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No dia de São Patrício, conheça a influência irlandesa no futebol argentino

Juan Barbas na vitória em Dublin em 1980

A Argentina tem o campeonato nacional mais antigo do mundo fora do Reino Unido. Fato decorrente justamente da numerosa colônia britânica, que introduziu o campeonato em 1891 e responsável por todos os títulos até 1912. Até 1922, os irlandeses eram do Império Britânico e como tais participaram da difusão do football pelas margens do Rio da Prata. A influência da Ilha Esmeralda por lá já era bem antiga, presente na formação da própria República Argentina e, muito antes, da fundação de Buenos Aires (fundada em 1536 por Juan de Garay, cuja tripulação continha John e Thomas Farrell). No dia do santo padroeiro da ilha, vamos recordar um pouco da importância dela no futebol argentino.

William Brown veio da ilha para tornar-se o pai da marinha argentina, lutando nas guerras de independência e hoje sendo um dos ilustres enterrados do Cemitério da Recoleta, famoso por abrigar os restos de Evita Perón. Também conhecido como Guillermo (a versão espanhola do nome William) Brown, inspiraria mais de um clube de futebol. O mais notável é o Almirante Brown, da cidade de Isidro Casanova, na Grande Buenos Aires, e tradicional animador da segunda divisão.

A segundona também já teve recentemente o Brown de Adrogué, outra cidade da Grande Buenos Aires. E o Guillermo Brown, de outro canto do país, da Patagônia, cidade de Puerto Madryn (cujo nome remete às influências galesas na Argentina). Outros participantes ativos da independência foram Bernardo O’Higgins (chileno) e Juan Martín Pueyrredón, cujo sobrenome materno era O’Dogan e também jaz na Recoleta. O imigrante Eduardo O’Brien doou terras no interior da província de Buenos Aires onde hoje é a cidade de O’Brien; nela nasceu Fernando Cavenaghi.

Também ilustre “morador eterno” da Recoleta, Dalmacio Vélez Sarsfield foi um jurista de família paterna basca e família materna de origens irlandesas – nos países de língua espanhola, o sobrenome paterno vem antes do materno. É o pai do primeiro Código Civil argentino. Em Buenos Aires, há um bairro que leva seu sobrenome. Batiza também, é claro, o Club Atlético Vélez Sarsfield – sediado no bairro de Liniers, vale ressaltar. A influência direta do nome do clube, por sua vez, foi uma estação ferroviária também nomeada em homenagem ao jurista; conforme contamos na segunda-feira, os fundadores do Fortín eram latinos mesmo. Mas os celtas não deixariam de formar seu próprio clube…

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Brown de Adrogué contra o Almirante Brown (esquerda) e contra o Guillermo Brown (centro). À direita, William Brown

Os sobrenomes McKeon, Moore, Garrahan, Kirk, Burbridge, Seery, Geoghegan, Owens, Dolan, Lawlor, Walsh, Weir, Joyce e Slamon fundaram o Lobos Athletic, duas vezes vice-campeão no fim do século XIX. O clube ainda existe, mas se atrofiou: a cidade de Lobos fica a 100 km da capital federal e as demais equipes exigiram que a associação argentina estabelecesse um raio de 30 km partir de Buenos Aires para delimitar os participantes do campeonato. Falamos neste outro Especial: alguns remanescentes do Lobos reforçariam o lendário Alumni, então um coadjuvante que viria a ganhar dez títulos entre 1900 e 1911. Até hoje, só os cinco grandes (Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo) o superaram. O Vélez é justamente o outro único que o alcançou.

Outro foi o Porteño, que levava o nome do desacreditado cavalo cuja inesperada vitória em um turfe rendeu dinheiro que alguns apostadores usaram para adquirir bola e jogo de uniformes. Os fundadores do Porteño, do qual falamos neste outro Especial, tinham os sobrenomes O’Farrell, Gahan, Kenny, Geoghegan, Feliberg, Tyrrel, Dogherty, Aneil, Rath, Bowes, MacLean, Dillon e Cavanagh – aliás, Kavanagh é nome de edifício que chegou a ser o maior arranha-céu da América Latina. Situa-se em Buenos Aires no bairro de Retiro. Foi justamente do Porteño o último título seguido da comunidade britânica, em 1912. Ganharia mais um em 1914.

A taça quase nem veio; falamos aqui: foi em final contra o Independiente, que teria sido campeão nos critérios de desempate mas fez questão de um jogo-extra entre os dois líderes. Perdeu do Teño com direito a um gol anulado no fim, lance que gerou revolta nos Rojos, que se retiraram do campo. O Independiente poderia ter sido não só o primeiro time latino campeão argentino mas também o primeiro dos futuros cinco grandes. Acabou ficando só à frente do San Lorenzo nisso.

Como muitos clubes originários da comunidade britânica, o Porteño desativou seu futebol para focar-se no rúgbi. Enquanto ainda chutava bola redonda, teve jogadores na seleção. O volante J.B. Sheridan foi um deles e também vinha da comunidade irlandesa. Jogou duas vezes, em 1909 e em 1910, e se dedicaria posteriormente a outro esporte bretão, o críquete. Já outros do Porteño na seleção eram latinos mesmo. Eugenio Cacopardo a defenderia também como jogador do Boca. E o primeiro Brasil x Argentina, em 1914 (saiba mais), teve três jogadores do clube. Naquele duelo histórico, era o Porteño o clube mais representado no lado alviceleste!

