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Há dez anos, “começava” a 2ª Era Verón no Estudiantes, pintando o 7 no clássico com o Gimnasia

O futebol de La Plata tem uma situação peculiar. Os jogadores que em tese rivalizariam pela idolatria máxima do clube local mais vitorioso são pai e filho: Juan Ramón Verón, de gols decisivos em títulos no Mundial (sobre o Manchester United em pleno Old Trafford) e na primeira Libertadores vencidos, e reconhecido como craque mesmo pelos que torciam o nariz contra o “anti-futebol” do elenco supervencedor mas mal-afamado de fins dos anos 60; e Juan Sebastián Verón. A cidade, porém, não se resume ao Estudiantes e daí vem outro fato incomum: o equilíbrio histórico entre número de torcedores e de vitórias contra o Gimnasia, apesar do desnível imenso entre os troféus de ambos. Algo que começaria a mudar somente há dez anos, graças a Verón filho.

A rigor, houve mais de uma Era Verón no Estudiantes. Pois só o pai, La Bruja (“A Bruxa”) Verón, teve três passagens diferentes pelos pincharratas, nenhuma comparável ao ciclo de 1962-72. Depois de três anos no Panathinaikos, que havia sido vice da Liga dos Campeões em 1971, Verón pai voltou a La Plata em 1975. O filho nasceria justamente em dia de clássico no qual o pai, nada ciente do parto por ordem do ex-colega e agora técnico Carlos Bilardo, marcou um gol em empate em 3-3. Em 1976, Verón pai iria ao lucrativo narcofútbol colombiano, consagrando-se no primeiro título nacional do Atlético Junior de Barranquilla (em 1977), onde foi jogador-treinador. Teve uma última volta ao Estudiantes no biênio 1980-81, após ter defendido também o Cúcuta.

Com o pai, os platenses alvirrubros haviam vencido três Libertadores (uma sobre a Academia palmeirense de Ademir da Guia, com golaço de Verón na finalíssima, e outras sobre a dupla Peñarol e Nacional), um Mundial e o segundo título argentino do clube – o outro havia sido conquistado lá em 1913. Já o filho teve duas passagens. Antes de regressar em 2006, havia jogado no biênio 1994-95. Com toda a pressão do sobrenome, começou da pior forma: rebaixado ao fim da temporada 1993-94. “Que maneira de começar, por favor! Estreei em abril de 1994 e uns meses depois fomos à série B. Tudo bem, era algo que se enxergava vir, o clube não estava bem. O rebaixamento tomava mais como torcedor, para mim era um momento duro, triste, muito triste, sobretudo porque vir do meu pai que havia ganhado tudo e eu começar e ir ao descenso não era um começo muito auspicioso, digamos”.

La Brujita (“A Bruxinha”) quase saiu ali. “Me lembro que no primeiro treino depois do rebaixamento éramos uns 60 ou 70, uma coisa de loucos. Pensei ‘aqui não jogo nunca mais’. Mas eles [os treinadores Eduardo Luján Manera e Miguel Ángel Russo] disseram que ficasse e aí arranquei com continuidade no Nacional B”. O Estudiantes ganhou imediatamente a segundona 1994-95 e seus torcedores ainda puderam festejar em dose extra: enquanto voltavam à elite, viam o Gimnasia entregar inacreditavelmente o título do Clausura 1995 para o San Lorenzo. Após jogar também o segundo semestre de 1995 pelo Pincha, Verón foi vendido no início de 1996 ao Boca e dali partiu à Europa.

Calderón fez três gols. Ironia: havia sido dispensado pelo Gimnasia, clube de seu pai
Calderón fez três gols. Ironia: havia sido dispensado pelo Gimnasia, clube do pai e da esposa…

Apesar dos troféus logrados por Verón pai, o Estudiantes não necessariamente impunha tanta supremacia no clássico com o Gimnasia, ainda que pudesse se gabar de ter as maiores goleadas do confronto: ganhou três vezes por 6-1, em 1932, 1948 e no dourado ano de 1968 (com dois gols de La Bruja), enquanto o máximo que havia sofrido era um 5-2 em 1962. Mas mesmo aquele elenco pincharrata acostumado às glórias às vezes apanhava, tendo levado de 4-1 em 1970 e em 1972. Quando Verón filho voltou para casa em 2006, o retrospecto do Clásico Platense era dos mais equilibrados. Contando só jogos pelo campeonato profissional (visão ainda muito corrente na imprensa e público argentinos), a conta era 45 vitórias do Estudiantes e 44 triunfos dos triperos.

