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40 anos do primeiro rebaixamento de um gigante: o do San Lorenzo

Originalmente publicado no aniversário de 35 anos, em 2016

Há 40 anos, Maradona ganhava seu título pelo Boca e é esse dado que repercutirá mais no mundo. Só mesmo algo assim para ofuscar outra faceta histórica daquele 15 de agosto de 1981: a queda do San Lorenzo, no primeiro rebaixamento de um dos cinco grandes argentinos. Ou dois seis grandes, para os conservadores que incluem o Huracán, o arquirrival sanlorencista, nesse grupelho (visão forte na época). A vergonha foi tanta que a pesada camisa azulgrana foi trocada pela reserva no segundo tempo. A comoção foi tanta que traz consequências até hoje: por causa daquilo, a AFA instalou o famigerado sistema de promedios para definir os rebaixados…

Entre 1968-74, não houve time mais vitorioso no cenário nacional do que o San Lorenzo. Foram quatro títulos, incluindo o primeiro invicto do profissionalismo argentino (o primeiro da série, no Metropolitano de 1968) e o primeiro bicampeonato anual no país, com as taças tanto do Metropolitano como do Nacional (também invicto) em 1972. Mesmo com campanha pobre, o título vinha, como foi o último da série, o Nacional de 1974. Em 1975, as taças não vieram mas o matador Héctor Scotta pulverizava a todos ao marcar 60 gols na temporada, ainda um recorde.

Os cartolas azulgranas não administraram o que era o auge do clube do bairro de Boedo. Clube que, melhor dizendo, acabaria saindo do bairro de Boedo. As dívidas – e uma pressão canalha da canalha ditadura, é justo dizer – acarretaram na venda já em 1979 do mítico estádio Gasómetro, até então o maior do país (“o Wembley argentino”: saiba mais). Também em 1979 saíram os quatro principais nomes: o elegante volante Claudio Marangoni, para o Sunderland, em uma das primeiras exportações ao futebol inglês; os únicos representantes sanlorencistas da Argentina campeão mundial no ano anterior, o zagueiro Jorge Olguín, ao Independiente, e o goleiro Ricardo La Volpe, ao futebol mexicano, onde criaria raízes; e o velho ídolo Narciso Doval, aos EUA.

Os remanescentes do ciclo de 1968-74 eram Victorio Cocco e Sergio Villar, recordista de jogos pelo time. Estiveram nas quatro taças e por causa delas foram por quarenta anos os maiores campeões pelo San Lorenzo, ao lado do goleiro Agustín Irusta e do volante Roberto Telch, também daquele período (foram superados em 2014 em alto estilo por Leandro Romagnoli, que com a Libertadores acumulou sua quinta taça). Em 1981, Villar seguia jogando enquanto Cocco era o técnico, o que não o impediria de barrar o ex-colega no meio do torneio. Jogador campeão duas vezes em 1972 e outra em 1974, o lateral Rubén Glaria, de volta do Racing, era mais um dos bons tempos.

Outro ídolo veterano que voltava era Scotta. Também reforçava os cuervos dois vira-casacas, Omar Larrosa, campeão da Copa de 1978 e ex-jogador do rival Huracán campeão de 1973 (Larrosa havia sido justamente o artilheiro huracanense daquela campanha), e Rubén Suñé, ex-Huracán e capitão das primeiras Libertadores vencidas pelo Boca, em 1977-78. Mesclavam-se a jogadores da base que futuramente virariam ídolos, casos do goleiro Rubén Cousillas, dos volantes Rubén Insúa e Armando Quinteros e dos atacantes Jorge Rinaldi e Walter Perazzo. Rinaldo e Insúa, anos depois, jogariam pela Argentina ainda defendendo o San Lorenzo, e Insúa seria o técnico campeão da Sul-Americana de 2002. Quinteros e Perazzo seriam semifinalistas da Libertadores de 1988.

