Primeira Divisão

Há 45 anos, Doval e o Huracán estagnavam o Vélez

Luis Raspo, Alberto Dopacio, Néstor Hernandorena, Alfio Basile, Carlos Babington e Luis Maidana; Miguel Ángel Brindisi, Narciso Doval, Oscar Laginestra, Luis Giribet e Héctor Veira

Vélez e Huracán fizeram em 2009 uma final bastante recordada até hoje. Um confronto direto pelo título na última rodada, entre a nobreza decadente da equipe de Javier Pastore (que não é campeã desde 1973) contra o ascendente novo-rico clube de Nicolás Otamendi, encerrou-se muito depois do programado: foi interrompido por chuva de granizo e teve direito ainda a expulsões, gol anulado, pênalti não assinalado e um gol irregular nos minutos finais para dar a taça aos velezanos – contamos aqui. O que é menos sabido fora da Argentina é que pairava no ar requintes de vingança muito aguardada pelo ocorrido há 45 anos, entre os mesmos clubes, em contexto parecido.

A diferença para 2009 é que em 3 de outubro de 1971 só o Vélez disputava o título. O Huracán, irregular, estava longe daquilo – terminou o torneio só em nono e se não fosse aquele inesperado triunfo teria ficado em 13º. O resto era semelhante: o mesmo palco, El Fortín de Liniers, receberia um elenco da casa com ascendência meteórica e visitantes com grandeza cada vez mais desbotada; o jejum huracanense na época era até maior, pendente desde 1928, havia 43 anos (igualado só neste 2016 à seca pós-1973). Enquanto o Huracán já vivia muito do passado, equipes de porte historicamente menor sinalizavam o futuro. Como o Vélez, o que já ensejaria uma inegável rivalidade entre as torcidas.

Em 1968, o Vélez ganhara seu primeiro título argentino. Por sinal, uma vitória sobre o Huracán havia sido fundamental: foi exatamente na última rodada, igualando os fortineros a Racing e River (que empataram entre si) e forçando um triangular do qual La V Azulada terminou vencedora. O campeonato seguinte, em 1969, foi ganho pelo Chacarita em um inapelável 4-1 no River. Em 1970, o Chaca ainda foi semifinalista nacional. Esses dois clubes despontavam para a taça em 1971. Os tricolores, inclusive, impuseram ao Vélez a derrota mais elástica na campanha, um 5-2.

Se com o tempo o Chacarita não manteria o ritmo, se acostumando às divisões inferiores, os funebreros tiveram na época expressão tal que dois jogadores do elenco de 1971 viriam a ser os primeiros que a seleção argentina usou do futebol europeu – o goleiro Daniel Carnevali (Las Palmas) e o defensor Ángel Bargas (Nantes), ambos importados em 1972 e titulares na Copa de 1974. O Vélez, por sua vez, não decaiu tanto, mas a perda daquele título seria seguida de uma estagnada de décadas. Pois nem ele e nem o Chaca terminaram ganhando, e sim o Independiente. Outro clube “pequeno” ainda mais ascendente era o Estudiantes. Em 1967, quebrou jejum instaurado em 1930 para ser o primeiro fora do grupelho dos “cinco grandes” (Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo) a, desde a implantação do profissionalismo (em 1931), ganhar o campeonato.

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Marín, Ferrari, Correa, Lapalma, Avanzi, Troncoso, Reguera e Gallo; Nieva, Bentrón, Benito, Bianchi, Ríos, Lamberti e Oruezábal há 45 anos. À direita, Bianchi nos 6-1 no San Lorenzo

De 1968 a 1970, o Estudiantes foi tri na Libertadores e vice dela naquele mesmo 1971. Pois bem, duas figuras históricas da equipe de La Plata foram tentar reerguer o Huracán: o goleiro Alberto Poletti e o técnico Osvaldo Zubeldía. O Globo tinha no papel um timaço: mesclava pilares do título que viria em 1973, casos dos meias Miguel Brindisi, Carlos Babington, do centroavante Roque Avallay e do defensor Alfio Basile (contratado justamente em 1971) com três ícones do rival San Lorenzo – de onde saíram em 1970 o meia Alberto Rendo e o meia Héctor Veira, somados em 1971 por Narciso Doval, emprestado pelo Flamengo. Mas o conjunto não deu certo. Zubeldía foi demitido após a 12ª rodada, com direito a derrota de 5-1 no clássico com o Sanloré, até então a maior goleada do dérbi. O novo treinador foi o iniciante César Menotti, quem faria o clube adiante decolar.