Mas se contabilizados jogos por outros torneios oficiais da AFA (como Copa Competencia, Copa Beccar Varela, Copa Britânica ou Copa Centenário), dava Gimnasia por 46 a 45. E se além desses fossem admitidos também jogos do amadorismo, aí dava Estudiantes por 50 a 48… Além disso, nos vinte anos anteriores o Gimnasia vinha mandando em La Plata. O Lobo alcançara seis vice-campeonatos argentinos entre 1995 e 2005, ano de campanha ainda fresca na qual vencera o clássico por 4-1. Em outro dérbi, em 2002, uma vitória por 4-2 havia feito os alvirrubros abandonarem o campo. Entre 1986 ao primeiro semestre de 2006, foram doze vitórias alviazuis e sete alvirrubras. O Estudiantes também não era campeão da elite desde o bi de 1982-83, únicos troféus expressivos pós-Verón pai.

Era esse o contexto vivido em La Plata quando Verón filho voltou. Os holofotes estariam nele, que jogaria o dérbi pela primeira vez. Mas o personagem da goleada não foi ele. E sim outro filho pródigo, o atacante José Luis Calderón. Como o meia, Caldera também havia sido rebaixado em 1994, subido em 1995, saído em seguida e voltado. E ele também estaria na vitoriosa Libertadores de 2009. Há dez anos, o atacante marcou três vezes. Ele já havia marcado duas em um 3-0 no Apertura 1995 (Verón estava suspenso para aquele encontro), a vitória mais elástica dos Pinchas naquele período 1986-2006, gostosa por ser o primeiro triunfo alvirrubro desde 1991 e por ter sido no primeiro reencontro após a estadia do Estudiantes na segundona. Calderón, ironicamente, não só é filho de um torcedor tripero como chegou a estar nas divisões de base do Lobo.

Aqueles 3-0 deram briga em casa, aliás, conforme explicou em 2008: “Minha velha, eu e minhas irmãs somos Estudiantes. E meu velho era Gimnasia. Mas fanático, doente pelo Lobo. Me levava para ver o Gimnasia aos sábados e com meu padrinho ia aos domingos ver o Estudiantes. E me fiz Pincha. Teve que aguentar. Uma vez, brigamos mal. Foi em 1995, quando ganhamos o clássico por 3-0 com dois gols meus. Em um gol, tirei e girei a camiseta. ‘Mas pirralho de merda, quem pensas que és? Como vais girar a camiseta assim?’. Esteve uma semana sem falar comigo”. Calderón tentara a carreira primeiro no time do coração, mas a baixa estatura o fez ser inicialmente dispensado. Rumou então ao Cambaceres, alternando com um bico em padaria para ajudar nas contas familiares.

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Calderón nos anos 90 e deslocando o goleiro Olave para marcar o sétimo gol

“Aconteceu que um dia, jogando no quinto quadro do Camba, Rezza e Castelli, que eram técnicos do Gimnasia, me viram e gostei deles. Me ficharam. Meu velho estava enlouquecido. Até que um dia me caem com um nova clavada na cabeça: ‘não venhas mais, Cambaceres é sucursal do Estudiantes, e não queremos ninguém que venha daí’. Aí disse: o futebol não é para mim. E outra vez a trabalhar. Voltei ao Cambaceres, subimos à série B e me viram Tata Brown e Daniel Romeo, que me propuseram voltar ao Estudiantes”. Contra ele e Verón, estariam presentes naquele 15 de outubro dois remanescentes dos bons anos 90 gimnasistas, o defensor Jorge San Esteban e Pedro Troglio, agora técnico.

Só não foi 8-0 com quatro gols de Calderón porque um outro marcado por ele, com o jogo ainda em 1-0, foi anulado por um impedimento que não existiu. Mas Verón não deixou de ter participação ativa na goleada para os comandados do técnico Diego Simeone. O primeiro gol veio em cabeceio de Diego Galván, que emendou falta cruzada de forma certeira pelo capitão. No segundo, Calderón (aí sim, impedido no momento do passe) conectou um lançamento feito desde a zaga por Fernando Ortiz. A bola pingou no chão, o atacante teve mais jogo de cintura que o marcador Marcelo Goux e deslocou o goleiro Juan Carlos Olave com um cabeceio maroto mas suficiente para a bola, lentamente, entrar.

