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45 anos sem o mais efetivo artilheiro argentino: Bernabé Ferreyra, quem popularizou o River

Em dezembro de 2011, o River celebrou os 25 anos de seu título mundial. A reunião dos campeões foi reportada no mês seguinte pela revista El Gráfico com esses dizeres: “1986 foi o ano mais importante da história do River”, algo lógico. Em seguida, sugeriu-se outros anos importantes: “1938 e a inauguração do Monumental”, “1975, que acabou a noite dos 18 anos e catapultou o clube a ser o maior campeão do futebol argentino”. O outro concorrente? “Poderia competir com 1932, o que viu como Bernabé Ferreyra chegava do Tigre e convertia o River em uma comovente manifestação popular que explodia estádios”. Único com mais gols que jogos no campeonato argentino, La Fiera ou El Mortero de Rufino nos deixou há exatos 45 anos.

Contando o período amador, foram 232 gols em 228 jogos. Só pelo River, foram 187 em 185. Se o próprio ano de 1938 foi sugerido em função da inauguração do Monumental, isso se deveria a Bernabé, segundo outro ídolo riverplatense parido pela cidade santafesina de Rufino: o mitológico goleiro Amadeo Carrizo, que em depoimento à mesma revista El Gráfico classificou aquele centroavante como o maior ídolo millonario: “revolucionou o futebol na década de 30. Se iam 40 mil pessoas ver o River, 39 mil iam para ver Bernabé, pelos golaços que metia a 30 ou 40 metros. E eu tenho o orgulho de ser do mesmo povoado que Bernabé”. Segundo Carrizo, foi com a renda dessas multidões que começaram a se interessar pelo Millo que o clube angariou fundos para erguer o Monumental.

“O ídolo máximo, para mim, é Bernabé Ferreyra, porque transformou o River em um clube popular. E olhe que jogou cinco ou seis anos, nada mais, e eu, 21. Porém, eu não me considero que possa superar Bernabé em idolatria”, definiu Carrizo. Em uma outra edição da El Gráfico, que celebrou em 1959 os quarenta anos da revista, de fato o ano de 1932 é exaltado em especial em função do atacante. A descrição do apelo gerado foi sucinta: por Bernabé, estavam se interessando por futebol “até os que odeiam futebol”.É justo dizer que ele também foi o primeiro jogador cujo nome basta como referência (um feito de peso em cultura onde os jogadores são conhecidos por sobrenomes, diferentemente de no Brasil), assim como Diego virou sinônimo de Maradona, Amadeo para Carrizo ou Román para Riquelme. Daí o uso mais frequente de “Bernabé” em vez do comum sobrenome “Ferreyra”.

Marcado pelo pique imparável e pelas bombas (incompatíveis com um corpo magro, mas que também não costumava perder divididas), jogava um futebol simples: não era um driblador, só arriscando chutar quando julgava necessário, do contrário passava a bola. Vamos à sua história, enfim.

O Bernabé pré-River: em Rufino, BAP, Tigre (e Huracán e Vélez)

Por BAP, Huracán, Vélez (que ainda não usava a listra V, e sim “a la Fluminense”) e Tigre

Nascido em 12 de fevereiro de 1909 como o menor dos seis filhos de Bernabé Ferreyra pai e de Dominica Bravo, deveria se chamar Gregorio, como desejava o avô, que tinha esse nome. Mas o pai “xará” preferiu o dele. Foi a grande herança deixada, pois o atacante não guardou maiores lembranças do progenitor, que perdeu aos 2 anos de idade. Seus pais foram na prática os irmãos mais velhos. Um deles, Paulino, o introduziu ao futebol e ao treinamento intenso dos chutes. As bombas acabariam virando a marca registrada de um atacante magro de pernas finas. E foi Paulino quem levou-o ao primeiro clube, o Jorge Newbery (nome do Santos Dumont argentino) de Rufino.

Entrou no time adulto aos 15 anos. Mostrou a que veio já na segunda partida, ao marcar quatro gols em um 6-1 no Palmira, clube que tinha vários jogadores da seleção provincial de Mendoza. Na temporada 1925-26, Bernabé conseguiu na liga municipal sua primeira artilharia: 24 gols em um campeonato que só tinha oito times. Na seguinte, conseguiu nova artilharia, agora com 28 gols, e também seu primeiro título. No amadorismo, tinha como profissão pintor de obras. Em 1927, foi trabalhar nessa função na ferrovia Buenos Aires al Pacífico, que tinha na cidade de Junín o seu próprio clube de futebol, por sinal um dos mais antigos da Argentina, fundado em 1898. Com o reforço, o BAP foi campeão juninense após onze anos. E Bernabé, o artilheiro com 29 gols.