O efeito Menotti não foi, porém, imediato. Na estreia, derrota de 3-0 para o Boca. Só foi vencer na quinta tentativa. Se sob Zubeldía haviam sido quatro vitórias nos doze primeiros jogos, seu substituto só conseguiu duas. Nas doze posteriores, elas deram um salto para seis. Ainda assim, seguia irregular: cinco dessas últimas vitórias se concentraram entre a 26ª e a 31ª rodadas. O time então empatou com o Racing e perdeu três seguidas antes do jogo derradeiro contra o Vélez. E o Vélez? Ele também começou irregular, com três vitórias, três derrotas e quatro empates nas dez primeiras rodadas, também acarretando na queda de um treinador: saiu Juan Carlos Montaño, entrou o chileno Andrés Prieto justo no clássico com o Ferro Carril Oeste. 2-1, gols de Carlos Bianchi e Miguel Benito.

Os dois compunham a dupla ofensiva e inspiraram o cântico “Jogo bonito, jogo bonito, es el que juegan Bianchi y Benito”, em alusão ao “jogo bonito” (em português mesmo) esperado no River, que havia contratado para técnico o brasileiro Didi. Bom, o River perdeu ambas para o Vélez, um 3-2 em Liniers (gols de Bianchi, Benito e Héctor Bentrón) e um 3-0 em pleno Monumental, na primeira vez em que o Fortín derrotou o Millo nesse estádio rival – Bianchi, curiosamente torcedor riverplatense na infância, marcou duas vezes. Seu sucesso mítico como técnico ofusca o goleador espetacular que era. El Virrey, reserva no título de 1968, começara a romper em 1970, quando foi artilheiro nacional com dezoito gols. Logo na primeira rodada, fez três em um 4-0 no Los Andes.

Naquele Metropolitano, Bianchi viria a ser só o quarto em trinta anos a passar dos trinta gols. Bianchi ainda é o argentino com mais gols somados em ligas nacionais. Sob Prieto, ele e o Vélez só perderam mais quatro vezes em todo o resto do campeonato. A primeira delas, só na 25ª rodada, seguida de triunfo por 2-1 sobre o concorrente Chacarita (dois gols de Bianchi, com o oponente curiosamente marcando com Omar Wehbe, herói da conquista velezana de 1968) e daqueles 3-0 sobre o River.

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O Vélez seria campeão argentino em rodadas contra o Huracán em 1998, 2009 (nesse caso, em confronto direto contra o time de Pastore, na imagem) e 2011…

A derrota seguinte veio após os 3-0 sobre o River, perdendo-se em casa justamente para o Independiente. O que o Vélez fez depois? Meteu um inapelável 6-1 sobre o San Lorenzo em pleno estádio Gasómetro, com Bianchi marcando três vezes sobre um qualificado rival que terminaria só cinco pontos abaixo e que no ano seguinte se tornaria o primeiro time a vencer no mesmo ano o Torneio Metropolitano e o Torneio Nacional. O massacre foi seguido por mais sete vitórias seguidas (incluindo um 4-0 no Argentinos Jrs com outros três gols de Bianchi, um 4-0 no Rosario Central e nova tripleta de Bianchi, que fez todos nos 3-2 fora de casa no Platense) de quem já se considerava campeão.

As duas outras das quatro derrotas sob Prieto, porém, vieram justamente nas duas rodadas finais. O Independiente já havia substituído o Chacarita como grande concorrente e na penúltima rodada contou com ajuda do rival Racing, que, treinado pelo ícone velezano Victorio Spinetto (ex-jogador fortinero nos anos 30 e técnico por mais de dez anos entre os anos 40 e 50), derrotou em Avellaneda por 1-0 os líderes. Mas o próprio Independiente também perdeu. Na rodada final, os postulantes jogariam em casa: o Rojo contra o Gimnasia LP, o Fortín contra aquele instável Huracán. Cujos jogadores ficariam conhecidos como Los Aguafiestas de Vélez, algo como “os estraga-prazeres do Vélez”.

Logo aos 6 minutos, Bianchi foi acionado na cara do goleiro Néstor Hernandorena, tocando sutilmente na saída. A defesa huracanense se recompôs e mandou para escanteio, o que só fez adiar o gol em alguns segundos: na cobrança, Bianchi dividiu no ar e a bola sobrou para Mario Lamberti fazer as tribunas explodirem. Só que os donos da casa se encolheram e a visita jogou como nunca. Doval, que tivera um semestre instável como o próprio Huracán, jogou demais, recebendo nota 9 da revista El Gráfico. O compacto abaixo mostra algumas das diabruras do camisa 7: aos 3 minutos, o ex-flamenguista driblou um oponente e venceu outro na corrida, cruzando. O goleiro José Marín espalmou e na sequência Luis Giribet só não empatou pois a zaga salvou em cima da linha.

