Dez anos da maior reviravolta do Argentinão: o campeão Estudiantes de Verón e Simeone
Se o palmeirense esteve até o fim desconfiado do título em 2016, é bom que só agora relembre ou conheça a definição do Apertura 2006, das mais emocionantes, dramáticas e redentoras que o futebol já viu. O jejum do campeão Estudiantes, por sinal, era parecido – 23 anos, igualmente com rebaixamento incluso, contra os 22 do Verdão. A diferença é que a equipe platense é quem corria atrás de uma larga vantagem do líder disparado, o Boca. Que vinha ganhando quase tudo. E seria pela primeira vez tricampeão argentino seguido se ao menos empatasse nas duas rodadas finais… A façanha alvirrubra se engrandece ao ver-se que metade dos jogos que mandou não foram em La Plata.
Aquele campeonato teve dois artilheiros, o boquense Rodrigo Palacio e o velezano Mauro Zárate. Mas é justo apontar outros dois como protagonistas: Juan Sebastián Verón e Martín Palermo. A tensão foi tamanha que os dois, crescidos juntos no Estudiantes, chegaram a romper por um tempo. O clube alvirrubro vivia em jejum desde 1983. Em 1994, com os dois amigos presentes no elenco, foi rebaixado. La Brujita Verón carregava o peso do sobrenome e naturais comparações com o pai, Juan Ramón La Bruja Verón, o craque do plantel tri na Libertadores entre 1968-70. Foi um dos líderes da imediata volta à elite e acabou indo justamente ao Boca no início de 1996. Em um único semestre nos xeneizes, chegou à seleção e dali rumou à Europa. Já Palermo não atuou tão ativamente na segundona.
El Titán esteve perto de passar ao modesto San Martín de Tucumán. Continuou em La Plata e enfim desembestou no início de 1996. O Vélez terminou campeão, mas tanto o Boca de Verón como o Estudiantes da revelação Palermo estiveram no páreo. Ambos chegaram a se enfrentar nas rodadas finais, em papéis invertidos aos exercidos dez anos mais tarde. Ironia: em plena Bombonera, Palermo marcou os dois gols da vitória pincharrata enquanto o gol boquense foi de Verón, em seu último jogo no futebol doméstico. Contamos neste outro Especial. Enquanto Verón virava figura carimbada na seleção, Palermo, contratado pelo Boca em 1997, tinha uma trajetória mais errática.
Palermo ganhou chance na seleção só em 1999, após uma temporada estupenda, mas virou piada pelos três pênaltis perdidos contra a Colômbia. Reergueu-se no Mundial de 2000 ao marcar duas vezes sobre o Real Madrid em cinco minutos de jogo, conseguindo o passaporte para a Europa. Mas não manteve o impacto por Villarreal e Real Betis, seguindo afastado da seleção. Pior: lesionou o joelho em plena comemoração de gol, ao ser soterrado pelo desabamento de um alambrado. Palermo voltou ao Boca em 2004, após o drama do vice na Libertadores. Mas o time ganhou duas Sul-Americanas seguidas, em 2004 e 2005. Alfio Basile substituía Carlos Bianchi à altura. Em 2005, venceu-se também a Recopa e o Apertura. Em 2006, o bi-nacional com o Clausura.
Pouco depois do início de novo Apertura, na despedida de Basile (promovido à seleção), veio novo bi, na Recopa. Palermo fez um dos gols do título, sobre o São Paulo em pleno Morumbi, conquista que na época fazia dos xeneizes os maiores vencedores internacionais a nível mundial (lembre aqui). A Recopa veio em meados de setembro, com o Boca a mil no Apertura: em cinco rodadas finalizadas, cinco vitórias, incluindo um inapelável 7-1 sobre o San Lorenzo em pleno Nuevo Gasómetro e um 2-0 sobre o próprio Estudiantes. Palermo, que fez três contra os azulgranas e outro no ex-clube, se erguia de seu maior baque: a três dias da estreia, perdera um filho prematuramente nascido, Stefano. Ainda assim, quis jogar desde a primeira rodada, na qual marcou duas vezes em um 3-0 no Banfield, comovendo a todos na reação às lágrimas. O veterano terminaria na vice-artilharia.
