Primeira Divisão

Há 100 anos, no 1º Brasil x Argentina da Copa América, o gol hermano foi de um espectador negro

Se hoje Brasil x Argentina é um confronto que envolve muita rivalidade e pompa, nos primórdios o encontro tinha outros ares. O que não mudava era o equilíbrio. Os primeiros dois jogos ocorreram em 1914, com uma vitória para cada lado. Foi pela primeira Copa Roca, e o atraso do navio brasileiro fez os hermanos concordarem em transformar em amistoso a primeira partida contra os cansados brasileiros, vencidos por 3-0. Na segunda, valendo a taça, deu Brasil, 1-0 em Buenos Aires com direito aos alvicelestes pedirem a anulação de um próprio gol e erguerem o goleiro tupiniquim (saiba mais). Já a terceira, retratada acima, foi um empate em circunstâncias ainda mais pitorescas, já explicadas no título, do que o uniforme usado pelos brasileiros, com o verde-e-amarelo em listras verticais na camisa e calção branco.

Em julho de 1916, a Argentina, que celebrava o centenário de sua declaração de independência, sediou a primeira Copa América. Foi um quadrangular de turno único que a envolveu com Brasil, Chile e Uruguai no campo do Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires (que já sediara os dois Brasil x Argentina de 1914), clube da classe alta portenha – sediado no fino bairro de Palermo, é mais conhecido pela sigla GEBA e persiste como um prestigiado clube social embora tenha desativado seu time de futebol competitivo após o rebaixamento em 1917. Como o Gimnasia mais expressivo do futebol argentino viria a ser o de La Plata, algumas fontes errôneas atribuem que ele teria sido a sede.

O torneio foi aberto com duas goleadas. Ao dia 2 de julho, o Uruguai venceu por 4-0 o Chile em uma partida histórica para além das estatísticas: os chilenos protestaram contra a escalação de dois negros entre os celestes, um dos quais, Isabelino Gradín, marcou dois gols. O protesto não foi aceito e Gradín, que também marcaria sobre o Brasil, terminaria artilheiro da primeira Copa América. Que teve gol também de outro negro, José Manuel Durand Laguna, para os próprios argentinos. Em outras versões, principalmente na imprensa paraguaia, seu nome é Laguna Durand e em outras a grafia é Durán ao invés de Durand.

Nascido em La Viña, cidadezinha da província de Salta, ele mudou-se com a família a Buenos Aires em 1906. Os primeiros chutes portenhos se deram no clube Gloria de Mayo. Em 1907, a família se instalou no bairro de Parque de los Patricios, onde Laguna juntou-se aos primórdios do clube local: o Huracán, do qual foi o primeiro presidente formalizado. A equipe já existia desde antes do 1º de novembro de 1908 datado como de sua fundação (desde 1903, pelo menos), e Laguna a assistia.

O clube já havia se desmanchado outra vez e após uma derrota esse pensamento fez a cabeça dos cabisbaixos jogadores. Laguna os chamou a uma reunião na esquina da Garay com Paseo Colón e os demoveu da ideia. Houve mais reuniões até aquela de 1º de novembro no qual o Huracán foi reorganizado e oficialmente fundado – na ata, redigida só em 1909, não constam nenhum dos fundadores, exceto Laguna como presidente e Alberto Rodríguez como secretário.

Laguna foi o primeiro presidente do Huracán e marcou no primeiro clássico com o San Lorenzo. É o terceiro sentado, nessa foto de 1922

Foi presidente até 1911 e como tal buscou convencer o aviador Jorge Newbery, celebrizado ainda em 1908 ao voar sobre três países de uma vez a bordo do balão El Huracán, a permitir que o time de mesmo nome usasse o balão como distintivo – daí o apelido Globo (“balão” em espanhol)”: detalhamos neste outro Especial. Com a negativa de filiação da associação argentina, Laguna deixou provisoriamente o Huracán para jogar no Independiente, participando da primeira temporada do Rojo na elite, em 1912 (vice-campeão). Voltou a Parque Patricios para a primeira vez huracanense na elite, em 1914. Na estreia, fez dois gols no 4-2 no Ferro Carril Oeste, na casa adversária.

Também fez em 1914 o primeiro gol do primeiro estádio do clube, no 1-0 sobre o River. E fez também o primeiro do primeiro clássico com o San Lorenzo, já em 1915, perdido de virada por 3-1. Naquele mesmo ano, em outro embate com o River, polemizou: “futebol não é para os mais fortes, e sim para que os que põem mais picardia ou engano em suas jogadas e deslocamentos”, respondeu às reclamações do adversário José Morroni após exagerar uma lesão e em seguida marcar um gol. Mas seria mero espectador naquele 10 de julho de 1916, dia seguinte às festas do centenário da independência, comemorada em 9 de julho (nome da mais famosa avenida de Buenos Aires).

