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José Salomón faria cem anos. Por causa dele, não houve Brasil x Argentina por outros dez

Em 9 de julho de 1916, a República Argentina celebrava os cem anos de sua declaração de independência – em função disso é que a mais famosa avenida de Buenos Aires foi nomeada com a data. Em meio aos festejos desse centenário, em La Plata vinha ao mundo o beque José Salomón, verdadeiro emblema do futebol de seu país. Raro tricampeão da Copa América, chegou a deter o recorde de partidas pela seleção. Foram 44 jogos pela Albiceleste, 28 deles como capitão. Trajetória que não foi maior em função de uma fratura sofrida em um Brasil x Argentina. Idolatria que gerou confusão no campo e na diplomacia entre AFA e CBD, que romperam relações por dez anos.

O primeiro clube de Salomón foi o Banfield, mas não profissionalizou-se lá e sim em uma equipe pitoresca, em 1934. Em 1931, dezoito clubes romperam com a associação amadora, reconhecida pela FIFA, para formalizar uma liga profissional, que absorveria naquele mesmo 1934 o enfraquecido grupo amador. O profissionalismo já não estava na realidade em discussão, admitido até por quem não adentrou na nova liga; o que aconteceu é que os times mais expressivos consideravam negócio jogar apenas contra alguns dos menores. Os “esquecidos” não aceitaram ficar de fora da elite e em função disso houve o rompimento. Detalhamos há dois meses.

Apesar do sucesso da liga profissional, nem tudo eram flores entre os dezoito. A média de público de alguns times dali de dentro começava a torna-los desinteressantes também. Assim, em 1934 os dezoito se reduziram a quartorze, sendo punidos os seis últimos de 1933: Quilmes e Tigre tiveram de jogar o campeonato das equipes B dos outros clubes. O Argentinos Jrs e o Atlanta tiveram seus elencos fundidos e o mesmo ocorreu a Lanús e Talleres de Remedios de Escalada, que faziam o principal clássico do Sul da Grande Buenos Aires. Foi no time da união desses dois rivais que Salomón, vindo da base do Talleres, debutou como jogador profissional. Fez quatro jogos naquele campeonato.

Os outros clubes profissionais de Salomón: pelo Talleres de Escalada e homenageado no Liverpool uruguaio antes de vencer o Peñarol em 1947

A “Unión Talleres-Lanús” terminou em antepenúltimo e a de Argentinos e Atlanta foi ainda menos entrosada, dissolvida após a 25ª rodada, com os jogadores do Argentinos realizando sozinhos os últimos jogos – apenas para ficarem em último. O campeonato de 1935 voltou a contar com os dezoito clubes fundadores do profissionalismo. Salomón ainda não havia se firmado e jogou só seis vezes. Mas em 1936 já jogou 24 vezes e aumentou sua participação nos dois anos seguintes. No de 1938, contudo, a equipe de Remedios de Escalada (cidade que, por sinal, também faz referência à independência hoje bicentenária: este é o sobrenome da esposa de José de San Martín, o principal herói do movimento) terminou rebaixada. Nunca mais voltaria à elite, sendo a fundadora do profissionalismo há mais tempo distante da primeira divisão; o Talleres que angariou tradição nacional a partir dos anos 70 é o da cidade de Córdoba.

O grande clássico do Sul passaria a envolver o Lanús e outro vizinho, o Banfield – único time da região metropolitana da capital inicialmente mantido no amadorismo após 1931 a construir assiduidade histórica na elite profissional. Apesar da queda do Talleres (que, apesar do sumiço, revelaria Javier Zanetti e Germán Denis, além de polir Fernando Redondo nos infantis), três jogadores do setor defensivo rebaixado interessaram ao Racing, clube com ligação de longa data com a equipe de Escalada: um dos fundadores do Talleres fora Juan Perinetti, integrante de todo o recordista heptacampeonato nacional seguido dos racinguistas nos anos 10.

