Primeira Divisão

Jorge Gibson Brown, o primeiro jogador-símbolo da seleção argentina

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1936, em tese, começou triste para o futebol sul-americano. Há exatas oito décadas, em 3 de janeiro de 1936, faleceu Jorge Gibson Brown, todo um símbolo dos primórdios da seleção argentina e do clássico com o Uruguai, as duas grandes forças iniciais do esporte no continente – jogou pelo país tanto como atacante quanto como zagueiro! A família Brown e seu clube, o Alumni, foram o primeiro “celeiro” da Albiceleste. Jorge Brown foi o ás entre os ases do futebol argentino na alvorada do século XX.

“A seus dotes de jogador, por exemplo a velocidade e prestatividade no jogo físico, se somava um cavalheirismo e um sentido de posicionamento que o faziam ser respeitado por próprios e estranhos. Deve-se considerá-lo o patriarca dos futebolistas alvicelestes. À distância, sua figura se agiganta e ingressa no Olimpo dos grandes de todos os tempos” é o comentário no perfil dedicado a ele no livro Quién es Quién en la Selección Argentina 1902-2010, de Julio Macías.

Jorge Brown esteve na primeira partida dela, em 1902, marcando gol naqueles 6-0 no Uruguai, e foi o recordista de jogos por ela até 1910. Em 1895 e 1896, jogou pelo Palermo Athletic e de 1897 a 1899, no Lanús Athletic, ambos os extintos. Em 1900, passou a competir pelo Alumni, que viraria uma máquina. Nascido na cidade de Jeppener em 3 de abril de 1880, Jorge foi duas vezes artilheiro do campeonato argentino, em 1901 e 1902.

A dinastia prosseguiu: o irmão Alfredo Brown foi o artilheiro de 1904 e outro irmão, Eliseo Brown, emendou quatro seguidas (só Maradona conseguiu mais vezes) de 1906 a 1909. O primeiro a superar Jorge em jogos pela Argentina foi seu primo Juan Brown, com quem fazia dupla de zaga desde 1906, quando a idade já pesava em Jorge. Juan Brown foi o último da família (unida também na maçonaria), jogando pela seleção até 1916, como o único que chegou a disputar a Copa América – realizada naquele ano pela primeira vez.

O Alumni  venceu dez campeonatos entre 1900 e 1911, quando participou pela última vez do Argentinão. Nesse período, foi adversário obrigatório de toda excursão transatlântica (Southampton em 1904, Nottingham Forest em 1905, África do Sul em 1906, Everton e Tottenham Hotspur em 1909). Foi oficialmente dissolvido em 1913; não era um clube autossustentável, repassando seus dividendos à caridade. Jorge Brown foi um dos pouquíssimos participantes dos dez títulos da equipe, cujo uniforme de camisa alvirrubra e calções e meias negras foi copiado pelo Estudiantes de La Plata e inspirou indiretamente até o da seleção uruguaia.

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O Alumni: Jorge é o segundo, sentado no corrimão. À direita, os seis Brown retratados na Caras & Caretas. A caricatura de Jorge está no canto superior esquerdo

Um River Plate uruguaio, já extinto (sem ligação com o River atual de lá) usava roupas parecidas e em razão disso usou uma camisa celeste ao enfrentar o Alumni, para evitar confusões. A combinação deu certo, com os uruguaios vencendo. Para honrar a façanha e provocar levemente a seleção argentina, tão abarrotada com jogadores do lado derrotado (a Argentina chegou a usar oito jogadores do Alumni de uma só vez), a seleção uruguaia adotaria aquele uniforme improvisado, mesmo de cores ausentes de sua bandeira. Já o River argentino foi um dos poucos grandes que chegaram a enfrentar o Alumni. O outro foi o Racing – já que Boca, Independiente e San Lorenzo só estreariam na elite após 1911.

A vitória riverplatense em 1909 sobre a família Brown na casa adversária tem um capítulo especial na enciclopédia millonaria, lançada em 2002. Foi na primeira temporada do River na elite argentina e foi considerada um cartão de visitas. E também uma vingança: no primeiro turno, o oponente se trocou nas instalações do clube de regatas La Marina. Os novatos se sentiram ofendidos, como se suas próprias instalações, preparadas com esmero, houvessem sido consideradas indignas. Por outro lado, o uso de seu jogador Arturo Chiappe no lugar de Juan Brown na seleção em 1916 ainda é usado para glorificar Chiappe. Já o Racing só abriu seu recordista heptacampeonato seguido (1913-19) justamente após ver-se livre do Alumni.

Quando o Alumni parou de jogar (como campeão, em 1911), muitos remanescentes se juntaram ao Quilmes, que com esse reforço foi campeão em 1912 – os Cerveceros só venceriam o Argentinão uma outra vez, muito tempo depois, em 1978. Jorge Brown não chegou a ter participação na campanha, ainda que tenha jogado algumas vezes pelo Quilmes e permanecendo regularmente nas convocações da seleção.

