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Bi-mundial da seleção, há 30 anos, prova que ela não era só Maradona

Virou chavão. Maradona ganhou sozinho a Copa de 1986. É superior a Messi, que com colegas mais refinados perdeu as quatro finais que disputou pela seleção. Mas se os jogos contra a Inglaterra e Bélgica reforçam esse lugar-comum, assistir à final de 1986, ocorrida há exatos 30 anos, inspira maior reflexão.

Para compreender melhor esse texto, recomendamos leitura prévia de “A geração de barro”, publicada na esteira de decepção em outra Copa América, a de 2011: clique aqui. Em suma, tal opinião ataca a noção de que a atual geração argentina, com jogadores consagrados nos grandes centros europeus, seria dourada. Exatamente pela falta de exibir na alviceleste o mesmo “fogo sagrado” demonstrado nos clubes. As três gerações classificadas pelo texto como douradas teriam, ao contrário, jogadores técnicos, abundantes até em clubes pequenos da Argentina e que sabiam se impor coletivamente na seleção. A terceira e última dessas gerações seria a dos anos 70, responsável pelos títulos mundiais de 1978 e 1986.

Maradona ser um fora de série acabou relativizando a qualidade de seus colegas, demonstrada por alguns fatos. O primeiro é que o clube que mais cedeu jogadores aos campeões ganhou tudo naquele ano. O River, com um futebol vistoso venceu com rodadas e rodadas de antecedência o campeonato argentino (após jejum incomum de meia década) e, mesmo sem o craque uruguaio Enzo Francescoli, ganhou adiante, pela primeira vez, a Libertadores e o Mundial. Dentre as façanhas menos conhecidas daquele elenco, virar para 5-4 no último lance jogo perdido por 4-2 até os 37 minutos do segundo tempo contra a forte seleção polonesa da época: saiba mais.

Os três representantes millonarios no México eram todos titulares: o goleiro Nery Pumpido, o zagueiro Oscar Ruggeri e o meia-direita Héctor Enrique. Dentre eles, destaque especial à estrela de Ruggeri, único a ser campeão (nunca como figurante) e a jogar pela seleção vindo dos três grandes clubes de Buenos Aires, Boca, River e San Lorenzo. Também seria eleito o melhor estrangeiro do campeonato espanhol na edição de 1988-89, e pelo nanico Logroñés – indo em seguida ao Real Madrid.

Outros dois trios vinham de equipes também elogiadas pelo bom futebol. O volante Sergio Batista e os atacantes Claudio Borghi e Pedro Pasculli pertenciam ao sensacional Argentinos Jrs de 1984-85, período em que o nanico clube, há muito tempo sem Maradona (e sem também Ubaldo Fillol, vendido ao Flamengo em 1983), venceu seguidamente dois dos seus três títulos argentinos e também a Libertadores de 1985. Fillol, aliás, não foi convocado mesmo tendo acabado de ser vice da Recopa Europeia pelo Atlético de Madrid.

Na campanha continental, o Argentinos Jrs bateu tanto Vasco como Fluminense no Rio de Janeiro, e o vídeo do Globo Esporte desmente a noção de que brasileiros não valorizavam o torneio: o técnico vascaíno Antônio Lopes se alonga na explicação da derrota ao mesmo tempo que se rende à qualidade adversária, enquanto o goleiro tricolor Paulo Vítor declara manter a esperança de que a classificação ainda seria possível. Adiante, o Argentinos Jrs, por sete minutos, não venceu a Juventus no mundial, em final descrita como de maior qualidade técnica de ambos os finalistas nas edições promovidas pela Toyota. Os italianos fizeram questão de levantar o troféu usando as camisas derrotadas nos pênaltis.

Pois bem. Borghi e Pasculli viraram reservas no México, com o segundo tendo alguma importância ao marcar o gol da vitória nas oitavas contra o Uruguai, embora seja unânime que o primeiro tinha muito mais qualidade – quando não sentia responsabilidade. E ainda havia o líbero Jorge Olguín, titular da Copa de 1978. Sondado, recusou-se: não aprovava o técnico Carlos Bilardo.

Também havia o quarteto do Independiente campeão pela última vez na Libertadores e no Mundial, em 1984: o armador Ricardo Bochini, o lateral Néstor Clausen, o volante Ricardo Giusti e o meia Jorge Burruchaga (já no Nantes). Essa equipe bailou na final continental contra a equipe brasileira que mais se importava com a Libertadores, o Grêmio, detentor do título e cuja torcida reconhece que a derrota só por 1-0 em pleno Olímpico saiu barata. O gol, por sinal, foi de Burruchaga, em jogada bastante similar à que garantiu o título de três décadas atrás. Foi também Burru quem cobrou a falta na medida para Brown abrir o placar em 1986.

Pois bem, mais uma vez. O melhor jogador dos quatro era disparadamente Bochini, maior ídolo rojo e ídolo de Maradona. O técnico Carlos Bilardo, porém, só usou El Bocha nos últimos seis minutos da semifinal (falamos sábado: veja aqui). Outro classudo jogador daquele elenco, o volante Claudio Marangoni, foi deixado de fora. A precisão dos passes do primeiro e a qualidade do segundo podem ser vistas nos gifs abaixo, quando os argentinos bateram o grande Liverpool da época no mundial.