No terceiro, Verón, após receber de Caldera, correu contra dois triperos e deu nova assistência, mas os méritos foram maiores para Mariano Pavone: El Tanque dominou a bola e da meia-lua acertou uma bomba de fora da área. Tudo com ainda 35 minutos de peleja no Estádio Único de La Plata. Os outros gols vieram na segunda etapa. No quarto, Galván marcou novamente, em um chute de primeira mascado após receber livre na área um cruzamento de José Ernesto Sosa, não cortado por Germán Basualdo. À altura do quinto gol, os alvirrubros já tinham um homem a mais após a expulsão do próprio Basualdo. Pavone fez quase toda a jogada, ciscando contra três marcadores e cruzando rasteiro na linha de fundo para Calderón, livre para o gol vazio e ainda com tempo para dominar, completar.

A torcida pincha já usava os cinco dedos de uma mão para dar tchauzinhos. Até Pablo Lugüercio, atacante reconhecido por poucas vezes marcar gols, deixou o seu. Ele havia entrado com o jogo já em 5-0 e foi oportunista ao aproveitar na raça, mesmo sem ângulo, um rebote de Olave (que em muitos outros lances impediu um massacre ainda pior) em chute de Marcos Angeleri. As câmeras focavam no abraço de Verón e Calderón, que logo seriam protagonistas do último gol. Do campo de defesa, La Brujita lançou com muita categoria para Caldera, livre, usar um drible de vaca com o quadril (!) na dividida com Olave e levar a melhor na disputa contra um último marcador. Ainda houve tempo para um oitavo gol quase sair, em peixinho de Lugüercio terminar com a bola triscando a trave.

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Galván marcou duas vezes. Este é o lance do 4-0

“Nos caíam lagrimões assim de grandes, nesse momento impossível de digerir. Depois, tens que meter cabeça, personalidade, tratar de virar a página, que não é fácil. Muita gente acredita que termina um jogo e o jogador se esquece de tudo, e não é assim, e aí tens que ter culhões para sair e querer superar a adversidade. Na realidade, quem respondeu melhor à goleada foram as pessoas do Gimnasia. Não pararam o jogo quando tranquilamente poderiam ter feito, seguiram cantando até o final com o rival festejando, e quando chegamos à sede nos esperavam para nos apoiar, não para reprovar. Todos olhavam para o lado buscando um culpado e as pessoas, não”, diria Olave em outubro de 2015.

Desde então, o pobre Gimnasia venceu o clássico só mais uma vez, em 2010 (ainda assim, Verón marcou) – menos mal que serviu para o rival, adiante, perder por um único ponto o Clausura para o Argentinos Jrs, justamente onde Calderón estava jogando; ele saíra do Estudiantes em 2009, brigado com Verón, que simbolizou melhor os novos tempos: desde o 7-0, o Pincha venceu mais onze vezes (ou doze, se considerados os encontros pela Sul-Americana 2014). Só isso bastaria para La Brujita ser ídolo eterno. Mas sob sua liderança ainda vieram a Libertadores de 2009 e outros dois campeonatos nacionais, um deles justamente naquele Apertura de 2006, com muito drama.

O Boca seria campeão com um simples empate nas duas rodadas finais, mas perdeu ambas e foi igualado. Ainda saiu na frente no jogo-desempate, mas perdeu. E isso que o Boca havia vencido o Gimnasia, cujos barrabravas, revoltados com a mudança de maré, pressionaram o próprio time para perder de virada e assim prejudicar – inutilmente – o rival. Se o carma existe (botafoguense, você não sabe o que é sofrer), foi escancarado em 2009: enquanto os pincharratas celebravam a Libertadores, os triperos escapavam por milagre de um rebaixamento, do qual não se livrariam em 2011. Voltariam à elite em 2013 e quase deram pinta de campeão em 2014, mas outra derrota no clássico contra um Estudiantes que também lutava pela taça pesou (o campeão seria o River).

Em longa entrevista fornecida em 2008 à revista El Gráfico, disponível aqui, Calderón cutucou diversas vezes o Lobo. Deu graças a Deus por não ter continuado no Gimnasia (pergunta 40); declarou que esperava que o clube jamais fosse campeão (63); que consideraria ofertas de qualquer time, menos a do Gimnasia (77). Sobrou até para a esposa, ao ser indagado se ela aprecia futebol (pergunta 98): “não dá muita bola. Ela é Gimnasia, então não fala muito. Muito menos agora”. Mas se colocou um limite, relacionado à obra de dez anos atrás: “sou muito temperamental, então não sou de zombar das pessoas, porque não gosto que me zombem. Sempre respeitei. Depois do 7-0, muitos quiseram fazer a foto com os sete dedinhos e disse que não. O futebol é uma roda”.

O clássico de La Plata fez cem anos neste 2016, em agosto. Saiba mais dele em nossa nota sobre o centenário.

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Até os pouco virtuosos Pavone e Lugüercio jogaram demais e deixaram os deles, um cada

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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