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Jaime Sarlanga, “O Piranha” e 2º maior artilheiro profissional do Boca

Pode um centroavante frágil, sem potência física característica dessa posição, e lembrado pelo refinamento a ponto de usar meias de seda por dentro dos meiões tornar-se um ídolo de uma torcida que tanto preza o aguerrimento sem frufrus? Jaima Sarlanga demonstrou que sim no Boca. Descrito como “inteligente, hábil, preciso, profundo, sutil. Um grande” pelo livro Quién es Quién en la Selección Argentina 1902-2010, Sarlanga, por outro lado, tinha um apelido “selvagem”, que cairia tranquilamente no gosto boquense: El Piraña. Este dândi brilhou conseguiu empilhar sete troféus em oito anos de Boca – e em uma década marcada pela tão falada La Máquina do rival River. Quinto maior artilheiro auriazul, faria hoje ontem anos.

O Piraña, convenientemente, nasceu às margens do delta de um rio, o Paraná, na cidade de Tigre. Na época, o clube de mesmo nome ainda se sediava naquela cidade e entre os rubroazuis Sarlanga se formou. Estreando profissionalmente no campeonato de 1935, exatamente na época da mudança para a cidade de Victoria, que desde então abriga a equipe. Sarlanga não chegou a exatamente triunfar no Matador. E em 1937 passou ao Ferro Carril Oeste, clube que não se notabilizava muito por priorizar o futebol e sim outras modalidades esportivas.

Foi justamente no Ferro que Sarlanga começou a se destacar. Fez quinze gols em uma campanha boa para os padrões verdolagas, um nono lugar, com destaque aos dois em um 4-1 sobre o San Lorenzo (campeão em 1936) em pleno estádio Gasómetro e a outro em um 3-1 no clássico com o Vélez. Era o centroavante de um ataque apelidado de La Pandilla, bastante celebrado no FCO: José Maril na ponta-direita, Alfredo Borgnia na meia-direita, Sarlanga de centraovante, Bernardo Gandulla na meia-esquerda e Raúl Emeal na ponta-esquerda. Fizeram 78 gols. O problema é que a defesa sofreu 79.

O clube do bairro de Caballito decaiu para 12º em 1938, mas Sarlanga fez sua parte, com 26 gols, incluindo na dupla Boca e River. El Piraña foi o artilheiro do elenco verdolaga e jogou em todas as partidas. Foi uma temporada curiosa: sabe-se que no futebol os atacantes estão mais propensos a lesões, mas os cinco homens com mais partidas pelo Ferro naquele ano foram exatamente aqueles cinco atacantes. Sarlanga esteve nas 32 rodadas, Maril e Emeal jogaram 31, Borgnia jogou 30 e Gandulla, 29. Como curiosidade, o preparador físico era Serafín Dengra, avô do jogador de mesmo nome da seleção argentina de rúgbi dos anos 80.

Em 1939, Gandulla e Emeal foram aliciados pelo Vasco, conforme contamos neste outro Especial. O Ferro se ressentiu e ficou em penúltimo, com destaque aos 5-2 sobre o Vélez, por décadas a maior goleada favorável ao FCO no Clásico del Oeste. Sarlanga deixou o seu e, apesar da campanha pobre, estreou naquele ano pela seleção. Foi em dois jogos contra o Paraguai em Assunção, em agosto: vitória por 1-0 e empate em 2-2 com gol dele. À exceção de Emeal, todos os atacantes da Pandilla jogaram pela seleção. Mas só Sarlanga conseguiu isso ainda como jogador do Ferro. Ao todo, fez 48 gols em 80 jogos por ele.

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Maril, Borgnia, Sarlanga, Gandulla e Emeal: “La Pandilla” do Ferro. Os dois últimos jogaram no Vasco

O Boca, que não era campeão desde 1935 – uma enormidade para quem havia vencido quatro vezes o campeonato entre 1930 e 1935, abriu o olho. E trouxe para si em 1940 Sarlanga, Gandulla e Emeal, trocados com o Ferro (ainda considerado dono do passe dos dois últimos) por Luis Laidlaw (que jogaria no Botafogo), Daniel Pícaro, Joaquín Corvetto e José Lizhterman. À Sarlanga cabia a responsabilidade extra de repor a aposentadoria precoce de um nome histórico: Francisco Varallo. Varallo, muito antes de se notabilizar como último sobrevivente da Copa do Mundo de 1930 (faleceu aos cem anos, em 2010), já estava marcado na história xeneize como seu máximo artilheiro profissional, mas lesões lhe abreviaram a carreira ainda antes dos 30 anos de idade.

Sarlanga substituiria o astro à altura. Seria justamente ele o segundo maior artilheiro profissional do Boca (e quinto no geral), mesmo sendo a antítese de Varallo: menos presença física e muita habilidade. Curiosamente, continuou usando o estádio do Ferro como casa: La Bombonera, que seria inaugurada naquele mesmo ano, ainda não estava completa e o Boca alugou por um tempo o estádio do FCO. Foi lá que Sarlanga estreou e marcou seu primeiro gol no novo clube. Por ironia, diante de Tigre e Ferro, respectivamente, fazendo valer a “lei do ex”.

