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Nos 15 anos da João Havelange, relembre os argentinos do Vasco

Há uma década e meia atrás, o estado de espírito do torcedor vascaíno era muito diferente. Em menos de um mês, deu duas voltas olímpicas: em dezembro, pela épica virada sobre o Palmeiras na Copa Mercosul, último título internacional cruzmaltino. Em seguida, o clube decidiu a Copa João Havelange, mas o incidente em São Januário, ainda em dezembro, adiou a decisão para aquele 18 de janeiro de 2001. Nos  15 anos do último Brasileirão, vamos lembrar os argentinos da Colina. Dois deles, afinal, estiveram presentes no primeiro título internacional e no primeiro Brasileirão do Vascão.

Quando Vasco e Ferro Carril Oeste se cruzaram na Libertadores de 1985, com duas vitórias por 2-0 dos surpreendentes argentinos, um torcedor mais atento notaria que foi o reencontro de uma relação promíscua nos anos 30. A maioria dos primeiros hermanos do clube navegante veio da equipe ferroviária. Em 1934, o Vasco foi campeão com o lateral-direito Roque Calocero e o ponta-esquerda Salvador D’Alessandro (sem parentesco com o meia do Internacional) vindos dos verdolagas.

Calocero havia passado pela seleção – e D’Alessandro, também, mas para uma única partida que não foi oficial, por não ter sido contra outra seleção: curiosamente, foi por sinal contra o Flamengo, ainda em 1933, quando defendia o All Boys. E havia mais argentinos no elenco: o setor ofensivo também continha Valentín Navamuel (muitas vezes grafado erroneamente como Novamuel), ex-Estudiantes; Hugo Lamanna, ex-Independiente; e Esteban Kuko, ex-Boca e outro com passagem pela seleção argentina. Mas na campanha apenas D’Alessandro foi titular, marcando gols nos clássicos contra Fluminense (em dois dérbis, um deles vencido por 4-1 com Lamanna fazendo outro) e Botafogo. Por isso, consideramos mês passado que o clube brasileiro que abriu as portas aos argentinos foi o America-RJ, que naquele mesmo 1934 usou regularmente sete vizinhos – ou melhor, America-DF, quando a cidade do Rio de Janeiro era separada do Estado homônimo, sendo até 1960 o Distrito Federal.

D’Alessandro, apesar do destaque, voltou à terra natal (curiosamente, para defender o Argentinos Jrs, o outro oponente argentino do Vasco na Libertadores de 1985, da qual seria campeão com direito a um 2-1 em São Januário na campanha). Lamanna sairia em 1935, ao Talleres de Remedios de Escalada. Mas alguns colegas remanesceriam e sairiam da reserva: Kuko, que ficaria até 1937, e Calocero, mantido até 1940, foram titulares na conquista de 1936. Já Navamuel se manteria na colônia lusitana, dessa vez na Portuguesa-RJ. Na década seguinte, seria técnico campeão no Sport Recife.

D’Alessandro, importante em 1934; Kuko e Calocero, ambos com passagem pela Argentina, campeões em 1934 e 1936 e com certa longevidade

Sobre esse período 1935-36, algumas fontes indicam que o goleiro Panello, apelido de Cândido Diegues do Marco, seria argentino, mas a nota de uma missa fúnebre em seu nome em 1942 revela parentes com sobrenomes lusófonos (como “Igreja”). Outras apontam que o ponta-esquerda Luna, apelido de Benedito Arouca, também seria hermano, mas notícias da época o apontam como paulista. Mas o Vasco continuou aderindo em massa ao Platinismo no fim da década. Em 1937, veio Marcelino Pérez, filho de espanhóis nascido na Argentina, crescido no Uruguai e jogador da seleção uruguaia.

