Há 70 anos, a taça do River não foi de La Máquina. Foi dos “Cavaleiros da Angústia”
Imagine que um time consegue ser campeão tendo apenas o sexto melhor ataque do campeonato, com até o nono colocando tendo marcado mais gols. Isso é um belo demonstrativo de quão dourada era a geração argentina dos anos 40, a quem a Segunda Guerra Mundial privou de maior reconhecimento mundial. Esse fato incomum ocorreu no campeonato de 1945, rendendo o sugestivo apelido de Los Caballeros de la Angustia aos campeões, craques outrora imortalizados como La Máquina.
Algum time ter mais gols que o campeão não era algo bizarro naqueles tempos. Isso até ocorreu com o primeiro título de La Máquina, o de 1941. Na ocasião, ela fez 75 gols. Mas apenas dois clubes fizeram mais, e não muito mais (Newell’s, o 3º, fez 78; Estudiantes, o 8º, fez 77). Nesse campeonato, ainda vigorava a primeira linha ofensiva da Máquina: Juan Carlos Muñoz, José Manuel Moreno, Adolfo Pedernera, Ángel Labruna e Aristóbulo Deambrossi.
O outro título de La Máquina foi o torneio seguinte, em 1942. Deambrossi ainda foi o ponta-esquerda titular na maioria dos jogos, mas Félix Loustau já começava a roubar sua vaga, atuando em doze das 30 partidas e se firmando desde então como a última peça a se encaixar na linha de ataque mais famosa de La Máquina e do futebol argentino: Muñoz, Moreno, Pedernera, Labruna e Loustau. Dessa vez, não teve para ninguém: 79 gols, nove à frente do segundo melhor ataque. E seis pontos de diferença para o vice, em época onde a vitória valia dois e não três pontos.
Mas a geração argentina era mesmo dourada. Quando o quinteto ofensivo mais famoso enfim atuou junto do início ao fim, ficou no vice para o arquirrival. O Boca ganhou em 1943, por um ponto, e em 1944 ,por incríveis 14 gols a mais. Para piorar, Moreno, por vezes considerado o mais habilidoso jogador argentino da história (ou ao menos o maior da primeira metade do século XX), deixou o clube para jogar no futebol mexicano. Seu lugar na meia-direita seria ocupado por Alberto Gallo.
Para a história (não na época), porém, as novidades mais marcantes foram outras três. Foi um torneio histórico por promover a estreia de três dos maiores jogadores do clube e também do século passado. O primeiro apareceu na terceira rodada, justo contra o clube que torcia na infância: Amadeo Carrizo foi usado contra o Independiente no lugar do peruano José Soriano. Já em sua primeira jogada foi aplaudido por todos: o adversário Norberto Pairoux tentou empurrá-lo com bola e tudo para dentro do gol.
Carrizo, astuto, não impediu que a maior parte do corpo ultrapasse a linha, mas então ficou firme no chão com as mãos segurando a bola fora do limite do cal. Camilo Cerviño abriu o placar para os rojos aos 17 minutos, mas no minuto seguinte Labruna empatou de pênalti e a doze minutos do fim Gallo virou. O estreante, porém, não se firmaria de imediato. Atuou só uma outra vez e após a aposentadoria de Soriano quem foi Héctor Grisetti (também de dois jogos na campnha) o titular por uns anos.
Na 10ª rodada, estreou o volante Néstor Rossi. Foi na vaga de Manuel Giúdice, então estrela recém-contratada do Huracán. Foi um 2-0 sobre o Racing em plena Avellaneda, gols de Labruna (outro de pênalti, aos 19) e Loustau (aos 30 do segundo tempo). Rossi logo demonstrou personalidade, jogando nove partidas, firmando-se no ano seguinte como titular. Na 12ª, foi a vez de Alfredo Di Stéfano. Foi improvisado na ponta-direita, no lugar de Muñoz. O River perdeu: 2-1 para o Huracán (dois gols de Juan Carlos Salvini para o oponente, com Gallo descontando). Di Stéfano não jogaria outra vez e acabaria emprestado ao próprio Huracán no ano seguinte.
Os três novatos aparecem na foto dos campeões, que reuniu titulares (sentados) e reservas (em pé). Atrás, Héctor Ferrari, Roberto Coll, Daniel Sternberg, Joaquín Martínez (avô de Juan Manuel Martínez, ex-Corinthians e Boca), Di Stéfano, Rossi, Deambrossi, Carrizo, Grisetti, Eligio Corbalán e Santiago Kelly; na frente, Ricardo Vaghi, Eduardo Rodríguez, Norberto Yácono, Giúdice, José Ramos, Soriano, Muñoz, Gallo, Pedernera, Labruna e Loustau. O último em pé, com casaco azul, é o ex-jogador Carlos Peucelle, vice na Copa de 1930 (fez gol na final) e considerado o pai de La Máquina.
