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20 anos de um Argentina x Bolívia mal explicado: Julio Cruz como o Rojas argentino?

Nesta semana, a Argentina sucumbiu à Bolívia em La Paz e se viu na corda bamba na classificação à Rússia 2018. A altitude equilibra a freguesia geral de La Verde, derrotada 27 vezes em 38 jogos no geral; em casa, porém, venceu seis (todas as suas vitórias sobre a Albiceleste), incluindo o 6-1 sobre Messi & cia em 2009 (derrota mais elástica dos hermanos contra todas as seleções), empatou duas e foi derrotada quatro – a última, em 2005. Em 2 de abril de 1997, a bela geração boliviana noventista impôs um tumultuado 2-1 marcado pela suspeita lesão do atacante Julio Cruz.

As eliminatórias à Copa de 1998 foram as primeiras no formato todos contra todos na Conmebol – ou quase isso, pois o Brasil não participaria, tendo vaga automática como campeão de 1994. Com nove participantes por quatro vagas, por vezes a tabela tinha distorções, pois uma seleção folgava por rodada. E os hermanos, apesar de livres da concorrência brasileira, custaram a ter vida tranquila.

Embora tenham começado a caminhada em 1996 com um 3-1 sobre a própria Bolívia, naquele ano foram derrotados por 2-0 pelo Equador (em Quito, mas ainda modesto) e levaram dois empates em casa: do Paraguai em setembro, na recordada noite em que Chilavert empatou com gol de falta, e do Chile em dezembro, graças a um pênalti convertido por Batistuta nos quinze minutos finais. 1997 começaria complicado, com três jogos seguidos fora. Mas a situação não desgringolou: 0-0 com o Uruguai no Centenário e 1-0 sobre a forte Colômbia em Barranquilla eram os resultados anteriores.

Veio então o embate com a Bolívia, de campanha instável mesmo em casa: em La Paz, havia nas eliminatórias sofrido empates de Paraguai, Chile e Peru, pontos preciosos que faziam La Verde ficar bem atrás. Mas os argentinos não visitavam a altitude boliviana havia dezoito anos, derrotados por 2-1 na Copa América. Havia o trauma de 1969, no qual uma outra derrota foi decisiva para a desclassificação argentina adiante, em um grupo formado também com o classificado Peru.

Cruz sobre o trator onde aparava o grama do Banfield, o que rendeu o apelido de “El Jardinero”. E compondo ataque com Ortega e Francescoli no jogo do título argentino do River em 1996

Nas eliminatórias de 1974, Argentina e Bolívia caíram de novo no mesmo grupo. Na época, a FIFA ainda não era uma empresa e se os argentinos ficassem de fora pela segunda vez seguida de um mundial, temiam perder a sede de 1978. E o que foi feito? Enquanto os titulares jogavam, jogadores ainda iniciantes foram ordenados a se preparar por meses na altitude entre a fronteira e o país vizinho para se adequaram aos efeitos. Mas não foi nada organizado, com eles entregues à própria sorte para arranjarem de jogos amistosos (sem o técnico Omar Sívori) a alojamento e comida. Alguns desistiram no caminho: falamos aqui.

Foi nesse contexto nada glamouroso que Kempes e Fillol chegaram à seleção, na “Equipe Fantasma”. Acabou dando certo: vitória por 1-0, o segundo triunfo que a Argentina conseguiu sobre La Verde em La Paz. Cerca de vinte anos depois, Daniel Passarella teve uma ideia parecida, ordenando uma aclimatação na fronteiriça La Quiaca com uma escalação quase sem “europeus”, que só tinha Néstor Sensini e Nelson Vivas de futuros titulares na Copa de 1998: Ignacio González, Hernán Díaz, Pablo Paz e Sensini, Vivas, Gustavo Zapata, Diego Cagna, Juan Pablo Sorín e Néstor Gorosito, Julio Cruz e Marcelo Delgado.

Só Paz e Delgado também iriam ao mundial, além dos reservas Ortega (substituiu Cagna aos 6 do segundo tempo, logo após o segundo gol adversário) e Verón (substituiu Gorosito no intervalo, embora El Pipo houvesse empatado parcialmente em 1-1 no fim da primeira etapa). Outro a sair do banco, José Luis Calderón, que substituiu Delgado nos vinte minutos finais, veria o mundial pela TV. Era a estreia de Julio Cruz pela seleção.

Com mais velocidade e tenacidade do que recursos técnicos, Cruz havia somado dez gols na temporada 1995-96 por um Banfield fraquíssimo desde a saída de Javier Zanetti na pré-temporada. O clube do Sul terminou em penúltimo no Apertura e em antepenúltimo no Clausura. Seu goleador, solução de emergência após destacar-se em um rachão (chegava antes até a aparar a própria grama do campo banfileño, o que lhe rendeu o apelido de El Jardinero), acabou comprado pelo River recém-campeão da Libertadores. Em apenas um semestre, agora em um elenco campeão, havia repetido os dez gols. Estreou logo marcando dois, na segunda rodada, em um 3-1 no Unión.