O clube já havia sido treinado pelo uruguaio Ramón Platero nos anos 20 e em 1938. Outro charrua, Carlos Scarone, manteve a linha platina: aos também celestes Segundo Villadoniga e Emanuel Figliola se juntaram em 1939, de uma vez, quatro jogadores da fonte primária na Argentina, o Ferro Carril Oeste – o zagueiro José Agnelli, o volante José Dacunto, o ponta-esquerda Raúl Emeal (reserva da seleção vencedora da Copa América de 1937) e o meia-esquerda Bernardo Gandulla. Scarone teria tentado ainda trazer Francisco Varallo, cujas lesões haviam provocado sua aposentadoria precoce no Boca – Varallo ficaria conhecido como último sobrevivente da Copa 1930, falecendo aos cem anos, em 2010.

Já o quarteto vinha jogando sem contrato havia dois anos no FCO, mas os verdolagas protestaram perante a FIFA. Para complicar ainda mais, o Boca semanas depois anunciou ter comprado Gandulla e Emeal. Para não perder pontos no tapetão, o Vasco se absteve de usá-los por alguns meses e ficaria só em 6º. Com o tempo, surgiu a história de que Gandulla, para ajudar o time de alguma forma enquanto não atuava, se prontificava a repor as bolas que saíam do campo, originando aí a palavra “gandula” para os garotos que desempenham a função – na Argentina, o equivalente é uma expressão mais literal, alcanzapelotas.

Na realidade, a palavra “gandula” já era empregada no mesmo sentido antes do argentino chegar, mas teria se popularizado por causa do alcance a nível nacional do clube e do futebol carioca. El Nano Gandulla era o grande artilheiro do Ferro, que sem ele ficou apenas em penúltimo naquele 1939. O quarteto, por meio de interdito proibitório, conseguiu via justiça a liberação para atuar no Vasco, mas só Dacunto ficaria por mais tempo, saindo em 1943 para defender o Palmeiras. Agnelli logo iria ao Santos e anos depois viraria técnico rodado no interior paulista (venceu a Série A-2 de 1956 com o Botafogo-SP). Já Gandulla, que chegou a marcar em um 2-2 com o Botafogo, e Emeal acabariam indo mesmo ao Boca no início de 1940, após os auriazuis fazerem um acerto com o Vasco.

Gandulla, que virou folclore. À direita, o uruguaio Villadoniga, Dacunto, Gandulla e Emeal (esta é a ordem correta): o Vasco bem platino nos anos 30 e ainda um pouco nos 40

Já um Flamengo também cheio de argentinos havia sagrado-se campeão. Um deles virou a casaca em 1940: o meia Alfredo González. Do Santos, veio o goleiro Américo Menutti, ex-Platense. Só González foi titular, marcando em todos os clássicos (um cada em três contra o Flamengo; um na derrota de 6-2 para o Fluminense, maior derrota para o tricolor; e três no Botafogo, dois deles em um 4-0). Faltou-lhe só dois pontos para o título em 1940 e três em 1941, indo depois ao Botafogo. O hermano seguinte veio da segundona argentina em 1943. Disputado também pelo River, o zagueiro Ramón Rafanelli saiu do Unión de Santa Fe, importado por outro técnico uruguaio, Ondino Viera – o platinismo continuava em vigor, tendo-se ainda o uruguaio Sebastián Berascochea.

Rafanelli (grafia que consta no seu visto de entrada no Rio, embora na Argentina seja conhecido como Rafagnello e no Brasil, como Rafagnelli) integraria o “Expresso da Vitória”, desfazendo em 1945 o jejum estadual pendente desde 1936, ganhando outro em 1947 e levantando em 1948 o Sul-Americano – torneio que a Conmebol equiparou oficialmente à Libertadores em 1997. Sua ausência na partida decisiva com o River deveu-se ao temor de que fosse sentir-se intimidado com os astros da terra natal, mas Rafanelli era do time-base titular. Zagueiro limpo, receberia o prêmio Belfort Duarte. Teria destaque também no Bangu, que o contratou para substituir a lenda Domingos da Guia e onde foi vice em 1951.

Outro argentino no Expresso era reserva: o goleiro Pablo Herrera, mais um ex-Ferro Carril Oeste. Barbosa era o titular absoluto e Herrera só atuava pelo chamado Expressinho, mas atuou em uma partida do Estadual de 1952, a última taça do Expresso da Vitória. Goleiros, aliás, continuaram a ser a posição mais buscada. Em 1968, Néstor Errea atuou em alguns jogos, sem se firmar. Veio sob empréstimo do Boca, onde já havia sido vice da Libertadores de 1963, mas onde perdera a titularidade para Rubén Sánchez. Também não a encontraria no Vasco, tapado por Pedro Paulo.