Os Cavaleiros da Angústia foram assim apelidados porque o elenco sobrava em campo, mas simplesmente não tinha tanto ímpeto ofensivo. Tocava, tocava e tocava a bola pacientemente até enfim fazer algum gol. Ganhava por diferenças mínimas ao invés de golear. Só registrou quatro vitórias por mais de dois gols de diferença: 4-0 no Ferro Carril Oeste, 5-2 no Platense, 5-1 novamente no Ferro Carril Oeste e 4-1 no Rosario Central. E só em outras três partidas fez pelo menos três gols: 3-1 no Vélez, 3-2 no Independiente, 3-1 no Huracán.
A fria eficiência foi mesmo a marca daquele time. Foi justamente aquele River “chato” que conseguiu a maior série de vitórias seguidas até então vista no profissionalismo. Foram nove, curiosamente após terem perdido na estreia (3-2 para o Newell’s): aqueles 3-1 no Vélez, 2-1 no Independiente (o da estreia de Carrizo), 2-1 no San Lorenzo, 2-0 no Lanús, os 4-0 no Ferro, 2-1 no Gimnasia LP, 1-0 no Rosario Central, 2-0 no Atlanta e os 2-0 no Racing na estreia de Rossi.
A série acabou com um empate em 2-2 com o Estudiantes. No embalo dela, o River terminou como líder no primeiro turno, dois pontos à frente do Independiente. No segundo turno, o perseguidor maior seria o Boca, que até goleou por 4-1 no Superclásico na antepenúltima rodada. Não adiantou: justamente na penúltima, naquele 25 de novembro de 1945, o River garantiria a taça. Ela veio após vitória por 2-0 sobre o Chacarita (gols de Loustau e Labruna) enquanto o arquirrival perdia para o Rosario Central. Abriu-se então uma inalcançável diferença de quatro pontos.
O título nacional, pelo número de vitórias, foi justo: ninguém venceu mais que o River, vinte vezes. A taça repercutiu na seleção argentina que dali a dois meses disputaria nova Copa América. Se o quinteto ofensivo mais famoso de La Máquina nunca esteve todo junto pela Albiceleste, o mais perto que isso ocorreu foi com três remanescentes convertidos em Caballeros de la Angustia: Pedernera, Labruna e Loustau foram titulares e a Argentina, campeã, com Labruna de vice-artilheiro. .
Já o River fez só 66 gols. Para se ter uma noção, o vice Boca venceu 18, fazendo 71 gols; o 3º Independiente, 17 e 68; o 4º San Lorenzo, 15 e 67; o 5º Huracán, 17 e 76, tendo o melhor ataque (dez em um só jogo, em sua maior goleada: 10-4 no Rosario Central. Foi o ano da despedida de seu maior artilheiro, Herminio Masantonio, terceiro maior goleador do Argentinão), mas atrapalhado pela defesa vazada 61 vezes – paradoxo ainda maior no 9º Vélez, que fez 69 gols mas levou 70. Sua defesa foi superior apenas à do rebaixado, o tradicionalíssimo Gimnasia LP, que caía pela segunda vez em dois anos e contrataria o mitológico são-paulino Antonio Sastre para subir novamente.
1945 foi um ano de mudanças. Foi o primeiro torneio onde o Chacarita atuou em sua sede atual, a cidade de San Martín, deixando o bairro de Villa Crespo, ainda que isso não tenha extinguido o Clásico de Villa Crespo (rivalidade ainda acesa setenta anos depois com o Atlanta, que permaneceu no bairro). Também teria mudanças no campeão: Moreno voltou e assim o quinteto famoso esteve reunido pelas últimas vezes, mas Muñoz não recuperaria a titularidade ao se lesionar em 1946, perdendo-a para Hugo Reyes. Assim, os gols baixaram para 58 e a colocação, para terceiro, enquanto o campeão San Lorenzo (para delírio do jovem Papa Francisco), marcava 90 gols.
Foi necessário esperar até 1947 para o torcedor do Millo voltar a vê-lo ser campeão encantando. Pedernera saíra para o Atlanta, mas seu lugar foi brilhantemente ocupado por Di Stéfano, amadurecido após jogar no Huracán do melhor ataque de setenta anos atrás (no torneio de 1946, ele inclusive fez dois gols em um 3-2 no clássico com o campeão San Lorenzo na casa rival, para os olhares do jovem papa). Foi a vez do River marcar 90 gols, no embalo da revelação Di Stéfano, artilheiro do certame, e seis pontos de diferença para o vice Boca, como nos bons tempos de La Máquina. Mas isso é outra história. Que já contamos, neste outro Especial.
Para saber mais dos grandes craques daquele River, clique nos especiais abaixo:
Labruna, o maior símbolo do River
Pedernera, o maestro de “La Máquina” do River
Moreno, o melhor jogador argentino da 1ª metade do século XX,
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