O empate veio ainda no primeiro tempo, registrado aos 4 minutos do vídeo (na partida, já eram 35 minutos): Avallay cruzou e Giribet chegou antes do goleiro Marín. E a virada por pouco não veio ainda na primeira etapa: aos 4min35 do vídeo, Doval serviu para Brindisi também bailar e no fim concluir pouco acima do travessão. Também no primeiro tempo, Giribet quase marcou de novo ao emendar de primeira um cruzamento, com a bola raspando a trave. No intervalo, os resultados forçariam um jogo-extra entre Vélez e Independiente, que já ganhava sua partida.

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Mas ainda há quem sinta as cicatrizes de 1971. À esquerda, Giribet e Doval celebram o empate

No segundo tempo, Doval apareceu em mais dois lances de perigo. No primeiro, foi acionado pela ponta-direita. Ia ser desarmado, mas insistiu, permitindo que a bola sobrasse livre para Giribet. Marín, porém, espalmou o chute à queima-roupa. No lance seguinte do vídeo, porém, não teve jeito. Doval até caiu na disputa, mas conseguiu entregar a bola a Avallay, que a repassou a Giribet. Giribet devolveu a Avallay, que acionou o recomposto Doval. O ex-flamenguista então fez jogada belíssima: com a bola pingando no ar, venceu no corpo a disputa com dois e, sem deixa-la cair, girou e emendou uma bomba na trave de Marín. No rebote, Avallay virou. Ainda eram 15 minutos do segundo tempo.

Doval sabia mesmo ser decisivo em um 3 de outubro. Meia década depois, há 40 anos, nessa mesma data em 1976, marcou no último minuto da prorrogação o gol do bicampeonato estadual da “Máquina Tricolor” do Fluminense sobre o Vasco (gol que ainda por cima lhe isolou na artilharia do campeonato). Mas isso é outra história – na que faz hoje 45 anos, o Vélez não deixou de tentar, mas o desespero estabanou até Bianchi. Quem esteve mais perto de um novo gol foi o Huracán mesmo, com Babington acertando a trave aos 7min11. Ao fim, os huracanenses foram elogiados na narração pela “lealdade esportiva”, especialmente por seus jogadores tentarem consolar e erguer velezanos desesperados que se estiravam no chão, sem acreditar.

O livro de Memória e Balanço fortinero em 1971 fez um longo registro do desastre. E, bem à altura da história límpida do clube, concluiu assim: “não houve nessa tarde infeliz torcedor alheio a nosso clube que não se dissesse com estupor: ‘mas em seu campo e ganhando por 1-0, se deixaram arrebatar um campeonato? Mas um título de campeão não justificava qualquer artimanha, ou ação desleal, ou violência, amparada no consabido ataque de nervos ou paixão do momento? Não, senhores, lhes responderíamos. Para o Club Atlético Vélez Sarsfield valem mais a grandeza de saber perder com dignidade um título do que ser campeão. Para o Club Atlético Vélez Sarsfield vale mais porque custa mais conservar a serenidade quando é tão fácil perdê-la. O Club Atlético Vélez Sarsfield perdeu um campeonato mas ganhou muito mais. Ganhou o reconhecimento de todo o público esportivo do país”.

O Vélez, porém, vendeu Bianchi ao futebol francês em 1972. Só voltaria a ser campeão em 1993, agora com Bianchi de treinador para iniciar a época dourada do clube. Mas velezano velho algum nega o gostinho de revanche ao ver em 1986 o Huracán rebaixado em partida realizada no Fortín e o sabor de ter garantido sobre o oponente os títulos de 1998, 2011, e, sobretudo, aquele de 2009 (ainda que dessa vez sem fugir a algumas artimanhas como bolas sumidas pelos gandulas após o gol da vitória). Ricardo Gareca, o técnico de 2009 e 2011, aliás, era um torcedor presente no estádio há 45 anos: “tinha 13 anos. Lembro que o Huracán não tinha nada a perder nessa tarde e que o Vélez antecipou o festejo do campeonato, já tinha toda a festa armada. Isso é complicado. E não me esqueço mais de como as pessoas rompiam o carnê de sócios. É uma imagem muito forte”, declarou em 2009.

Epílogo: justamente a partir daquele ano, o campeão metropolitano teria chance de ir à Libertadores (as duas vagas argentinas eram até então do campeão e vice do Torneio Nacional – foi como vice nacional de 1967, e não campeão metropolitano do mesmo ano, que o Estudiantes jogou em 1968). A vaga ainda era indireta, em um tira-teima com o vice nacional. Mas o Independiente levou. E iniciaria o recorde de títulos seguidos na competição, entre 1972 e 1975. Graças um pouco a Doval…

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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