Suñé, Moreno, Schamberger, Barreras, Cousillas e Quinteros; Scotta, Osvaldo Rinaldi (irmão de Jorge Rinaldi), Larrosa, Perazzo e Ceballos. À direita, o técnico Lorenzo

Se no papel o time era bom, em janeiro sofreu um baque terrível. Hugo Pena, pilar na defesa, faleceu eletrocutado em acidente doméstico na frente da família ainda em 9 de janeiro. O torneio já começou com mau presságio simbólico: derrota 4-1 para o Estudiantes, “em casa” – o San Lorenzo era o mandante, mas, sem casa própria, alugou o estádio do Ferro Carril Oeste (o FCO situa-se no bairro de Caballito, relativamente próximo a Boedo e no centro geográfico de Buenos Aires, o que o faz não raramente “emprestar” sua casa a outros times). Foi a primeira das quinze derrotas em 34 rodadas. O que definiu a queda, contudo, não foi exatamente as vezes que o time perdeu: o nono colocado Instituto de Córdoba também levou quinze reveses. Só que o Instituto ganhou treze. O San Lorenzo, só nove, mais apenas que o outro rebaixado, o Colón.

Ainda assim, a equipe teve chances vivas até a última rodada. Contra o próprio Colón o Sanloré jogou em seguida, batendo-o fora de casa por 1-0, gol de Mario Rizzi. Daí pecou-se pela irregularidade: derrotado “em casa” pelo Ferro Carril Oeste (os azulgranas eram mandantes, mas o jogo foi no estádio do próprio FCO), começou vencendo fora de casa o Rosario Central (vencedor do campeonato anterior) por 2-0 mas levou o empate. Daí ficou em 1-1 com o Racing na casa alugada pelo Ferro, mas bateu em Córdoba o Talleres, com gol de Eduardo Delgado aos 37 minutos do segundo tempo.

Alugando o estádio do vizinho Huracán, perdeu de virada para o Boca aos 40 minutos do segundo tempo, mas em seguida bateu o próprio Huracán na casa rival – um 3-1 com dois gols do vira-casaca Larrosa para os azulgranas, enquanto pelo lado rival marcava outro doblecamiseta, Marangoni. Após vencer o clássico, o CASLA, voltando a alugar o campo do Ferro, enfim emendou a segunda vitória seguida, um 1-0 no Platense. Perdeu depois do Sarmiento em Junín (2-0, dois gols de Ricardo Gareca) e emendou outras duas vitórias: mandando o jogo na Bombonera, bateu o Unión (chorado, com Delgado marcando os 2-1 aos quarenta do segundo tempo) e, no campo do Ferro, o Instituto (1-0).

Mas então vieram seis rodadas sem vencer: 3-1 para o Newell’s em Rosario; 1-0 para o Independiente no estádio do Vélez; 1-1 fora de casa contra o River; 1-1 mandando na casa do Ferro contra o Vélez; 1-1 fora contra o Argentinos Jrs; e 2-1 para o Estudiantes em La Plata, já pelo segundo turno. Desconsiderando-se o porte do San Lorenzo e tendo em vista a penúria econômica que vivia, o primeiro turno foi mais (ir)regular do que objetivamente um desastre. Em dezessete jogos, venceu seis e também perdeu seis. O problema maior foi na segunda metade. Foram só três vitórias. Após perder novamente para o Estudiantes, o Sanloré, no estádio do Ferro, venceu novamente o Colón (2-0). Mas perdeu cinco dos sete jogos seguintes, os últimos sob o comando técnico de Cocco.

A sequência incluiu duas goleadas contra outros dois grandes, Racing e Boca. Foi esta: 2-1 para o Ferro; 0-0 (no estádio do Ferro) contra o Rosario Central; o 4-0 para o Racing, em Avellaneda; um raro triunfo em um 2-1 sobre o Talleres (aos 44 minutos do segundo tempo, no estádio do Ferro); o 4-0 para o Boca, na Bombonera; e, como mandante no estádio do Boca, derrota de 1-0 no clássico com o Huracán. No dérbi, o San Lorenzo jogou quase todo o segundo tempo com um jogador a mais, mas sofreu o gol justamente nessa etapa. A rivalidade pesou e Cocco caiu nessa rodada.