Na época, a associação argentina, apesar do nome, se resumia aos clubes da Grande Buenos Aires e La Plata. Mas havia ativistas na AFA em prol do desvalorizado interior. Um deles, Alberto Monge, conseguiu testes de Bernabé no Tigre em 1929. Bernabé estreou marcando os quatro gols em um 4-0 amistoso com o El Porvenir. Seu ofício de pintor lhe rendia 7 pesos na ferrovia BAP. No “amadorismo marrom”, passou a receber “por fora” 200 pesos mensais dos rubroazuis. Fé no próprio taco não faltava: convidado pelo presidente tigrense a assistir um Racing x Boca, foi indagado qual o melhor em campo. “Esse loirinho, mas tenho mais pique e chuto mais forte que ele”, respondeu, referindo-se ao xeneize Domingo Tarasconi, sem saber que se tratava do artilheiro das Olimpíadas de 1928.

Em maio de 1930, já estreava pela seleção, em amistoso contra o Uruguai preparatório à Copa do Mundo. Foi um desastre e terminou não convocado; depois se saberia que, escondendo de todos, havia na manhã daquele dia doado sangue para sua irmã. Com a Copa em andamento, o Huracán se desfalcou de seu grande astro, Guillermo Stábile, que viria a ser o artilheiro do torneio. Uma das potências da época (tinha mais títulos que o rival San Lorenzo, o Independiente e o River), o Globo precisava de um substituto para a excursão que faria no Brasil. Bernabé foi emprestado. A turnê não foi das melhores, mas o atacante descreveria São Paulo como “uma maravilha”, embora o Rio de Janeiro fosse “ainda melhor”.

Volta olímpica no River, algo que começou a ser uma constante após Bernabé. À direita, preparando uma de suas famosas bombas

Ainda assim, Bernabé emendou uma viagem na outra. O Vélez também o requisitou para excursão realizada em todas as Américas, contratada sob a condição da presença de três jogadores da Copa do Mundo de 1930. A intenção era cumprir o requisito mediante os empréstimos de Francisco Varallo (Gimnasia), Fernando Paternoster (Racing) e Manuel Ferreira (Estudiantes), mas este foi negado. Bernabé, de sobrenome parecido e da mesma posição, foi então “malandramente” levado em seu lugar. Para virar o astro principal: fez 38 gols em 25 partidas, onde os velezanos só perderam uma. Mas não foi uma viagem feliz, recebendo no Chile a notícia da morte de um irmão. O ano já era 1931 e o primeiro campeonato argentino abertamente profissional estava em pleno andamento.

Bernabé estreou na 14ª rodada, contra o Quilmes: 4-1, com quatro gols dele. Mas a partida que correu a boca de todos foi contra o gigante San Lorenzo, na 18ª: os azulgranas eram líderes e abriram 2-0, mas Ferreyra fez os três da vitória de virada, em um espaço de sete minutos (aos 29, 33 e 36 do segundo tempo). “As pessoas ficaram loucas quando marquei o gol do empate, mas quando marquei o terceiro gol foi tal a injeção que me caíram lágrimas de alegria”, escreveu. Bernabé. A El Gráfico reportaria que seriam uns 10 mil espectadores em campo, mas o tempo fez as sedizentes testemunhas chegaram a dois milhões “sem contar os que morreram”, além de diminuir cada vez mais o espaço entre o primeiro e o último gol.

“Dizem 5, 4, 3 minutos. Seguindo assim, vamos chegar à conclusão de que em um mesmo chute fiz os três gols”, brincava o atacante, que começou a anotar em um livro cada suposto espectador que lhe abordava a respeito: segundo ele, a quantidade de nomes anotados daria para “encher três estádios do River”. Se foi possível o estádio do River lotar, muito se deveria a Bernabé. Uma das testemunhas seria o mitológico cartola riverplatense Antonio Vespucio Liberti, futuro nome oficial do Monumental. O Tigre terminaria o campeonato só em antepenúltimo, mas o matador do Matador (apelido do clube) fez 19 gols nas treze rodadas que disputou.

No River: transformando-o em um clube popular

O clube tinha só um título argentino, no longínquo 1920. As equipes mais populares eram, de longe, Boca e Racing, os clubes mais vitoriosos ativos na época. A seleção vice-campeã mundial em 1930 não tinha nenhum jogador riverplatense. Foi por contratar em 1931 uma das estrelas daquela campanha no Uruguai, Carlos Peucelle (que fez gol na final), do extinto Sportivo Buenos Aires, que o River foi apelidado de millonario. Algo reforçado com a compra de Bernabé: 35 mil pesos que fizeram da transferência um recorde mundial. Foi o primeiro recorde fora do Reino Unido, conforme apontado pela FourFourTwo inglesa, e durou 17 anos.