Mas já não era o mesmo: metade das oito derrotas que amargou vieram nas últimas cinco partidas oficiais, a última em 1913. Ele ainda atuou pela Albiceleste em 1914, em jogo não-oficial da excursão do Torino pela América do Sul (viagem que inspirou a fundação do Palmeiras). Na última vez da dupla Jorge e Juan, venceram: 2-1. Jorge Brown despediu-se do futebol atuando pelo Belgrano Athletic, a única equipe que conseguia fazer alguma frente ao Alumni (venceu três campeonatos, em 1899, 1904 e 1908), de quem era rival também de bairro: o Alumni era oriundo da English High School, endereçada no bairro de Belgrano.

O ano de 1916 marcou o fim da dinastia: tanto o Belgrano Athletic de Jorge como o Quilmes de Juan foram rebaixados. Exatamente cem anos depois, porém, a força da família ainda se faz valer, pois somente os cinco grandes (Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo) ultrapassaram as dez taças do Alumni – com todos sendo beneficiados por tempos onde ocorreram dois campeonatos por ano.

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Jorge no enterro do primo Juan. À direita, seu próprio obituário na Caras & Caretas, destacando o crescente desrespeito no futebol argentino e à falta de reconhecimento das federações argentina e uruguaia

Com o rebaixamento, o Belgrano largou ali ao futebol para focar-se no rúgbi e Jorge fez o mesmo – já havia registros de que praticava a bola oval em 1910, estando em uma escalação do Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires. No fim da vida, ele se revelava desgostoso com as mudanças advindas com o fim da era britânica no futebol argentino, simbolizada pelo heptacampeonato de um Racing trajado com as cores argentinas. Duas declarações suas são mesmo características de um jogador de rúgbi, um esporte de contato intenso que ao mesmo tempo preza pelo respeito às regras, adversários e juízes.

A primeira, de 1921, foi dada à revista El Gráfico, a maior do país, fundada em 1919 e ainda existente (Jorge e Juan apareceram em uma capa em 1923): “o futebol que eu cultivei era uma real demonstração de dureza e energia. Um jogo mais brusco, porém viril, bonito, vigoroso. O futebol moderno está enfraquecido por um excesso de passes próximo ao gol. É um jogo que está mais fino, talvez mais artístico, até aparentemente mais inteligente, mas perdeu seu entusiasmo primitivo. É importante manter em mente que o futebol não é um esporte delicado… é um jogo violento e forte”.

A outra, com uma linha também elitista, foi dada à revista Caras & Caretas nos anos 30: “no meu tempo, o jogo era um esporte para pessoas cultas. Que se pode fazer para que o futebol se jogue como se jogava antigamente? Não há nada a se fazer… os cavalheiros que em meu tempo haviam jogado futebol hoje jogam o polo ou o rúgbi. Meus filhos jogam o rúgbi e o polo, mas eu, vendo a difusão que está tomando o rúgbi, lhes advirto: ‘tenham cuidado, muchachos; tratem de fazer que o rúgbi não se torne demasiado popular porque senão…”. A bola oval passou a ser o novo foco do Alumni também, revivendo nela os clássicos com o Belgrano Athletic, e de outros dos primeiros clubes de futebol argentinos (como o Buenos Aires FC e o Lomas Athletic).

A prática esportiva não livrou os Brown de mortes precoces, em um tempo no qual a expectativa de vida era bem mais baixa. A maioria faleceu por volta dos 50 anos. O primeiro foi Carlos Brown (o menos recordado dos irmãos, mas sondado para se profissionalizar quando foi estudar na Escócia das raízes muito antes do fim do amadorismo argentino), em 1926, aos 48 anos. O primo Juan morreu em 1931, com 43 anos. Ernesto, em 1935, aos 50. Jorge partiu a exatos três meses do 56º aniversário.

Só Alfredo (em 1958, aos 72 anos) e Eliseo (nascido em 1888, viveu até os anos 70 embora tenha até lutado na Primeira Guerra Mundial nas tropas britânicas) conseguiram mais longevidade. O falecimento de Jorge deveu-se a uma doença não mencionada pela citada Caras & Caretas. Que publicou um obituário consternado, sentimento não compartilhado pelas associações argentina e uruguaia, criticadas pela revista por não se fazerem representar nas despedidas – daí o “em tese” no início da nota. O respeito à história o Futebol Portenho teve, conforme diversos outros especiais abaixo:

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A El Gráfico de 1923 com Juan e Jorge

Escócia, terra fundamental ao futebol argentino

Familiares na Seleção Argentina – Parte 1: os Brown

Há 115 anos, acabava uma era. E logo começava outra

Futebol e Rugby – Parte 4: o Asociación Alumni

100 anos sem o multicampeão Alumni

110 anos do Clássico do Rio da Prata (e da Seleção Argentina)

105 anos da estreia da camisa alviceleste na seleção

100 anos do primeiro título do Quilmes e o fim de uma era

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Pela seleção: contra o Uruguai e na excursão ao Brasil, em 1908 (penúltimo jogador em pé)

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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