Fernando Areán e Los Carasucias, os “Meninos da Vila” do San Lorenzo
Nesse 16 de fevereiro, o ex-meia Fernando José Areán, falecido em 3 de julho de 2011, faria 75 anos. Um bom gatilho para relembrar não só El Nano (apelido comum na Argentina para o nome Fernando), mas também Los Carasucias de um modo geral. Essa expressão, gíria para “moleques” que significa literalmente “Os Cara-Sujas”, já havia sido usada para designar o jovem ataque da Argentina campeã da Copa América de 1957. Caiu bem também em um irreverente ataque que o San Loreno teve nos anos 60, eternizado na formação Narciso Doval, Victorio Casa, Areán, Héctor Veira e Roberto Telch. E há quem lhe atribua um bom peso no dourado River de 1986.
Embora Areán vestisse a nove, não era exatamente um centroavante. Tanto que fez só dez gols no total de 45 jogos oficiais pelo San Lorenzo. Talvez uma herança de seu tempo nos juvenis do Boca, onde era lateral-direito. Seu forte era habilitar os colegas: “Areán é taticamente mais dotado que Telch e Veira. É quem melhor vê o campo, quem melhor caminha, com habilidade, com variedade de manobras e com potência. Inicia e finaliza permanentemente”, descreveu-o a revista Sport na época. Era visto de fora como o mais inteligente e maduro daquele quinteto, mas Casa desmentia: “o mais louco de todos era Areán, com essa carinha de anjo que punha”.
Areán conseguiu ficar ídolo mesmo jogando pouco também, e sem títulos. Ficou no time adulto do San Lorenzo no biênio 1964-1965. Nove dos dez gols vieram no primeiro ano, destacando-se ainda mais pela parceria com Veira, artilheiro do campeonato. A dupla seria renovada também nos futuros trabalhos de Veira como treinador. O clube, por sua vez, ficou só em 4º e em 8º. Podia tanto ganhar de 3-1 do Independiente bicampeão da América em 1964, de 4-0 do Argentinos Jrs (na estreia de Areán, que marcou um dos gols) ou de um 6-1 no Chacarita (Areán marcou duas vezes nesse jogo) ou de 3-0 no clássico com o Huracán como levar de 3-0 do Boca e perder por esse placar em casa para o Racing.
Responsabilidade não era bem o lema da molecada, e sim de times defensivos como Independiente e Boca que chegavam às finais da Libertadores. A irreverência era repassada aos experientes. Um deles era Rafael Albrecht, um dos dez maiores defensores-artilheiros do futebol (o sétimo, na verdade, conforme lista oficial do IFFHS) e que era um faz-tudo em um San Lorenzo apequenado em 1963. Em crise financeira, os cartolas não viram saída a não ser apelar na promoção daqueles juvenis.
Em excursão pela Alemanha, o severo técnico José Barreiro resolveu ordenar quem dividiria quarto com quem, unindo pivetes e veteranos. Casa contou: “mandou dormir Doval com Mariotti, Veira com Coco Rossi e eu com Albrecht. A mim, me disse: ‘você, me siga sempre Rafael…’. Revistava às onze da noite e simulávamos que estávamos dormindo. Às doze não havia ninguém no hotel! Saímos Coco Rossi, Rafael, Veira e eu. Às 6 da manhã, quando voltamos, Barreiro estava na porta do hotel. Não pude me conter e respondi: ‘você não me disse que eu seguisse sempre Rafael?”.
Os garotos foram promovidos exatamente porque o San Lorenzo passava por uma crise interna, precisando recorrer às categorias de base. Areán saiu quando veio a inflexão. 1965 foi o ano em que Victorio Casa virou El Manco Casa, ao perder um braço, metralhado por engano pela marinha. Conseguiu manter a carreira, mas compreensivelmente sem manter regularmente o rendimento de outrora. Nano, por sua vez, passou ao Banfield em 1966. No Taladro, se destacou. Fez seis gols no campeonato, um em cada clássico com o Lanús (1-0 e 3-0), além de outro no ex-rival Huracán (4-1), mas nenhuma ocasião foi mais famosa que no 1-1 contra o River.
O Banfield começou vencendo com gol do reforço, no dia marcado pela torcida alviverde provocar os visitantes soltando galinhas no campo – o River, em jejum havia nove anos (seriam dezoito), havia acabado de perder uma finalíssima ganha de Libertadores, levando virada de 4-2 após estar vencendo por 2-0 o Peñarol. Nascia ali a provocação gallinas.
Areán estendeu a carreira até o início dos anos 70. Intercalou o Banfield com o financeiramente atrativo futebol colombiano: saiu no início de 1967 para integrar o Millonarios, voltou em 1968 para depois ir ao América de Cali (marcou quatro gols no clássico com o Deportivo na primeira fase da Libertadores de 1970). Na Argentina ainda passou pelo Comunicaciones nas divisões inferiores, em 1971. Reeditou a parceria com Veira no trabalho deste como técnico no San Lorenzo e no River nos anos 80.
Enquanto Veira era o carismático contador de histórias e motivador, seria Areán o verdadeiro responsável pela definição tática do River campeão de tudo em 1986 (incluindo-se, por sinal, as primeiras Libertadores e Mundial do time de Núñez). El Nano, porém, também teve trajetória solo. O capítulo mais expressivo, é claro, foi no San Lorenzo.
Os azulgranas não tinham sequer casa própria e não venciam o campeonato argentino desde 1974, mas puderam ter alegrias: treinados por Areán, bateram o Boca de Gabriel Batistuta na final da liguilla de 1991 (foram os últimos jogos de Bati no futebol argentino), uma espécie de torneio-repescagem que rendia até volta olímpica, valendo vaga na Libertadores. E o time, que desde a conquista daquele River de 1986 já era o único grande ainda sem Libertadores, chegou a sonhar com ela em 1992, ainda treinado pelo ídolo. Mas o sonho parou nas quartas contra o Newell’s, que ironicamente havia levado de 6-0 do mesmo San Lorenzo em plena Rosario na primeira fase.
Não deixou de ser simbólico. A história dos Carasucias hoje sempre inspira sorrisos. Mas, como nos resultados, a maioria dos membros se envolveu em tragédias, não só Casa. Até Albrecht: atropelado por um carro em 1981 e por um trem em 1989. Telch, o único do quinteto famoso a jogar Copa do Mundo, em 1974, conviveu nela com acusação de estupro de uma camareira. O mesmo crime foi imputado nos anos 80 a Veira, que não escapou da prisão, onde estava metido em 1991 quando o amigo Doval (por sua vez acusado de assédio em 1968, no qual o real culpado seria Albrecht) subitamente faleceu. “El Nano Areán diz que com os Carasucias se criou um mito. É certo. Também que aquela história hoje lhe dói, lhe faz sofrer”, iniciava em 1991 a reportagem Historia y Mito de los Carasucias, publicada pela El Gráfico na esteira da morte de Doval.
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