Ainda em 1938, a dupla de zaga que Salomón formava com Alberto Máspero foi, junto do lateral-esquerdo Jorge Titonell, participar da uma excursão que os blanquicelestes fizeram pelo Chile. Salomón e Máspero tiveram a contratação efetivada em Avellaneda (enquanto Titonell viraria ídolo no Huracán), e era Máspero o reforço que inicialmente mais agradava a Academia. Mas ele não correspondeu e ainda em julho de 1939 passou a vestir outra camisa alviceleste, a do Argentino de Quilmes. Salomón, sim, sobressaiu-se. O Racing ficou só em sétimo, mas o zagueiro também logo vestiria outro manto alviceleste: o da seleção. Ele estreou pela Argentina em 18 de fevereiro de 1940, exatamente contra o Brasil, em confronto válido pela Copa Roca de 1939. É que cada um havia vencido um jogo, forçando o desempate.

Salomón era tido como um marcador firme, mas cavalheiro. Acabou respeitado pelos rivais uruguaios e pelo técnico da Argentina, o ex-artilheiro Guillermo Stábile

Os primeiros cinco jogos de Salomón foram todos contra os brasileiros, no espaço de um mês. Aquela estreia terminou empatada em 2-2 e assim foi necessário um segundo jogo-desempate, vencido pelos hermanos no Parque Antarctica. Em seguida, logo foi disputada uma nova Copa Roca, agora válida propriamente pelo ano de 1940, que também teve inicialmente uma vitória para cada lado (a dos argentinos foi por 6-1), forçando mais uma vez um jogo-desempate. Dessa vez, não foi necessário um segundo: a Albiceleste goleou por 5-1.

O zagueiro manteve a boa fase no Racing, quarto colocado em 1940, participando em fevereiro de 1941 de sua primeira Copa América. Foi campeão. O Racing voltou a ser sétimo em 1941, mas o beque foi chamado para nova Copa América em janeiro de 1942: vice. Por mais que a Academia não voltasse a ficar entre os cinco primeiros entre 1941 e 1945, Salomón mantinha-se na seleção. Não só mantinha-se como, desde 1942, tornou-se capitão. Regularíssimo entre 1939 e 1945, ele se ausentou de só três jogos do Racing no campeonato argentino. Em janeiro de 1945, ganhou outra Copa América. E no decorrer do ano, em outubro, veio sua única volta olímpica com o Racing, pela Copa Britânica, uma espécie de Copa da Liga vigente entre 1944 e 1946. O Boca bicampeão argentino seguido de 1943 e 1944 levou de 4-1 na decisão e a imprensa festejou em especial como Salomón tanto merecia um troféu pelo clube.

Ainda em 1945, em dezembro, houve nova Copa Roca após o intenso 1940. Dessa vez, os argentinos levaram a pior para além do resultado: o volante José Battagliero saiu de São Januário fraturado após disputa com Ademir de Menezes e o lance jamais experimentou consenso entre os dois lados; as crônicas argentinas tacharam os vizinhos de truculentos enquanto as versões brasileiras foram quase todas no sentido de que tudo fora um acidente, sem má intenção. Os hermanos prometeram um troco para fevereiro de 1946, quando haveria nova Copa América, sediada em Buenos Aires.

“Salomón merecia”, festeja a imprensa pela taça (bebida por ele) da Copa Britânica com o Racing em 1945. À direita, contra Tesourinha… no jogo fatídico

Brasil e Argentina enfrentaram-se na última rodada em um confronto direto pela taça, no primeiro jogo que as duas seleções travaram uma contra a outra no Monumental de Núñez (inaugurado em 1937, em seus primeiros anos ainda concorria com o estádio sanlorencista do Gasómetro como palco principal da seleção). Pois o tal Battagliero foi desfilado de maca antes do início da partida para inflamar ainda mais os colegas. Mas quem levou a pior foi El Gran Capitán. Foi fraturado em disputa contra Jair da Rosa Pinto – e, novamente, a mídia de cada país trataria de inocentar sua seleção. Os argentinos venceriam por 2-0, e dessa forma agridoce que Salomón despediu-se da seleção: campeão… e semiaposentado.

