Primeira Divisão

30 anos do primeiro rebaixamento do grande Huracán

Ao fim do dia 25 de junho de 1986, a maior parte da população argentina estava eufórica: a seleção havia vencido a Bélgica e chegava à sua segunda final de Copa do Mundo em em três edições. Mas havia muita gente infeliz, os torcedores huracanenses. Na véspera, o Globo, ainda com resquícios de grandeza inquestionável, amargava seu primeiro rebaixamento. Se tal grandeza não vinha se refletindo em troféus, se ressaltava diante do fato de que dois gigantes já haviam caído: o rival San Lorenzo e o Racing. Foi cruel: o Huracán deu até o fim mostras de que conseguiria escapar.

Essa grandeza esquecida do clube do bairro de Parque de los Patricios foi ressaltada ontem, quando lembramos que os três homens que mais marcaram gols na seleção brasileira vieram do Huracán: Emilio Baldonedo (sete gols), Herminio Masantonio (seis) e Norberto Méndez (cinco), que também é o maior artilheiro das Copas América. O trio jogou junto no início dos anos 40, quando a torcida quemera já vivia um jejum expressivo de mais de uma década. Baldonedo ainda vivia: seu 70º aniversário havia sido na véspera daquele infeliz 24 de junho de 1986.

Desde os quatro títulos argentinos nos dourados anos 20, que contaram com o artilheiro da primeira Copa do Mundo, Guillermo Stábile, o clube só conseguiu mais um, em 1973. No quase meio século de jejum, contudo, permanecia vez ou outra lutando pelos primeiros lugares (sobretudo nos anos 30 e 40) e como clube nacionalmente mais vencedor abaixo dos cinco grandes, o grupelho formado por Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo. O título de 1973, por sua vez, veio com um futebol dos mais vistosos e que credenciou seu técnico César Menotti a assumir a seleção. Mesmo sem Menotti, o time foi bivice em 1975 e 1976 e só cedeu menos jogadores que o River à seleção campeã em 1978.

Entre 1976, quando o Globo foi vice mesmo somando mais pontos que o campeão Boca e venceu os cinco clássicos realizados com o San Lorenzo, e meados de 1986, as mudanças não vieram onde se precisava: na renovação do elenco e de infra-estrutura. Em 1980, as estrelas ainda eram as mesmas de 1973: Miguel Ángel Brindisi, Carlos Babington, René Houseman e Roque Avallay, todo convocados à Copa do Mundo de 1974 (da qual Avallay fora cortado por lesão). Brindisi mostraria ótima forma no Boca campeão com Maradona em 1981 – para alguns, mais importante até do que Dieguito. Já Houseman, que chegou a deter o recorde de jogos pela seleção, só vivia de lampejos.

Huracán ainda forte em 1981: jogo em que empatou após estar perdendo de 3-0 para o Ferro. Babington conduz. Sua saída desgringolou o Globo, que voltou à elite com o ídolo de técnico

Ainda assim, o time foi 8º e promoveu as estreias das promessas Claudio García e Claudio Morresi. Como naqueles agridoces anos 40, tanto poderia golear (teve a mesma quantidade de gols do vice-campeão Talleres) como sofrer maré de derrotas. Ao fim do ano, saíram Brindisi e Avallay. Em 1981, vieram as contratações do classudo volante Claudio Marangoni e do arisco ponta Oscar Ortiz, ambos ex-sanlorencistas (Ortiz destacara-se também no River e fora titular na Copa de 1978).

Mais uma vez, o Huracán foi 8º, com destaque a um 4-0 no Vélez, ao 1-0 no San Lorenzo à beira do rebaixamento e ao 3-3 com o Ferro Carril Oeste, a grande surpresa do campeonato e cujo técnico, Carlos Griguol, havia dito antes do torneio que o Globo era candidato a cair. O Ferro lutou até a última rodada pelo título contra o Boca de Maradona e Brindisi, mas as chances realistas foram reduzidas na penúltima ao levar o empate do Huracán depois de estar vencendo-0 por 3-0. Por outro lado, Marangoni e Ortiz foram vendidos ao Independiente, onde seriam campeões.

Em 1982, o time foi sexto, vencendo todos os grandes, menos, é claro, o rival, que estava na segundona. Mas foi a vez de Babington sair e, no início de 1983, a de Houseman. Ainda assim, o ano de 1984 fora razoável: no torneio nacional, só foi eliminado nos pênaltis pelo futuro campeão Ferro Carril Oeste. No Metropolitano, começou vencendo as quatro primeiras partidas, algo que não mais se repetiria. Mas dali até o fim só ganhou mais cinco e perdeu dezoito. Terminou em antepenúltimo.

Desde o ano anterior, com o San Lorenzo de volta à elite, fora definido que o rebaixamento se daria pela média de pontuação da temporada corrente com a prévia, para evitar novos descensos dos grandes. A medida salvara o River em 1983, mas por ironia condenara o Racing no lugar. Aquela campanha decepcionante de 1984 desinflou o Globo (“balão”, em espanhol) e pesaria bastante na queda no campeonato seguinte, que demoraria um semestre para começar: o futebol argentino resolveu adaptar-se ao campeonato europeu. A elite teria seu pontapé inicial em meados de 1985, com a temporada se encerrando em meados de 1986.