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Gol de Maradona nos 4-0 do Boca. À direita, o recordista Villar ainda nos bons tempos

Carlos Román assumiu como técnico interino no jogo seguinte, mas o roteiro não mudou: 1-0 para o Platense. O substituto de Cocco não poderia ser outro: foi Juan Carlos Lorenzo, o técnico do vitorioso 1972 (e que mantivera sucesso treinando os primeiros títulos do Boca na Libertadores e no Mundial, entre 1977-78). Com El Toto Lorenzo, o clube buscou o empate em 1-1 com o Sarmiento, mandando a partida no estádio do Ferro, onde começou perdendo. Mas nem o velho comandante conseguiu fazer melhor trabalho. Os cuervos perderam do Unión em Santa Fe (2-1) e foram em seguida massacrados em Córdoba pelo Instituto, um 6-2 que chegou a ser 5-0 só no primeiro tempo.

As esperanças se mantinham porque na época a vitória valia dois pontos, e não três. Assim, quem não disputava a liderança não estava tão distante. O San Lorenzo caiu em penúltimo com 28 pontos, só seis a menos do que o sétimo colocado, o Rosario Central. O Colón, último com 21 pontos, era carta fora. Os concorrentes contra a penúltima posição eram sobretudo Vélez, Platense, Sarmiento, Estudiantes, Talleres e um Argentinos Jrs órfão de Maradona, recém-negociado com o Boca – ainda com Dieguito, havia sido simplesmente vice-campeão um ano antes.

Nos jogos do San Lorenzo seguintes aos 6-2, os últimos cinco do campeonato, houve uma ligeira reação, o que se refletiu no público. O San Lorenzo, que sob Cocco não vinha levando mais de quatro mil espectadores, só perdeu uma partida, justamente a última. Contra o Newell’s, terceiro colocado, buscou o empate em 1-1 (no estádio do Ferro); contra o Independiente, segurou o 0-0 em Avellaneda; depois bateu por 2-1 no River em uma verdadeira batalha campal no estádio do Ferro.

O velho ídolo Scotta marcou um dos gols, mas também foi um dos expulsos, ainda no primeiro tempo. Levaram o vermelho do lado sanlorencista também Moreno e Insúa (autor do outro gol azulgrana), estes ainda ao dez minutos do segundo tempo, enquanto Ramón Díaz e Alberto Tarantini foram os millonarios expulsos. Por outro lado, a fuga até parecia tranquila ao fim do domingo: na rabeira da tabela, Talleres 28 pontos, San Lorenzo 27, Sarmiento 26, Argentinos Jrs 24, Colón 21.

Mas, antes do fim de semana seguinte, o tapetão reoxigenou o Argentinos Jrs com um precioso ponto extra diante do doping positivo do lateral Abelardo Carabelli, do Talleres, após duelo que estes dois clubes travaram ainda pela 28ª rodada – o empate em 2-2, arrancado curiosamente pelo brasileiro Júlio César “Uri Geller” em cobrança de falta a dois minutos do fim, terminou sumulado como vitória colorada por 2-0. Havia o outro lado da medida também, positivo, pois ela também tirava um ponto do Talleres, agora com os mesmos 27 pontos do Ciclón.

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Ceballos marcado por Salinas no jogo fatídico. Foi de Salinas o gol do rebaixamento

Na rodada seguinte, a penúltima, os azulgranas ficaram no 0-0 fora de casa com o Vélez. O resultado livrou de vez o oponente do rebaixamento e permitiu que o San Lorenzo, com 28 pontos, se livrasse também se vencesse “em casa”, no campo do Ferro, o jogo seguinte. O Sarmiento e o Argentinos Jrs haviam vencido seus jogos e foram respectivamente a 28 e 27 pontos. Já o Talleres parara nos 27 ao perder para o Racing e teria pela frente um dérbi cordobês contra o Instituto – que era o clube do artilheiro daquele Metropolitano, Raúl Chaparro. O San Lorenzo, por sua vez, faria um duelo direto com o Argentinos Jrs, que poderia ser convertido em amistoso de compadres caso o Talleres caísse para os vizinhos do Instituto; nesse cenário, um empate salvaria os dois times da capital federal.