No primeiro Superclásico na Bombonera, o Boca ganhou por 3-1 com gol de Sarlanga em uma rodada com dose extra de festa: os auriazuis se tornaram ali líderes isolados graças ao empate do perseguidor Independiente. O Rojo chegaria a impor a maior derrota da história xeneize, um 7-1 na 15ª rodada – foi de Sarlanga o “gol de honra”. Mas foi um imenso ponto fora da curva na campanha boquense. Já na rodada seguinte, a reabilitação estava mais do que evidente, com um 8-2 no Gimnasia LP. Seguiu-se um 4-1 no Atlanta, um 5-0 no Rosario Central em plena Rosario (e com dois daquele centraovante), um 4-1 no San Lorenzo e um 3-0 no Ferro, com Sarlanga marcando em todos.

O título, após meia década, acabou voltando com quatro rodadas de antecipação. E, doce vingança, com um 5-2 no Independiente, com dois de Sarlanga. Naquele 1940, ele também se destacou em uma das maiores goleadas do clássico platino, um 5-0 no Uruguai, com gol dele. A campanha de 1941, por sua vez, não foi tão empolgante. Mas rendeu um recorde a Sarlanga: seis gols em uma só partida, no 7-2 com o Atlanta, recorde que durou até 1974. A lesão que deixou El Piraña ausente por longos períodos foi creditada como responsável pela queda da performance boquense. Foi ali que La Máquina do River foi campeã pela primeira vez.

O River também venceu o torneio de 1942. Mas Sarlanga continuava prestigiado, a ponto de “nomear” um clube, feito raríssimo para um jogador ainda em atividade: o Piraña (campeão da quarta divisão em 1979), do bairro de Parque de los Patricios, foi assim nomeado pois o presidente era amigo do centroavante. Em 1943 e 1944, então, a taça foi do Boca. Detalhe: foi justamente nesses dois anos que a célebre linha rival Juan Carlos Muñoz, José Manuel Moreno, Adolfo Pedernera, Ángel Labruna e Félix Loustau mais vezes jogou junta. A taça de 1943 foi assegurada por apenas um ponto de diferença sobre o River.

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Boca de 1940, com braçadeiras negras em luto pelo recém-falecido presidente Bricchetto, quem implantara as cores auriazuis no clube. Os três últimos agachados são Sarlanga, Gandulla e Emeal, repetindo o trio do Ferro

O jogo do título foi justamente contra o Ferro, fora de casa para a maioria dos auriazuis, mas de atalhos bastante conhecidos por Sarlanga, que marcou os dois gols da vitória que valeu o título aos xeneizes. E ele virou versos de tango: “a bola baila no ar, Sarlanga a faz bailar”, canta-se em “Ropa Blanca”. Paralelamente, ele jogava pelas últimas vezes pela seleção. Sofreu com a concorrência de Herminio Masantonio, até hoje dono da mais alta média de gols pela Argentina dentre aqueles que a defenderam mais de dez vezes (fez 21 em 19 jogos). Mas as estatísticas de Sarlanga foram excelentes: sete jogos, cinco gols pela Albiceleste.

Mesmo com a concorrência fortíssima dos Millonarios, aquele Boca somou entre 1943 e 1944 uma invencibilidade seguida de 26 partidas, algo sem precedentes no futebol argentino e que só seria ultrapassado pelo histórico Racing de 1966-67 (que chegou nas 39). Em 1944, a volta olímpica se daria em pleno Monumental de Núñez, onde o Boca mandou a partida decisiva, contra o Racing, por ter a Bombonera interditada. Em 1945, enfim o River levaria a melhor no páreo, ainda que o Boca tenha vencido-o na reta final por 4-1. Sarlanga também deixou o seu nessa.

O centroavante também venceria copas nacionais prestigiadas da época: duas Copas Ibarguren, uma Copa Britânica, uma Copa Confraternidade. Mas depois de 1944 o Boca teria esperar dez anos para novamente ser campeão argentino, seu maior jejum até então. El Piraña deixou o clube em 1949, em meio à greve geral deflagrada no ano anterior.

Os jogadores chegaram a se sustentar enchendo estádios pelo interior, por combinados que reproduziam os uniformes dos clubes de origem. Posteriormente, esses jogos seriam contabilizados como oficiais – os dois últimos dos 128 gols de Sarlanga como auriazul foram em um 4-3 no San Lorenzo na cidade de Llavallol com o árbitro sendo o espanhol Isidro Lángara, antigo artilheiro azulgrana. O centroavante jogaria mais duas temporadas no Gimnasia LP antes de pendurar as chuteiras. Já não era o mesmo, deixando só cinco gols em 24 partidas pelo Lobo.

Quando o Boca voltou a ser campeão, em 1954, Sarlanga estava lá. Foi como assistente técnico de Ernesto Lazzatti, a quem substituiu após o título. De poucas palavras, porém, não ficou muito no cargo, despedindo-se em alto estilo em 29 de dezembro de 1955 – em um amistoso com o River, vencido por 5-2. A outra despedida do centroavante, eterna, também foi precoce: em 23 de agosto em 1966. Tinha apenas cinquenta anos.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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