Bochini
Bochini em passes precisos seguidos, em ambos mesmo acossado de perto por britânicos
Marangoni
A classe de Marangoni, canetando dois britânicos e lançando de trivela a Barberón

 

 

 

 

 

 

Essas três equipes terminaram o domínio uma da outra na Libertadores: o Independiente, que segundo Bochini tinha um futebol melhor que o do elenco tetra seguido no torneio nos anos 70, foi eliminado pelo Argentinos Jrs nas semifinais de 1985. O Bicho, por sua vez, caiu para o River nas semis de 1986 mesmo levando só um gol na campanha inteira e vencendo no Monumental.

Dois outros personagens da final vinham do Estudiantes bicampeão de 1982-83. Ao contrário do elenco tri da Libertadores entre 1967-70, o do início dos anos 80 não deixava o lado aguerrido de lado (vide Batalha de La Plata com o Grêmio), mas era elogiado por um belo futebol. Pertenciam àquele elenco os meias Alejandro Sabella e Miguel Ángel Russo, ignorados na convocação, que atendeu o zagueiro José Luis Brown (já no Deportivo Español) e o meia Marcelo Trobbiani (já no Elche).

A Brown coube a missão de substituir na Copa ninguém menos que Daniel Passarella, o segundo maior zagueiro-artilheiro do futebol (e os argentinos tinham na época também o terceiro maior: ninguém menos que o atual técnico são-paulino Edgardo Bauza, não convocado).

Um gol de Brown, o único pela seleção, valeu por todos os do Kaiser: o cabeceio que abriu o placar. Brown não ficou só nisso, com uma entrega de dar inveja a Javier Mascherano ao jogar todo o segundo tempo com o ombro deslocado, improvisando um rasgo na camisa para apoiar o braço inútil. Aos 1h33min40s do vídeo abaixo, nos minutos finais, ele, nessas condições, desarmou limpamente Karl-Heinz Rummenigge na grande área.

Já Trobbiani foi outro craque relegado à reserva, usado só para gastar tempo ao entrar na final aos 45 minutos do segundo tempo. Tocou duas vezes na bola: primeiro para matar no peito passe de Maradona, e em seguida, após deixa-la quicar uma vez no chão, para repassa-la através do calcanhar e assim habilitar Héctor Enrique em um ataque quase fatal (veja a partir do 1h37min00s).

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Passarella conversa com Rummenigge, colega de Internazionale, antes da final: foi reserva, assim como o maestro Borghi (às lágrimas no primeiro vídeo)

Além deles, havia Jorge Valdano, da Quinta del Buitre do Real Madrid (e eleito o melhor estrangeiro da temporada recém-finalizada do espanholzão). Autor do segundo gol, o refinado ponta cobrou também quase fez outro, de cabeça, ao receber aos 1h12min30s um cruzamento milimétrico de Enrique. Desfilou classe com embaixadinhas contra dois alemães por volta dos 1h05min25s ou em um drible de vaca seguido de triangulação com Maradona aos 1h32min15s.

Havia, portanto, todo um elenco nada perna de pau para auxiliar Dieguito. E para tomar as rédeas quando o astro não esteve iluminado, como naquela final. Após escancarar seu brilho nos dois mata-matas anteriores, Diego ou foi anulado por falta ou cerco pelos alemães (registramos isso pelo menos aos 5min29s, 6min20s, 7min45s, 10min45s, 13min55s, 23min10s, 24min40s, 29min55s, 34min10s, 39min50s, 43min25s, 44min45, 1h03min35s, 1h23min15s e 1h32min25s) ou não foi teve pé calibrado para cruzar ou concluir quando teve espaço: suas melhores chances foram aos 37min25s (após receber de letra de Burruchaga) e na cobrança de falta rasteira no canto defendida por Harald Schumacher por volta dos 1h32min30s.

Maradona perseverou e participou de todos os gols. Mas os créditos devem ser dados aos colegas. No primeiro, Diego havia passado a bola a José Luis Cuciuffo, que sofreu a falta cobrada por Burruchaga na cabeça de Brown. No segundo, Maradona entregou a bola a Héctor Enrique ainda antes do meio-campo. Foi El Negro, porém, quem se deu ao trabalho de correr um bocado até habilitar Valdano pela esquerda, para este tocar com categoria entre as pernas de Schumacher.

A participação mais direta veio, ainda bem, no gol do título. Maradona viu Burruchaga livre e habilitou o colega. Mas não foi exatamente um passe para gol vazio e fácil: foi El Burru quem teve o trabalho maior de fugir por quase metade do campo dos germânicos e ter a frieza e categoria reiteradamente ausentes de Gonzalo Higuaín para concluir sem tanto ângulo – e em um contexto complicado pelo empate alemão apenas uns minutos antes. A taça veio por meio de toda uma geração boa de bola, de trabalho em equipe e com ganas, mesmo no dia em que seu extraterrestre esteve aquém. Falta aos colegas e Messi as duas últimas qualidades.

Para relembrar a final em si, reveja texto nosso publicado nos 25 anos da mesma, em 2011: clique aqui.

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Gols de Burruchaga sobre o Grêmio e Alemanha

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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