em um certo jogo de 2018.

O River encostou nos cordobeses com um 3-0 construído nos dez minutos finais sobre o Ferro Carril Oeste, em grande exibição dos gêmeos Funes Mori (Ramiro, recuperado de uma apendicite, ganhara a vaga do ex-botafoguense Alexis Ferrero e abriu o placar e Rogelio sofreu o pênalti do segundo). O Rosario Central vacilava, o Quilmes seguia no retrovisor e o Instituto, líder. A seguir, o River perdeu de 1-0 para o Atlanta (que brigava para não cair) e era igualado pelo Quilmes. Parecia que algumas coisas só aconteciam com o River, pois o Atlanta não voltaria a vencer naquele torneio… a crise fez até mesmo Trezeguet ser sacado dos titulares.

Veio a vitória por 2-0 sobre o Huracán em um gramado péssimo no Monumental após aqueles nove shows em que o ex-baixista do Pink Floyd tocou The Wall na íntegra. E, em nova rodada direta no G4, o Central pareceu recuperar-se, batendo por 1-0 o Quilmes fora de casa – o que enfureceu vândalos quilmenhos que destruíram automóveis e roubaram a renda da partida. Já o River, com cobertura in loco do Futebol Portenho no Monumental, bateu pelo mesmo placar o líder Instituto. Mas em seguida cedeu o empate ao Aldosivi e viu o Central igualar-se na vice liderança, após triunfo rosarino sobre o Ferro Carril Oeste. Com a luz amarela, Domínguez já admitia possibilidade do River ir só à repescagem.

Trezeguet começando a recolocar o River na elite, abrindo o placar sobre o Almirante Brown: “o desafogo” é a legenda

Mas Trezeguet deu a vitória complicada sobre o Gimnasia de Jujuy no Monumental, diminuindo em um ponto a diferença para o Instituto. O Central também ficou no encalce dos cordobeses, após 3-0 no Huracán. O líder, por sua vez, tropeçou contra o Guillermo Brown e o Quilmes seguia no páreo, com um 3-0 fora no Desamparados. Dybala e colegas voltaram a vacilar, levando de 3-2 do Boca Unidos em Corrientes, e foram ultrapassados por uma co-liderança: o River bateu o Atlético Tucumán e o Central arrancou aos 43 do segundo vitória sobre o Aldosivi. O ambiente no agora ex-líder já era outro: “temos bala para todos”, ameaçaram os barrabravas de La Gloria, interceptando o ônibus dos jogadores (os “torcedores” foram presos ao chegarem em Córdoba). O River, por sua vez, ia bem também na Copa Argentina, indo às semifinais após vencer facilmente o “clássico” com o San Lorenzo. Almeyda agora dizia que a pressão passava a ser “dos outros, não do River”.

Só que o Central assumiu a ponta ao bater o Tucumán enquanto nos acréscimos o River cedeu em casa o 2-2 ao Guillermo Brown, para a chuva de objetos sobre os jogadores millonarios; “nem tudo depende de mim”, desabafou Chori no twitter, rede social que também lhe era fonte de críticas de uma torcida que cornetava que o clube precisava “menos de tweets e mais de gols”. Viver a segundona enquanto o Boca ia a uma final de Libertadores em nada ajudava na cabeça dos hinchas… Enfrentando o outro Brown (o Almirante), o Instituto encostou e venceu mesmo na coação. Central e River fizeram então uma final antecipada no Gigante de Arroyito. Que decepcionou: apenas um 0-0. O Instituto também só empatou e o Quilmes perdeu em casa, o que deixou tudo em aberto faltando três rodadas – ou “os trinta dias mais importantes da história do River”, segundo Almeyda.

Nesse contexto, o River usou na semifinal da Copa Argentina reservas que caíram nos pênaltis para o Racing, frustrando quem esperava um Superclásico na decisão. É que o Boca avançou à final, também nos pênaltis e também contra os reservas de outro time na briga pela segundona, o Central… enquanto isso, Instituto e Quilmes fizeram duelo direto em Córdoba e, mesmo em casa, La Gloria perdeu de 2-0. O Central eventualmente perdeu para o Patronato no estádio do Colón. E, com três gols em eletrizantes quinze minutos finais, o River, mesmo sem aparentemente merecer, venceu por 2-1 o “clássico genérico” com o Boca Unidos e se isolou de novo na liderança. Tão cornetado, Rogelio Funes Mori foi o herói ao dar a vitória aos 44 minutos do segundo tempo, mas o entorno não sorria. Domínguez criticava os próprios torcedores, não pela morte de um deles em briga nas arquibancadas do Monumental (cuja interdição para a última rodada ficou no ar), mas porque sentia que “estamos sozinhos”.