E Verón? Apesar de uma passagem boa pela Internazionale, que, ainda que nos tribunais, quebrara na temporada 2005-06 um jejum de 17 anos, o meia fora solenemente ignorado na convocação à Copa de 2006. Já com 31 anos, decidiu regressar à casa. Na época, além da seca vintenária, o Estudiantes vinha sendo ofuscado pelo rival Gimnasia LP, que além de brigar mais pelas taças encostara no clássico: tinha só uma vitória a menos. O impacto de La Brujita foi imediato: o Pincha venceu os três primeiros jogos. Outra cara nova era o técnico Diego Simeone, outro a vir em baixa: no seu Racing do coração, havia sido antepenúltimo no torneio anterior. Sua carreira de treinador não tinha a grife atual.
Após as três vitórias iniciais, os platenses empacaram por outras quatro rodadas: na 4ª, Verón marcou seu primeiro gol no retorno, mas os alvirrubros perderam de 2-1 para o Belgrano (o jogo ocorreu no estádio do Quilmes, alugado até a inauguração do Estádio Único de La Plata na 11ª rodada). Veio em seguida a derrota para o Boca. Depois, novo tropeço como mandante, um 0-0 com o Banfield na 6ª rodada. Nela, o Boca perdia provisoriamente para o Gimnasia, jogo suspenso no intervalo por pressão do presidente gimnasista, insatisfeito com a arbitragem apesar da vitória parcial. Com cerca de um terço do campeonato já disputado, o Boca, mesmo sem os pontos contra o Gimnasia, liderava com 15. River e Independiente acumulavam 13. O Estudiantes tinha 10. Simeone quase caiu.
Antes da 7ª rodada, o Boca venceu a Recopa. Na ressaca e agora comandado por Ricardo La Volpe, só empatou em 0-0 em plena Bombonera com o caçula Godoy Cruz. Mas não tinha que se preocupar com o Estudiantes, que perdeu para o Rosario Central. E sim com o River, que venceu o Gimnasia de Jujuy e se igualava na liderança ao arquirrival. E, em menor grau, com o Independiente, derrotado mas com reversíveis três pontos atrás. Até o Arsenal, com 11 pontos, somava mais que os 10 de Verón e colegas. Na rodada seguinte, o time de La Plata, em sua “casa” em Quilmes, se recolocou no páreo em um confronto direto com o Independiente. O River só empatou no Monumental com o Colón e o Boca, pelo placar mínimo, voltou a se isolar ao bater fora de casa o Nueva Chicago.
Posteriormente, o River derrapou de novo (1-1 com o Belgrano) enquanto as outras camisas pesadas venceram: os platenses, no 1-0, bateram fora o San Lorenzo, o Boca arrancou um 3-2 contra o Vélez e o Independiente fez 3-0 no Gimnasia LP, jogando no estádio do Racing – a partir dali, mandaria a maior parte dos jogos na casa do vizinho em função das obras (financiadas com a recente venda de Sergio Agüero ao Atlético de Madrid) que transformaram a Doble Visera no estádio Libertadores de América. A décima rodada rendeu o Superclásico. Gonzalo Higuaín (duas vezes) e Ernesto Farías anotaram os gols da primeira derrota do líder, mas um nome mais justo da vitória millonaria foi Fernando Belluschi, comprado em julho inicialmente pelo Boca mas que preferiu aceitar oferta do River, para onde terminou indo após imbróglio judicial: veja aqui.
Belluschi organizou os três gols que deixaram o River a um ponto do Boca. Enquanto isso, o Estudiantes, na primeira de dez vitórias seguidas, fez 3-0 fora de casa no Lanús, ficando a três do líder. O Independiente perdeu e o Arsenal se repôs no páreo, a quatro do Boca. O clássico da 11ª rodada, por sua vez, foi o de La Plata, inaugurando o Estádio Único. E o Estudiantes, no primeiro dérbi platense de Verón, impôs a maior goleada do confronto, um 7-0 cujo nome foi o veterano atacante José Luis Calderón, único a rivalizar com La Brujita como maior filho pródigo do Pincha. Caldera fez três gols, conforme detalhamos aqui. Ainda que Boca e River também tenham vencido e assim se mantido na frente, foi um grande ponto de inflexão. A longo prazo, no clássico, vencido só mais uma vez pelo Gimnasia e doze pelo Estudiantes. A curto prazo, nos rumos daquele campeonato.
Voltando a atuar em La Plata, o Estudiantes venceu não só todos os quatro jogos seguintes na verdadeira casa, mas também três dos quatro seguintes fora, empatando o outro. Na 15ª rodada, o Independiente, paralisando as obras no seu estádio para usá-lo no clássico com o Racing, venceu-o por 2-0 em um jogo encerrado aos 20 do segundo tempo por objetos atirados pela torcida visitante. Apesar da injeção de moral, as chances eram mínimas: tinha 26 pontos contra os 31 do 3º colocado, o River. Na rodada anterior, o Millo promovera a volta do ídolo Ariel Ortega, a marcar gol antológico em um massacrante 5-0 no San Lorenzo: relembramos aqui. Mas, na 15ª, o sonho acabou ao ser ultrapassado pelo Estudiantes em um confronto direto em La Plata: 3-1 Pincha em uma rodada sem torcidas visitantes em todos os jogos por conta dos incidentes do Racing.