Ainda é a única transferência recordista envolvendo dois clubes não-europeus. E o tratamento estelar não se resumiu a isso: Bernabé teve o direito de continuar morando em Rufino, indo a Buenos Aires às sextas para voltar aos domingos. Com o tempo, já era apanhado de avião. E ele, que se pudesse jogaria descalço (como fazia em Rufino), tinha chuteiras sob medida, raridade na época. As meias também eram personalizadas: calçava os pés em meias comuns de seda, cortadas no tornozelo e remendadas com os meiões. Afinal, o River foi logo campeão argentino em 1932. Precisou de um jogo-extra com o Independiente, mas Bernabé não deu margem a dúvidas quanto a seu desempenho individual.

Tirando o título do Boca em 1933 (com a camisa tricolor do River) e apreciando seu busto em 1961

Foram 43 gols em 34 rodadas. Uma média altíssima que se torna abismal ao ver-se que o vice-artilheiro (Hugo Lamanna, que passaria pelo Vasco) fez um pouco acima da metade, 24 gols. Nos primeiros doze jogos, Bernabé deixou o seu, motivando uma medalha dourada do jornal Crítica ao primeiro goleiro que não fosse vazado por La Fiera (apelido criado pelo jornal). Algo tão desejado que dois reclamaram a premiação, e com argumentos válidos. Pela 13ª rodada, falta de luz fez com que o 1-1 entre River e Huracán fosse interrompido aos 28 do segundo tempo. Bernabé não marcou, mas os minutos finais ainda seriam jogados em outro dia. Na 16ª, Néstor Sangiovanni, o goleiro do Independiente, comemorou duplamente: seu clube aplicou um 5-0 no River e o goleiro seria então premiado.

Posteriormente, foram jogados os minutos finais contra o Huracán e o resultado não se alterou. O gol do River havia sido de Peucelle e o arqueiro huracanense Cándio De Nicola exigiu o prêmio. O jornal então deu a ambos. O 5-0 do Independiente, por sua vez, seria vingado duas vezes. No returno, a diferença foi devolvida, com o River fazendo 6-1 no Rojo, agora com Bernabé marcando duas vezes. Os dois clubes terminaram empatados. E no jogo extra, no campo neutro do San Lorenzo, El Mortero de Rufino abriu o marcador logo aos dez minutos, com uma de suas famosas bombas de longa distância (35 metros). O River venceria por 3-0. Logo o Millo faria turnês pelo interior, cobrando um valor se Bernabé estivesse em campo. E outro se não jogasse. O presidente argentino Agustín P. Justo lhe visitou nos vestiários “porque quando leio os jornais, vejo que você sai todos os dias e eu não. E não entendo”.

Para 1933, o mote de millonarios foi novamente reforçado: o clube trouxe aquele outro Ferreira, o Manuel, ninguém menos que o capitão da Argentina na Copa de 1930, assim como o goleiro titular nela, Ángel Bosio. Mas o time não foi tão arrasador, ainda que desfrutasse de uma alegria: tirar o título do Boca. O Clásico Boquense (pois o River também nasceu no bairro de La Boca) ou Darsenero, como ainda era chamado o Superclásico, ocorreu na última rodada, sob muita polêmica: um jogador do River foi fraturado e, sem substituições, os Ferrei(y)ra e colegas jogaram com um a menos. Mas a vitória veio do mesmo jeito. Manuel fez um e Bernabé, os outros dois no 3-1.

Só que Bernabé, que não usava caneleiras, algodões nem era de reclamar das faltas, começou a ser caçado. Os gols não paravam de sair, mas nunca mais como em 1932 (um ano histórico também por outras razões: nele, o clube voltou a usar a mítica faixa diagonal vermelha, que havia sido aposentada após o acesso à elite em 1908, trocada pela tricolor em listras vermelhas e brancas separadas por finas listras pretas – hoje a tradicional camisa reserva), o único ano em que La Fiera terminou na artilharia do campeonato. O clube só voltou a ser campeão em 1936, ano que marcou a estreia dos jovens Adolfo Pedernera e José Manuel Moreno, este bancado pelo próprio Bernabé. É de Pedernera a famosa anedota na qual até Carlos Gardel tietou o jogador, que retribuiu: “não, maestro, La Fiera é você quando canta”.