Brasil e Argentina só voltariam a se enfrentar em 1956, com a confusão de dez anos antes sendo um dos motivos para os hermanos ausentaram-se da Copa América de 1949 (eram os detentores das três edições anteriores) e da Copa do Mundo de 1950, ambas sediadas no país rival. Nós já havíamos contado duas vezes neste ano sobre esta história: clique aqui para o enfoque sobre Battagliero e aqui para um enfoque sobre o tumulto de 1946. Sobre o lance fatídico, Salomón, já aposentado, recordou décadas depois assim – os parênteses são dele próprio:

“Uma noite de tremendo calor. Nós tínhamos um ponto de vantagem (havíamos ganho todas as partidas e eles empatado uma). Uma partida caliente como toda final, mas esta vinha com um agregado: dois meses antes havíamos jogado no Rio pela Copa Roca (nos ganharam por 3-1), e a verdade é que aquilo havia sido pouco menos que uma batalha; eles deram com qualquer quantidade e… nós também. Por isso, flutuava no ar, já nesta final, a lembrança do que havia ocorrido dois meses antes. A grande confusão foi no segundo tempo, quando os muchachos se inteiraram no intervalo da minha fratura… ali se armou a rosca entre os jogadores que interrompeu a partida e que fez que terminasse perto da madrugada… sorte que o público não soube da minha lesão até o outro dia, senão creio que os negros não saíam vivos do estádio”.

Salomón em plena agonia da fratura e a recordando, aposentado: “a essa altura veio a sola de Jair”

Indagado se Jair foi mal intencionado, respondeu: “isso nunca se saberá, Jair tem a verdade em sua consciência. Iam 30 minutos do primeiro tempo, estávamos atacando nós. Veio um contragolpe do Brasil e a bola cai atrás de mim. Corremos Jair e eu. Consegui chegar antes dele para rechaçar com uma espécie de bicicleta. A bola devia estar a 80 centímetros do piso. Me atiro e quando vou chegar, desde atrás apareceu a sola de Jair… não terminei de chegar ao solo para me dar conta que estava quebrado. Veio ao sanatório antes de ir embora, e depois nos vimos outra vez no Brasil ao cabo de vários anos. Mas da jogada nunca falamos. Eu não posso dizer que houve intenção. Eu repito, a verdade só Jair tem”.

Salomón quebrara a tíbia e o perônio e na época a recuperação total de lesões desse grau era muito mais complicada. Mas o zagueiro, ao fim do ano, sentia-se apto a retornar. Os dirigentes, contudo, queriam vender-lhe ao Rosario Central: o Racing soubera virar-se bem sem o ídolo, ficando em quarto e a sete pontos do título ao fim de 1946. O zagueiro acabou parando no Liverpool uruguaio, onde não teria uma exigência extrema. E não foi ruim: a equipe ficou a um ponto do vice Peñarol naquele ano e a dois do terceiro colocado em 1948. Também retornou ao Talleres, onde pendurou de vez as chuteiras após nove partidas pela segunda divisão de 1950.

Até hoje, ele é o jogador que a Argentina mais vezes usou do Racing. As 44 aparições oficiais do zagueiro (que ainda atuou outras quatro vezes em partidas não-oficiais, como em jogos-treino contra Argentinos Jrs e Defensores de Belgrano em 5 e em 9 de janeiro de 1946, preparatórios para aquela Copa América) foram um recorde por 28 anos na Albiceleste, até Miguel Ángel Brindisi supera-lo com duas a mais na Copa do Mundo de 1974. Outros recordes permanecem: é um dos oito maiores vencedores da Copa América, todos tricampeões. E, empatado com Oscar Ruggeri, é o homem que mais jogos disputou na Copa América, 21. Após parar de jogar, virou um respeitado jornalista e comentarista esportivo.

O coração de Salomón bateu pela última vez em 23 de janeiro de 1990, em Remedios de Escalada.

As cenas lamentáveis de 1946 após a fratura de Salomón

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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