Sensini, González, Sorín, Paz, Zapata e Díaz; Cagna, Gorosito, Cruz, Delgado e Vivas. Só quatro iriam à Copa de 1998 (e só Sensini e Vivas seriam titulares)

Fez outros dois em dois jogos-chave, nos 4-1 sobre o Platense na rodada seguinte à decepcionante derrota de 3-2 para o Boca (na noite do Nucazo de Guerra) e nos 4-0 no “clássico” com o San Lorenzo, partida anterior à viagem a Tóquio para o Mundial contra a Juventus, onde foi titular. Embora depois tenha passado por onze jogos sem marcar, considerando a reta final do Apertura 1996, o Mundial e amistosos de verão, terminou convocado após acumular três gols nas duas primeiras rodadas do Clausura 1997, na virada de fevereiro para março. 

O estádio Hernando Siles via 45 mil pessoas nas arquibancadas em clima tenso contra declarações consideradas desrespeitosas de Passarella (“jogar em La Paz é desumano”, dissera o treinador). Marco Sandy abriu o placar no início e, como já dito, Gorosito, de pênalti, empatou no fim do primeiro tempo. Logo no início do segundo, a Bolívia marcou o gol da vitória, ironicamente por intermédio de um argentino naturalizado – Fernando Ochoaizpur, que jogou ao lado de outros hermanos de La Verde, Sergio Castillo e o goleiro Carlos Trucco (a Bolívia é a seleção que mais naturalizou argentinos).

A tensão cresceu. O árbitro brasileiro Sidrack Marinho terminou criticadíssimo por não coibir a violência mútua. Hernán Díaz teve o nariz fraturado e o goleiro reserva Carlos Roa terminou reclamando de um gás de pimenta enquanto se dirigia ao túnel, enquanto Nelson Vivas recebeu vermelho ao chutar os testículos de um oponente. Gustavo Zapata deixou a Argentina com dois a menos nos dez minutos finais ao agredir Demetrio Angola na tentativa, segundo ele, de buscar um revide que rendesse também expulsão contrária. O goleiro Nacho González não foi expulso, mas também trocou sopapos e terminou suspenso do mesmo jeito.

Já Cruz, diferentemente do goleiro chileno Roberto Rojas no Maracanã em 1989, de fato foi agredido. Foi nocauteado por alguém que nunca identificou do banco de reservas boliviano ao buscar uma bola. Passarella imediatamente o recolheu e, no vestiário, pediu que os fotógrafos atestassem o estado do atacante, que apareceu desacordado com um corte profundo na bochecha direita. O problema é que o soco foi sofrido na outra bochecha… 

Ao fundo, de casaco azul, o auxiliar Américo Gallego se revolta com a agressão a Cruz, acudido à direita por Cagna e Passarella

O médico argentino foi apontado como responsável pelo corte no rosto de Cruz, sob ordens de Passarella, acusação que nega: o ferimento teria surgido de descuido do próprio jogador, que por sua vez jura não se lembrar de nada. Diferentemente de hoje, a derrota não pôs a classificação tanto em risco, mas o escândalo balançou o cargo de Passarella, ainda sem convencer – até porque, cinco dias depois, Carlos Bianchi ficou disponível no mercado ao se desligar de uma fraca campanha na Roma. 

O episódio voltou à tona nesta semana, cerca de vinte anos depois, antes de novo embate entra as duas seleções. Houve quem divulgasse que Cruz nunca mais foi chamado por Passarella, o que não é verdade: o atacante voltou à Bolívia ainda em 1997 para participar de quatro jogos da Copa América, por uma virtual seleção B da Argentina, eliminada precocemente pelo Peru. Foi convocado mesmo com queda brusca de rendimento no River, marcando só mais três gols no Clausura antes da competição.

Julio Cruz ainda marcou outro na campanha campeã do Clausura, já após a Copa América, em sua despedida do campeonato argentino, em um 2-0 no Ferro Carril Oeste em julho faltando ainda algumas rodadas para o fim. Foi vendido ao Feyenoord e aí, sim, esquecido por Passarella. Só voltou a ser convocado à seleção dois anos depois, por Marcelo Bielsa, em junho de 1999, como o primeiro vindo do futebol holandês, no embalo do título nacional pela equipe de Roterdã – ainda o último erguido por ela. Seguiu carreira no Bologna e foi ocasionalmente chamado por Bielsa nas eliminatórias.

Ainda que tenha marcado gol sobre o País de Gales em amistoso pré-Copa em 2002, Cruz terminou de fora também do mundial da Ásia, revoltando-se a ponto de declarar-se renunciado da seleção. Sua trajetória polêmica e errática foi retomada em novembro de 2005, credenciado pelo bom momento na Internazionale, torcida que o teve como ídolo especialmente pelos gols (sete) no Derby d’Italia contra a Juventus. Reestreou marcando gol sobre a Inglaterra e terminou enfim indo a uma Copa. Após a eliminação na Alemanha, ainda somou mais cinco jogos pela Albiceleste, todos em 2008, quando já tinha 33 anos. Ao todo, na seleção foram só 22 jogos em onze anos, e apenas três gols, sem nunca livrar-se daquela imagem de vinte anos atrás.

Cruz ainda jogando e o vergonhoso papelão nas capas da imprensa

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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