O Vasco, curiosamente, tentou trazer junto com Errea o ponta-esquerda Juan Ramón Verón, pai de Juan Sebastián e grande craque do Estudiantes tri da Libertadores em 1968 e 1970. Foi justamente por ir se classificando seguidamente na primeira delas que o clube de La Plata recusou-se a ceder Verón pai. O time, por sinal, seria o destino de Errea, titular na vitoriosa Libertadores de 1970. Antes, em 1969, vieram sob empréstimo o atacante Mario Chaldú e o goleiro Edgardo Andrada. Chaldú, presente na Copa de 1966, ficou só por alguns treinos, pois o Racing queria vendê-lo.

González e Conca tiveram desempenho interessante, mas se deram melhor em camisas rivais. Guiñazú, que chegou a ser capitão, foi o argentino mais longevo no novo século. O problema foi o bi-rebaixamento

Já Andrada, do Rosario Central, era o goleiro titular da Argentina na época e sua contratação foi muito elogiada. Passou o desgosto de levar naquele mesmo 1969 o milésimo gol de Pelé (em pênalti duvidoso quase defendido pelo rosarino), mas ao menos nos anos seguintes foram as suas qualidades que o deixariam reconhecido: o Vasco desfez em 1970 um jejum estadual de doze anos. Em 1971, o argentino recebeu a Bola de Prata como melhor goleiro do Brasileirão, torneio que ele ajudou os cruzmaltinos a ganhar pela primeira vez, em 1974. Ficaria ainda mais um ano na Colina, indo ao Vitória em 1976.

Apesar do sucesso de Andrada, o Vasco, que teria sido defendido por Narciso Doval (clique aqui e confira) em um amistoso, só voltaria no século XXI a contratar argentinos. Revelado pelo Vélez, o zagueiro Emiliano Dudar ficou marcado negativamente por duas cobranças perdidas em decisões por pênaltis no Estadual de 2007, ano da chegada do meia Darío Conca desde o Rosario Central.

Ainda que de forma irregular, Conca demonstrou qualidade. O clube ficou a seis pontos de se classificar à Libertadores e o Fluminense abriu o olho para aproveitar aquele diamante não lapidado, levando-o no ano seguinte às Laranjeiras (junto de outro destaque daquela campanha, o atacante Leandro Amaral) enquanto os ex-colegas cruzmaltinos despencavam pela primeira vez à segunda divisão.

A Colina ainda receberia Matías Palermo (2010, ex-Independiente, passaria pelo Bonsucesso), Leandro Chaparro (2011, ex-San Lorenzo), Matías Abelairas (2012, ex-destaque no River), sem êxito, até contar com um trio em 2015: o volante Pablo Guiñazú, o meia Emanuel Biancucchi e o atacante Germán Herrera. Guiñazú, que já havia sido rebaixado em 2013, voltou a afundar com a nau vascaína em 2015, não repetindo a mesma confiança de seu auge no Internacional. Biancucchi, primo de Messi, irmão do ex-flamenguista Maxi Biancucchi (e ex-reserva do Olimpia vice da Libertadores 2013), e o ídolo botafoguense Herrera sequer foram titulares na queda. Também sem sucesso foi a passagem do técnico argentino Nelson Filpo Núñez, em 1960.

*Com agradecimentos ao amigo Esteban Bekerman, historiador do futebol argentino e diretor da Entre Tiempos, única livraria de Buenos Aires voltada exclusivamente ao futebol.

Com este especial, encerramos uma série sobre argentinos nos grandes cariocas. Clique para conferir os de America, Bangu, Botafogo, Flamengo e Fluminense. Também já dedicamos um ao Sul-Americano de 1948: clique aqui.

Atualização em 01-03-2016: neste dia, Gandulla faria cem anos e lhe dedicamos este outro Especial.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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