Em sua despedida do futebol, em 1939, e como discreto campeão na seleção em 1937

Em 1937, veio novo título, no primeiro bicampeonato do Millo. Moreno já fazia mais gols que o amigo, ainda bastante útil para além dos gols: “sua valentia e seus canhões obrigavam que os rivais redobrassem o cuidado. Nos fazia mas fácil jogar”. Naquele mesmo ano, foi a vez de Ángel Labruna jogar pela primeira vez no time adulto, também bancado por Bernabé, em amistoso em Rufino contra o Jorge Newbery. Já um goleador notável como Luis María Rongo não teve a mesma sorte, pois também era centroavante. Sua média de gols era ainda maior, mas foi liberado para brilhar no Fluminense, onde foi bicampeão estadual com mais de um gol por jogo também: saiba mais. Por ter Bernabé, o River não se esforçou tanto na disputa para contratar Arsenio Erico, futuro maior artilheiro absoluto do campeonato argentino.

Em 1938, foi inaugurado o Monumental, e Bernabé não deixou de fazer o seu gol na inauguração, o segundo da vitória por 3-1 no amistoso com o Peñarol. Mas jogou poucas vezes o campeonato. Em 1939, só entrou em campo duas vezes. Numa delas, no 5-0 sobre o Argentino de Quilmes, fez seus últimos dois gols. “Antes que o futebol me deixe, prefiro deixa-lo eu”, anunciou. Caçado, inspirou essas outras palavras da revista El Gráfico: “Bernabé tinha direito a entrar na cancha com um revólver para defender-se dos que o golpeiam”. Quando pendurou as chuteiras, era: o maior artilheiro do campeonato argentino em números absolutos (ainda é em números relativos); o maior artilheiro do clube; e o maior artilheiro do Superclásico.

E na seleção?

O que sobrou de sucesso clubístico, porém, faltou na seleção. A estreia em más condições físicas pela Argentina em 1930 tirou-o da primeira Copa do Mundo. Depois, ele foi atrapalhado por fatores políticos: como a AFA não reconhecia a liga profissional, só se rendendo em 1935, apenas amadores foram à Copa de 1934 – os clubes profissionais não liberaram seus astros, temendo perdê-los de graça para o exterior por serem de um campeonato ainda não reconhecido pela FIFA. Por fim, os hermanos desistiram de participar das eliminatórias à Copa de 1938, desgostosos por acreditarem que mereciam ser a sede do torneio, que segundo eles devia se alternar entre Américas e Europa. Mas a França manteve-o no Velho Continente pela segunda edição seguida.

Ainda assim, é surpreendente a falta de sucesso de Bernabé. Após a estreia, só jogou outras três vezes, sem um único gol: em dezembro de 1933, na primeira vitória argentina sobre o Uruguai dentro do Centenário; e na vitoriosa Copa América de 1937, como titular contra o Chile e saindo do banco na finalíssima contra o Brasil. Segundo o livro Quién es Quién en la Selección Argentina 1902-2010, “as crônicas da época assinalam que Ferreyra não se sentia cômodo no conjunto nacional e que muitos não o consideravam útil para ele. ‘Não sabe ou não quer jogar internacionais’, chegou a escrever-se”.

Pós-futebol

O River ofereceu-lhe cargo de técnico ou algum trabalho nas inferiores, recusados: aceitou somente cuidar do campo. Descrito como homem de poucas palavras, mas bem humorado e bastante generoso, a ponto de permitir que usassem seu carro em Rufino (deixava-o fora de casa com a chave na ignição) e de não cobrar dinheiro emprestado, gastou a maior parte da fortuna que recebeu. Em 1961, chegaria a declarar que “Deus é como um grande hospital que admite toda classe de germes”. O River se prontificou a quitar as dívidas pessoais do antigo craque, custeando tratamentos médicos dele e de sua esposa, Doña Juanita. (com quem teve Bernabé Daniel em 1936 e Carlos Alberto em 1940).

Em uma de suas últimas aparições públicas, conheceu o argentino com mais gols em campeonatos nacionais: um tal de Carlos Bianchi, que arrebentava na Argentina em 1971, penúltimo ano de vida de La Fiera. Quando faleceu, naquele 22 de maio de 1972, Bernabé (enterrado em Rufino, mas velado no Monumental) já estava imortalizado não só no futebol, mas na música, homenageado em diversos tangos. Em um deles, La Fiera, o eu-lírico entoa que “garotos, tenham cuidado/que se aproxima La Fiera/glória a ti, campeão/de potente patada/que já ficou gravada/pela tua supercondição/O futebol de tua nação/te consagrou, muito sincero/o terror dos goleiros/pelo teu soberbo tapão/urra mil vezes, campeão/jogador extraordinário/és alma, és coração/do clube dos millonarios“.

Com dois sucessores: nos anos 40 com Alfredo Di Stéfano e nos anos 70 com Carlos Bianchi

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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