Menos mal que a pressão se dividia com os outros postulantes. Repercutiu-se que o Patronato havia se empenhado contra o Central graças a uma mala preta do River. Só que em seguida o clube de Paraná bateu o próprio River. O Quilmes sapecou um 4-0 sobre o Gimnasia de Jujuy e ficou a um ponto do Millo. E o Instituto, fora de casa, se igualou na liderança após bater o Merlo por 2-0, para as lágrimas dos próprios cordobeses, reiteradamente ameaçados pela própria torcida (ainda em 0-0, o adolescente Dybala perdeu pênalti). E o Central… o Central poderia garantir o acesso direto naquela penúltima rodada. Não havia perdido no Gigante de Arroyito. Mas levou lá dentro de 2-0 de um Chacarita que seria lanterna. Foi um dos grandes pontos de inflexão do torneio.

Desafogo também dos outros com o apito final: entre Luciano Abecasis à esquerda e Chichizola à direita, o técnico Almeyda salta e o veterano Cavenaghi rola no chão

De líder e quase ascendido, os rosarinos desceram para o terceiro lugar – e já sem dependerem apenas de si. Para piorar, teriam pela frente fora de casa o Desamparados, outro time que precisava vencer para não cair. Os jogos do G4 foram agendados ao mesmo horário, em uma rodada final dos sonhos a quem era neutro. Rodada com chances de não definir o campeonato: se os líderes River e Instituto perdessem e Central e Quilmes, ambos um ponto atrás, empatassem, os quatro se igualariam e forçariam um quadrangular extra. As mil possibilidades propiciadas pela distância diminuta no G4 permitiam uma em que quem ainda estava em quarto lugar tinha chances de terminar subindo diretamente como também quem estava na liderança poder terminar tendo de se contentar com a repescagem.

O River pôde usar o Monumental. Teria pela frente um Almirante Brown treinado por um técnico ansioso em fazer história: Blas Giunta, ídolo e torcedor confesso do Boca. Os barrabravas aurinegros, insatisfeitos com a oferta irrisória de dois mil ingressos visitantes, chegaram a prometer “suspender o jogo”. O relato da El Gráfico sobre aquele dia imaginou assim a cabeça do torcedor riverplatense: “uma partida a mais, é preciso ganhar só uma. Não te peço trinta como o Barcelona. Uma para terminar com este suplício”. Era uma referência a uma das verborragias do icônico Tano Pasman, o torcedor filmado sob surto na repescagem contra o Belgrano, na qual em dado momento pedira “só três passes seguidos” e “não trinta” como o tiki-taka dos catalães, ainda encantadores na sua Era Guardiola.

A boa surpresa ficou para o Quilmes, que pôde festejar em alto estilo seus 125 anos oficiais completados naquele 2012. Ao fim do primeiro tempo, era ele o provisório campeão, com um 2-0 na fora sobre o Guillermo Brown. O título não veio ao Cervecero, mas o acesso direto sim, o suficiente para render invasão de campo dos fanáticos que viajaram à Patagônia e para deixar o próprio técnico Omar De Felippe incrédulo. O Rosario Central, no contexto mais complicado, lutou: perdia de 2-0 e até empatou, mas levou o terceiro. E a grande decepção foi o Instituto. O outrora melhor futebol do país simplesmente levou de 3-0 em casa de um time misto sem ambição do Ferro Carril Oeste. Canalla e La Gloria teriam de se contentar com as repescagens (o baque pesou: já em julho, os rosarinos sucumbiriam com dois empates para o San Martín de San Juan. Na outra, os cordobeses poderiam rebaixar o gigante San Lorenzo, mas o duelo Walter Kannemann x Dybala terminou com lágrimas do garoto).

A taça ficou mesmo com o River, com um 2-0 construído no segundo tempo. Trezeguet perdeu um pênalti, mas já havia aberto o placar com um golaço em bomba e depois converteu outro pênalti para recolocar o clube na elite após 362 dias. Para o escudo do Millo ser tatuado por Jonathan Maidana, o zagueiro ex-Boca presente tanto no rebaixamento como nas Libertadores 2015 (a consagrar ainda Cavenaghi, Ramiro Funes Mori e Carlos Sánchez, dentre outras figuras do acesso) e, sobretudo, 2018. Ponzio seria o outro rosto do título a erguer em médio prazo os dois troféus máximos do continente. O conteúdo textual da revista pós-acesso da El Gráfico termina mesmo com as seguintes palavras de Almeyda: “tomara que isto seja o começo de algo muito grande. O que o River merece”.

Clique aqui para acessar nosso raio-X na época sobre a campanha millonaria. E aqui para os números do acesso inimaginável do Quilmes.

Maidana e Ponzio, futuros ícones da Era Gallardo: foram os dois campeões da segundona que em médio prazo estariam nos dois títulos da Libertadores que a década reservaria ao River

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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