Embora sem Maradona, o Argentinos tinha a tarimba de alguns ex-jogadores do Boca trocados por Diego, inclusive alguns protagonistas no bicampeonato boquense na Libertadores em 1977 e 1978. Tudo se definiu por pênaltis: aos quinze minutos, um arremate de Rinaldi em escanteio resvala na mão do adversário Pedro Magallanes. Eduardo Delgado, justamente o artilheiro da pobre campanha cuerva, perdeu duas vezes: teve a cobrança e o rebote espalmados pelo goleiro Mario Alles. Aos 39, foi a vez de um pênalti para o Argentinos. O mesmo Magallanes foi derrubado por Glaria. Carlos Salinas, um dos ex-Boca (fez gol no Mundial Interclubes de 1978), não perdoou.

Em agosto de 2016, El Loco Salinas, ex-pupilo do técnico Juan Carlos Lorenzo no Boca internacionalmente vencedor, relembrou à El Gráfico: “as voltas da vida, não? Senti muito porque os torcedores choravam, foi terrível, o primeiro grande a ir à série B. Meti o gol de pênalti e o deles errou Delgado, que foi companheiro meu no Chacarita. (…) Eu não tinha que chutá-lo, na realidade, mas agarrei a bola porque meus companheiros estavam todos atrás do gol ajeitando as meias, ninguém queria chutar. Ainda por cima, com toda a torcida do Argentinos atrás dessas traves”. No dia seguinte, Salinas juntou-se ao Independiente, com quem já havia negociado, mas rechaçou que não se importaria com o duelo: “como não ia me importar, se isso depois levas para a vida toda?”.

Ao fim do primeiro tempo, o 1-0 do Argentinos Jrs somando ao 0-0 em Córdoba forçaria um jogo-extra entre San Lorenzo e Talleres, que chegava aos mesmos 28 pontos do Ciclón. O Sarmiento, por sua vez, tinha missão mais tranquila por receber o já rebaixado Colón e fazia o dever de casa literalmente desde o primeiro minuto, quando abrira o placar – com 15, o jovem Ricardo Gareca (emprestado pelo Boca) anotou o segundo de um 3-0. Assim, a sobrevida sanlorencista se voltava para Córdoba, mas logo aos 4 minutos de segundo tempo ela começou a esvair-se: Talleres 1-0. E, aos 13 minutos, 2-0. O Instituto só conseguiu descontar, ficando-se no 2-1.

O San Lorenzo começara o segundo tempo com a camisa reserva branca substituindo o tradicional manto azulgrana. Com vitórias valiam dois pontos e não três, o empate serviria para forçar jogo-extra com o Talleres. Sabendo disso, 19.144 pagantes, segundo maior público do San Lorenzo mandante, tentaram nos últimos quatro minutos empurrar um “Sanlorééé, Sanlorééé” como incentivo a jovens facilmente truncados pelas faltas e cera do Argentinos. Mas não adiantou. Um mês depois, o time estreava no Torneio Nacional em confronto simbólico contra o San Lorenzo de Mar del Plata, pálida cópia (embora rubro-negra) do original.

Mas 1982 reservava uma volta grandiosa à elite, levando mais públicos para um jogo de segunda divisão do que toda uma rodada dos times da primeira. E os ascendidos quase emendaram a segundona com o título da elite em 1983, perdido por um só ponto. Reviravolta que contamos neste outro Especial.

Os pênaltis de Delgado e Salinas
Os pênaltis de Delgado e Salinas

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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