Seleção

Como jogador, Gareca também desfez jejum contra o Brasil, em outra Copa América

O Peru não vencia o Brasil desde 1985, ano em que Ricardo Gareca ainda era um jovem atacante da seleção argentina. Não teve média alta de gols na Albiceleste, mas ficou bem marcado por dois deles: um, sobre o próprio Peru, naquele ano, classificou nos últimos dez minutos à Copa de 1986 a futura campeã: detalhamos aqui. O outro foi pela Copa América de 1983, em um 1-0 no Brasil. Na ocasião, quebrou o mais longo jejum argentino sem vitórias sobre o rival, treze anos.

Lendo a Placar lançada logo após aquela derrota, é possível encontrar conexões com o momento atual da canarinho. “A queda de um velho tabu (…) até que não foi nada. Afinal, quem se importou verdadeiramente com isso? Pior é a soma de erros do time que não se encontra” era o subtítulo da matéria “O Brasil crucificado”. E isso que, no papel, os brasileiros tinham um timaço: Leão, Leandro, Mozer, Andrade, Renato Gaúcho, Sócrates, Roberto Dinamite, Tita, Careca e Éder estavam no elenco, treinado por sinal por Carlos Alberto Parreira que tanto apostou em Dunga. Um time que em oito jogos perdera apenas aquele e ganhara quatro. Mas sem jogar bem.

Tanto Brasil como Argentina viviam entressafra após a ressaca dupla na Copa do Mundo de 1982. Na Argentina, assumira Carlos Salvador Bilardo. O goleiro Ubaldo Fillol era o único titular de 1982 presente naquela vitória de 1983 – o outro do mundial era o zagueiro Enzo Trossero, reserva na Espanha. Ambos, embora presentes em todo o ciclo até a Copa seguinte, acabariam de fora dela. Por sinal, assim como o próprio Gareca, apesar dos gols talismãs.

Em 1983, os times em alta eram o Independiente, campeão ao fim daquele ano no Metropolitano; o Estudiantes (que emendara um bicampeonato do Metropolitano de 1982, ainda sob o comando técnico de Bilardo, com o Nacional de 1983; e o Ferro Carril Oeste, campeão do Nacional de 1982 e que venceria pouco depois o Nacional de 1984.

Assim, a escalação vitoriosa teve como base o trio: o lateral Oscar Garré e o armador Alberto Márcico eram do FCO; Trossero e o meia Jorge Burruchaga eram rojos (durante a partida entraria mais um, o volante Claudio Marangoni); Julián Camino, José Ponce, Miguel Ángel Russo e Alejandro Sabella eram dos embalados alvirrubros. Além do riverplatense Fillol, as exceções eram o lateral Roberto Mouzo e Gareca, ambos do Boca. Mouzo, como Fillol e Trossero, era o outro único já com experiência na seleção.

Aquela seleção argentina experimental também não iria longe na Copa América. Apenas Burruchaga e Garré iriam à Copa de 1986. Gareca se credenciara por ser um oásis no mau momento do Boca, que no ano seguinte esteve muito perto de fechar. Promessa das inferiores debutado ainda em 1978, El Tigre acabou de fora do maradoniano Torneio Metropolitano de 1981, emprestado ao recém-ascendido Sarmiento de Junín. Nos alviverdes, fez treze gols, incluindo sobre os gigantes Racing, Independiente e San Lorenzo (os dois da vitória por 2-0 sobre os azulgranas, rebaixados naquele torneio).

Logo voltou à Bombonera. Em setembro, marcou pela primeira vez sobre o River e no mês seguinte estreava pela Argentina, uma derrota de 2-1 para a Polônia. Virou benquisto na massa xeneize ao continuar a marcar em série no Superclásico. No Torneio Nacional de 1982, fez dois em um inapelável 5-1. Ainda faria outros cinco gols no arquirrival, incluindo os três em um 3-0 amistoso em 1984. Era nesse embalo que se mantinha na seleção, embora a princípio não soubesse o que era vencer.

Aquele jogo de 24 de agosto de 1983 foi um desafogo também individual para Gareca, pois enfim ele vencia pela seleção, já na sexta partida por ela. Aos 10 minutos do segundo tempo, Tita perdeu a bola, que sobrou para o atacante. Diante de três brasileiros, ele fez passe lateral a Burruchaga e disparou à meia-lua. Burruchaga devolveu-lhe de primeira entre toda a atrapalhada defesa brasileira. Gareca venceu a corrida e fuzilou Leão. Golaço.

Após aquela partida, Gareca acumulou mais quatorze jogos entre o fim de 1983 e todo o ano de 1984 pela seleção, marcando mais três vezes, no 1-0 contra Índia, no 3-0 sobre a Hungria e em um 1-1 com o México. Perdeu espaço para Pedro Pasculli, revelação do Argentinos Jrs campeão argentino pela primeira vez (em 1984) e Jorge Valdano, da ascendente Quinte del Buitre do Real Madrid.

Gareca por Boca, River, Independiente e Vélez. Conseguiu títulos onde menos jogou, por River e Independiente

Nas eliminatórias para 1986, Gareca acabou jogando só duas vezes, saindo do banco contra Venezuela e naquele jogo dramático contra o Peru, que vencia em pleno Monumental de Núñez e ameaçava a novamente eliminar os hermanos – algo que haviam conseguido nas eliminatórias de 1970. Àquela altura, El Tigre havia virado a casaca, estando desde 1985 no River após meses sem receber no rival, traição jamais perdoada pelos xeneizes. Não ficou muito tempo nos millonarios; ainda em 1985, rumou ao forte narcofútbol colombiano a tempo de decidir a Libertadores de 1985 pelo América de Cali.

Bilardo havia treinado no futebol colombiano (incluindo a seleção local), mas a transferência tirou Gareca do radar. Para piorar, o América perdeu a final para o Argentinos Jrs, cujo maestro Claudio Borghi, estreado na seleção ao fim de 1985, acabou ficando com a vaga que poderia ter sido de El Tigre. “Estava no Chile, concentrado com o América. Os meios colombianos já me davam dentro da lista, mas não me chamavam ninguém da Argentina. Em um momento entrei no refeitório, e todos os muchachos fizeram um silêncio… vieram e me contaram. Depois fui ao quarto e chorei como um condenado”, contou sobre como soube da não-convocação.

Ao fim, Gareca teve uma carreira digna ainda que prometesse mais, o que se simboliza por transferências inoportunas: saiu do River após dois jogos no início do campeonato de 1985-86, com o Millo prestes a vencer tudo em 1986 (incluindo a Libertadores sobre o América de Cali de Gareca, que ainda seria trivice dramaticamente em 1987 no torneio) e deixou o Vélez, clube do coração, ao fim de 1992 e no semestre seguinte o Fortín voltou a vencer o campeonato argentino após 25 anos, iniciando a era dourada velezana. Conseguiu, por outro lado, ser um bom reserva do belo Independiente de 1994, campeão argentino e da Supercopa.

Como técnico, El Tigre já acumulou os feitos da Copa Conmebol de 1999 após virada emocionante do Talleres no placar agregado, o segundo melhor ciclo da história do Vélez do coração (quatro títulos argentinos de 2009 a 2013 e uma semifinal de Libertadores). E agora quebra jejum peruano contra os brasileiros. Que na Blanquirroja consiga a vaga no mundial que escapou de ambos, seleção e Gareca, em 1986.

 

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

um × quatro =

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.