O sonho de River e Independiente ruiu porque o Boca simplesmente somou seis pontos quase de uma vez. Entre a 14ª e a 15ª rodada, ele complementou os 45 minutos restantes com o Gimnasia pela 6ª rodada. O Lobo vencia por 1-0 e seus próprios barrabravas, furiosos com a ascensão rival, invadiram o treino para pressionar seus jogadores a perderem. O Boca, em La Plata, virou para 4-1 e na 15ª rodada fez 3-1 no Quilmes. Passava a ter 38 pontos contra 34 do Estudiantes, 31 do River, 26 do Independiente e 28 do “intruso” Arsenal – classificado à vitoriosa Sul-Americana 2007.
O Estudiantes correu atrás, batendo Newell’s (2-1, fora de casa com dois gols nos acréscimos) e Racing (2-0), mas o Boca parecia não dar margem: 2-1 (fora) no Gimnasia de Jujuy e uma goleada de 4-1 no Colón. Faltavam duas rodadas e a vantagem boquense permanecia em quatro pontos. O Boca poderia garantir o título na penúltima caso vencesse, mas perdeu de 1-0 para o Belgrano em Córdoba. Ainda assim, bastava que os platenses perdessem que o campeonato estava definido. O que rendeu um jogo emocionante fora de casa com o Argentinos Jrs. O ídolo oponente Jorge Quinteros se despedia e honrou a casa cheia, abrindo o placar.
O Pincha perdia até os 33 do segundo tempo, quando Mariano Pavone empatou. Ainda houve gol alvirrubro anulado, mas Verón encheu o pé para virar e deixar seu Estudiantes a um ponto do Boca. Mas aos 47 Gonzalo Choy González (ex-Gimnasia) empatou. A vantagem do líder diminuía para três pontos e ele jogaria em casa na última rodada. E o Boca abriu o marcador contra o Lanús, com Palermo, ironia, marcando de pênalti aos 30 minutos. Mas, aos 44, Lautaro Acosta acreditou no cruzamento e Claudio Graf empatou, o que ainda dava o título aos xeneizes. Aos 12 do segundo, uma triangulação grená acabou em chute fraco mas suficiente para Rodrigo Archubi virar.
O incrível é que o Boca ainda seria campeão. Mas Agustín Alayes, cabeceando escanteio de Verón, abriu Estudiantes 1-0 Arsenal aos 41 do segundo tempo. E Mariano Pavone homologou aos 47 que haveria empate na liderança. O Boca tinha melhor saldo, mas o regulamento previa jogo-desempate único em campo neutro. Três dias depois, naquele 13 de dezembro de 2006, o estádio do Vélez recebeu a “final”. Que teve o placar aberto logo aos 5 minutos. Justamente por Palermo, emendando sem ângulo contra Mariano Andújar (reforço bom e barato de um Huracán de segunda divisão) quase com golpe de caratê cruzamento de Pablo Ledesma – não comemorou. O jogo esquentou e Ledesma, ainda no primeiro tempo, foi expulso junto com o oponente Pablo Álvarez.
O Boca, que controlava, passou a sofrer. Ainda no primeiro tempo, Mariano Pavone acertou a trave de Aldo Bobadilla. Aos 9 do segundo, José Ernesto Sosa acertou uma cobrança de falta para igualar. Minutos depois, o veterano Guillermo Barros Schelotto, embora torcedor do Gimnasia e recebedor de sua quarta chance como titular no Apertura, estava inoperante e foi sacado. A dez minutos do fim, o último vacilo fatal do Boca: a bola pingou e Matías Cahais não acompanhou Pavone, que no salto chutou sutilmente a bola para encobrir a saída de Bobadilla. Sem deixar a bola cair, El Tanque encobriu a zaga adversária com um longo cabeceio. O Boca tentou o desespero, mas quase levou o terceiro em contra-ataque. Em médio prazo, os xeneizes deixariam os lamentos: trariam de volta Juan Román Riquelme para ganharem a Libertadores. Mas o Estudiantes comemorou muito mais: fim de jejum, redenção de Verón e um clube reemergido para o futebol, também internacional.
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