Marangoni e Ortiz no time de 1981 e no Independiente, para onde saíram e, tendo estrutura, foram campeões

Quando a elite de 1985-86 começou, só o Chacarita e os recém-ascendidos Racing e Deportivo Español estavam abaixo do Huracán na tabela voltada ao rebaixamento. Para piorar, o artilheiro Morresi (futuro ministro dos esportes) jogou só as duas primeiras rodadas, sendo vendido ao River, onde fez grande dupla com Enzo Francescoli. Estatisticamente, ele no mesmo torneio foi campeão e caiu.

As únicas andorinhas foram Claudio García, das seleções de base, e o reforço José “Toti” Iglesias, o Totigol, formado no San Lorenzo e com passagem pelo Barcelona B. No elenco, também Carlos Gay, goleiro do Independiente campeão da Libertadores… de 1974. Ao fim do primeiro turno, o Huracán parecia já condenado. Ganhou só duas vezes e perdeu oito. Mas, trazendo o vitorioso técnico Pedro Dellacha (bicampeão de Libertadores com o Independiente nos anos 70 e de bom trabalho no próprio San Lorenzo, em 1970), deu um salto na metade final, com oito triunfos, cinco empates e cinco derrotas – uma delas, um eletrizante 4-3 contra o Boca. O vice-campeão Newell’s marcou apenas dois gols a mais que o Globo, que na tabela normal ficou em 13º.

O concorrente direto era o Temperley, derrotado no confronto direto. Nas últimas três rodadas, o Temperley precisaria perder as três partidas e os quemeros, ganhar ao menos duas e empatar outra para forçar um jogo-extra contra o penúltimo lugar. O concorrente perdeu mesmo todas. Mas logo de cara o Huracán perdeu em casa para o Unión, 1-0. Não adiantou vencer por 3-2 o Estudiantes em La Plata nem segurar o 1-1 no clássico com o San Lorenzo, cruelmente a última rodada – onde a vitória ter evitado o sucedido posteriormente.

O Globo não caiu ali, mas precisaria jogar um mata-mata contra os sete melhores da segundona abaixo do campeão dela, o Rosario Central. O único que sobrasse garantiria vaga na elite de 1986-87. Essa sobrevida prolongou ao mesmo tempo esperança e agonia. Sempre em campo neutro, os huracanenses foram abatendo um a um os oponentes: ganharam os dois jogos do Lanús (2-0 e 3-2) nas quartas-de-final, bem como os dois contra o Los Andes (1-0 e 3-1) nas semifinais. A final foi contra a camisa menos pesada que teve pela frente na temporada: a do Sportivo Italiano, clube jovem fundado nos anos 50. O adversário venceu a ida por 1-0.

O goleador Morresi saiu naquela temporada para ser campeão no River. Sobraram “Turco” García e “Toti” Iglesias, que não bastaram. Se dariam melhor no Racing

Na revanche, o Globo devolveu: 2-1, quase levando um fatal empate, salvo em cima da linha por Eduardo Papa. Alívio momentâneo à torcida, que pôde no dia seguinte desfrutar um pouco Maradona destruindo a Inglaterra na Copa do Mundo. Claudio “Turco” García, com quatro gols naquele octagonal, continuava um talismã.

No dia 24 de junho, então, veio a terceira decisão pela vaga na elite. E a camisa mais pesada parecia safar-se: vencia novamente por 2-1, no estádio do Vélez. Mas, no finzinho da prorrogação, Víctor Lucero empatou e forçou decisão por pênaltis. García e Carlos Torino converteram suas cobranças, mas Jorge Corrado chutou para fora e Marco Bottari teve a sua defendida por Alejandro Lanari (atual médico do San Lorenzo), enquanto ninguém do Italiano errou. O oponente, cuja camisa seria defendida pelo garoto Gabriel Batistuta no tradicional torneio juvenil de Viareggio, gastaria os quinze minutos de fama por uma única temporada na elite.

Já a tradição do Huracán ficaria mais manchada com a demora excessiva pelo retorno, consumado só durante a Copa do Mundo seguinte, em 1990. E com repetidas quedas depois: 1999, 2003 e 2011, ensejando toda uma geração de argentinos que, alimentados pela ascensão de outras camisas (especialmente as de Vélez, Estudiantes, Newell’s e Rosario Central), vive descrente na grandeza quemera, realimentada só recentemente.

A Copa Argentina de 2014, as duas participações seguidas na Libertadores e o vice na Sul-Americana de 2015, perdida em outros traumáticos pênaltis, porém, ainda não bastam para mudar totalmente a imagem de sofrimento tão bem reproduzida no vídeo abaixo, publicado no centenário huracanense (celebrado com vitória no finzinho contra o Estudiantes). Ao som de “Resistiré”, grito de um eu-lírico que fala em resposta a perder todas as partidas, custar a manter-se em pé, ter as lembranças se rebelando, ser posto contra a parede, não ver magia no mundo, ser seu próprio inimigo, apunhalado pela nostalgia ou ameaçado pela loucura – a loucura de resistir sendo quemero.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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