Antes, em 6 de julho, a seleção da casa fizera sua estreia com um 6-1 no Chile. Dois dos gols, de pênalti, foram simbólicos. Foram os últimos da família Brown pela Albiceleste, ambos do veterano zagueiro Juan Brown. Os seis Brown estrelavam os tempos ainda britânicos do futebol argentino, pelo já extinto Alumni, que ganhou dez campeonatos entre 1900 e 1911 – alguns remanescentes, dentre os quais Juan Brown, jogaram e foram campeões pelo Quilmes em 1912 (os Cerveceros eram originalmente da comunidade britânica e só venceriam nacionalmente uma outra vez, já em 1978).

Falamos da família Brown neste outro Especial. O sucessor do Alumni como bicho-papão foi o Racing, hepta seguido entre 1913 e 1917 e que, trajado nas cores argentinas e com jogadores latinos, “argentinizou” o campeonato. Os outros quatro gols foram anotados por dois racinguistas, Alberto Ohaco, até hoje o máximo artilheiro do clube, e Alberto Marcovecchio.

Para o duelo contra o Brasil, as alterações se resumiriam à troca do zagueiro Armando Reyes, outro racinguista, por Arturo Chiappe, do River; e do ponta-esquerda Juan Perinetti (também do Racing) por Claudio Bincaz, do San Isidro, vice do Racing em 1915 – o San Isidro posteriormente voltaria-se ao rúgbi, emendando treze títulos seguidos a partir de 1917. Bincaz também jogou este outro esporte, que fez da cidade de San Isidro a capital hermana da bola oval: o clube se dividiria em dois, conhecidos pelas siglas CASI e SIC, justamente os maiores campeões.

Laguna como técnico do Huracán: primeiro em pé nesse amistoso de 1929 com o Bologna. Os outros nomes são Bartolucci, Nóbile, Ceresetto, Federici, Pratto e Settis; Loizo, Spósito, Stábile (artilheiro da primeira Copa do Mundo), Chiesa e Sousa.

De última hora, porém, Ohaco também não poderia jogar naquele 10 de julho de 1916. Para suprir sua ausência de Ohaco, Laguna foi “convocado” diretamente das arquibancadas: ele, que já passara dos 30 anos, apenas pretendia assistir a partida; fora dos campos, era reconhecido como um personagem elegante, sempre impecável de paletó e chapéu.

El Negro Laguna estreou ali pela Argentina, virando o segundo jogador do Huracán na seleção – o primeiro fora Pedro Martínez, também presente na partida e exatamente quem sugerira a escalação de seu presidente, sabendo que estava na plateia. Laguna não só pegou o bonde andando (ou quase saindo, dependendo da interpretação) como tratou de logo sentar na janela, abrindo o placar com apenas dez minutos. Na metade do primeiro tempo, porém, o Brasil empatou.

Quem se aproveitou foi o Uruguai. Adiante, os celestes bateriam os brasileiros (que haviam levado o empate do Chile no finzinho no dia 8), tirando-os de vez do páreo. O dia 16 reservaria então o clássico do Rio da Prata pela rodada final. Mas naquela data a partida durou só cinco minutos no estádio do GEBA, suspensa por problemas com a superlotação; prosseguiu no dia seguinte, usando-se no lugar o antigo campo do Racing. Os orientales jogaram pelo empate contra a Argentina e seguraram o 0-0 em Avellaneda, sagrando-se assim os primeiros campeões sul-americanos.

Laguna voltaria a jogar pela Argentina apenas em 1919, para outras quatro partidas (e três gols) contra o Paraguai, em um 5-1 e três 2-1 a favor da Albiceleste em excursão pelo país vizinho. O contato com os paraguaios rendeu-lhe uma passagem pelo Olimpia em 1920. Voltou ao Huracán para participar dos primeiros títulos argentinos do clube, em 1921 e 1922. Só jogaria uma vez mais por ele, em 1924, para não deixar o time entrar com dez jogadores: foram ao todo 59 gols em 113 jogos pelo Globo. Ainda jogou pelo Olimpia novamente, entre 1925 e 1927.

Com renome, dirigiu combinados regionais de Tucumán e Bahía Blanca e como técnico voltou a ser campeão no Huracán, em 1928 (finalizado já em meados de 1929), na penúltima conquista quemera na primeira divisão – a última viria só em 1973. Ainda em 1929, treinou o Paraguai na Copa América, sediada novamente na Argentina, e acabou mantido no cargo na ocasião da primeira Copa do Mundo, no ano seguinte. Intercalou a tarefa com o seu Huracán, onde trabalharia nas divisões de base e ocasionalmente como técnico, função que no bairro de Parque de los Patricios exerceu pela última vez em 1951. El Negro faleceu em Assunção, em 16 de julho de 1959.

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Como técnico do Paraguai na Copa de 1930 e como jogador do Independiente. Em ambas, é o último em pé

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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