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Paddy MacCarthy, Patricio Browne e o Porteño nos anos 20

Eles eram o ponta-esquerda Carlos Izaguirre, autor do primeiro e do terceiro gol do clássico (vencido por 3-0), o zagueiro Roberto González Escarrá e o atacante Antonio Piaggio, artilheiro do campeonato argentino de 1911. Piaggio e Izaguirre foram mantidos também para o clássico seguinte, que valeu a primeira Copa Roca. Foram acompanhados por outro atleta do Porteño, o goleiro Juan José Rithner, que foi na ocasião o capitão da Albiceleste (confira). Com o time já decadente, o defensor Juan Presta foi seu representante na primeira Copa América vencida pela Argentina, em 1921.

Naqueles primórdios do futebol argentino, um de seus entusiastas foi o árbitro Patrick “Paddy” MacCarthy. Os fundadores do Boca haviam aprendido com ele no Colégio Nacional. MacCarthy foi escolhido para apitar nada menos que o primeiro Superclásico do campeonato argentino, em 1913 (saiba mais). O irlandês também influenciou o Lobos e outras equipes hoje esquecidas mas muito fortes na época, como o Estudiantes de Buenos Aires (primeiro clube argentino que excursionou pelo Brasil, revelou Ezequiel Lavezzi e também foi oriundo do Colégio Nacional) e o Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires, sede da primeira Copa Roca e da primeira Copa América.

O volante Eduardo Duggan, o zagueiro Martín Murphy e o centromédio Patricio Browne, como Sheridan, foram outros da comunidade irlandesa presentes na seleção naqueles tempos. Duggan esteve inclusive no primeiro jogo oficial da Argentina, nos 6-0 sobre o Uruguai em 1902. Os três eram de clubes “britânicos” que se focariam no rúgbi: Duggan e Murphy eram do Belgrano Athletic, o único que conseguia rivalizar com o Alumni, clube de Browne. Browne foi capitão na primeira excursão da Argentina pelo Chile. Maçom como muitos integrantes do Alumni, foi um dos fundadores do Rotary Club de Buenos Aires.

Com a latinização, sobrenomes irlandeses rarearam entre os destaques do futebol argentino. O raçudo zagueiro José Luis Brown venceu a Copa do Mundo de 1986 com direito a gol na final, seu único pela seleção, e jogar com o polegar quebrado, apoiado sob improviso em um rasgo que fez na camisa. Em clubes, se destacou mais no Estudiantes. Outro zagueiro, Carlos MacAllister esteve cotado para ir à Copa de 1994 (esteve no álbum de figurinhas), quando era ídolo do Boca. Já contou, em 2004, que não tem nenhuma relação com suas origens, “mas me encantaria conhecer a Irlanda. Algum dia irei”.

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José Luis Brown na final da Copa de 1986, Carlos MacAllister (pelo Ferro Carril Oeste) e Dalmacio Vélez Sarsfield

MacAllister é o atual ministro de esportes, nomeado pelo recém-eleito presidente Mauricio Macri, ex-presidente do Boca. Enquanto tinha cabelo, possuía fios ruivos que lhe renderam o apelido de El Colorado. Eles e a camisa verdolaga do Ferro Carril Oeste, outro clube que defendeu, lhe davam uma aparência de leprechaun sem barba e chapéu. Já dedicamos a MacAllister este outro Especial. Mas o mais famoso jogador argentino com raízes na Irlanda, sem dúvidas, ironicamente não tem sobrenome da ilha: Alfredo Di Stéfano ficou mais conhecido pelo sobrenome italiano herdado do pai, mas a mãe, Eulalia Laulhé Gilmont, tinha origens francesas e irlandesas. Algo semelhante ocorreu a outro dos mais notórios argentinos de mesma origem de Edelmiro Farrell (o antecessor de Juan Domingo Perón na presidência argentina): Che Guevara. Ele era bisneto de Francisco Lynch, outro personagem das guerras de independência.

Por fim, a Argentina já enfrentou irlandeses algumas vezes e sempre saiu invicta. Contra a República, foram cinco jogos, todos em Dublin, em 1951 (1-0), 1979 (0-0), 1980 (1-0), 1998 (2-0) e 2010 (1-0). Contra a Irlanda do Norte, jogou só uma vez, sua única vitória na vexatória Copa do Mundo de 1958: 3-1. Ángel Labruna, autor do gol do primeiro encontro, é o único argentino que enfrentou as duas seleções.

A Albiceleste também já enfrentou três vezes uma seleção oficiosa da República, em 1978 na Bombonera (3-1) e em 1980 no Monumental de Núñez (1-0). Não era a seleção convocada pela federação de lá e sim um combinado de jogadores do incipiente campeonato local com alguns reforços. Outro jogo não-oficial foi contra o Linfield, uma das principais forças norte-irlandesas, em amistoso pré-Copa em 1990: vitória argentina por 1-0 em Belfast, em 3 de abril.

Se no futebol os encontros foram fáceis e de histórico morno, no rúgbi eles esquentam. A seleção do trevo foi a primeira do alto escalão a ser derrotada por argentinos. E houveram choques em quatro das últimas cinco Copas do Mundo: diante dos alviverdes os Pumas conseguiram pela primeira vez avançar à segunda fase, em 1999 (um dos hermanos mais vibrantes, ironia, tinha sangue celta: Santiago Phelan, posteriormente técnico no mundial 2011), e foi passando por eles que estiveram nas semifinais da de 2015. O atual capitão, aliás, é Agustín Creevy. Na bola oval, a comunidade irlandesa tem seu próprio clube, sugestivamente chamado de Hurling.

Saiba mais:

Escócia, terra fundamental ao futebol argentino

Quando George Best jogou na Argentina (e na Bombonera)

O último encontro contra a Irlanda, em 2010, e o único contra a Irlanda do Norte, na Copa de 1958. Clássico mesmo, só no rúgbi: êxtase puma na classificação de 1999 – o argentino de perfil, ao meio, é Santiago Phelan

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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