Entrevista com João Cardoso, o brasileiro campeão da Libertadores e mundial pelo Racing
A Libertadores 2015 ainda está viva. A de 1967, para a fiel torcida racinguista, também. Há quase meio século, o Racing era o mais poderoso time argentino não só pelo momento, mas pelo histórico. Além de conseguir naquele ano o primeiro título mundial do futebol argentino, a Academia era o segundo clube mais vezes campeão nacional, tendo só uma taça a menos que o Boca. Eram os áureos tempos da Equipo de José, a equipe do técnico Juan José Pizzuti, dona também de um recorde de invencibilidade de 39 jogos seguidos (só o Boca de Carlos Bianchi superou: somou 40). Um brasileiro a integrava, e de forma decisiva: João Cardoso, autor de gol na vitoriosa finalíssima da Libertadores.
Ex-gremista, Cardoso vinha justo do rival Independiente e havia brilhado antes no Newell’s. O descobri nesta entrevista que ele concedeu ao saudoso Impedimento – com base nela até criei seu verbete na Wikipédia. Nesta, evitamos então fazer perguntas parecidas. Agradecemos profundamente não só ele como também sua filha Claudia, que proporcionou bate-papo dos mais divertidos, reproduzido a seguir – com algumas observações explicativas em off. Obrigado, Claudia!
Futebol Portenho: Quem era(m) seu(s) companheiro(s) mais próximo(s) naquele Racing? Ainda existe algum contato além das ocasiões festivas do clube?
João Cardoso: Rulli, Perfumo, Parenti, Villanova e Cárdenas. O único contato foi com o Rulli na festa de 40 anos [do título mundial] em Buenos Aires, 2007. Dos demais, não teve mais contato pessoal, aliás, nem com o Cejas, quando este jogou no Grêmio.
Cárdenas foi o autor do gol do título mundial e lhe dedicamos especial no mês passado, quando fez 70 anos: acesse aqui.
FP: Qual era o adversário que achavas mais complicado, seja clube ou jogador? E quem achavas o melhor jogador do país naquela época?
Cardoso: os melhores eram Humberto Maschio, ponta-esquerda [Racing], e Rattín [Boca]. O River Plate era o time mais complicado de jogar contra e o mais difícil adversário era o Daniel Onega, do mesmo time.
Onega é quem mais gols fez em uma única Libertadores, marcando 17 vezes na edição de 1966. Também iria bem no Racing e dedicamos a ele este outro Especial.
FP: O clássico rosarino se tornou o mais ferrenho do país, tanto que não tem um vira-casaca há mais de 30 anos. Mas até meados do século passado ele chegava a ter até uma cordialidade. No seu tempo por lá, ainda era uma rivalidade “normal”, sadia, ou já dava para sentir um certo grau extra?
Cardoso: Era uma rivalidade normal, tanto que alugávamos juntos uma casa eu e o Nelson López, jogador do Central na mesma época.
López chegou a jogar no Internacional e foi à Copa de 1966 como jogador do Banfield.
FP: Ángel Tulio Zof é considerado o maior técnico do Rosario Central, treinando os últimos 3 títulos do clube, mas curiosamente o primeiro time que treinou foi o Newell’s, em 1965. Do que você se lembra dele?
Cardoso: O Zof era um tipo de pessoa “arroz sem sal”, porque não xingava, não dizia nada para os jogadores, ficava quieto durante os jogos, dava instrução tranquilamente. A única instrução dele para mim: procura as costas do zagueiro, procura as costas do lateral. E eu dizia “mas já sei”.
Também já dedicamos um especial a Zof, falecido ano passado, campeão sobre o Atlético Mineiro na Copa Conmebol 1995 e quem promoveu o jovem Ángel Di María: clique aqui.
FP: Seu gol no clássico rosarino naquele mesmo 1965 deu a primeira vitória do Newell’s na casa do Central pelo dérbi depois de 9 anos. Do que se lembra daquela partida? Como foi o gol?
Cardoso: Foi escanteio, o Aguirre chutou e dei um pulo, uma cabeçada. Foi uma grande retranca, o Central era muito superior, favorito. A tática era “dez para atrás e ‘Joao’ à frente” – o argentino não fala o til. O Gironacci, goleiro do Newell’s, pegou tudo o que era bola e, milagrosamente, conseguimos um escanteio.
Se antes daquele jogo o Newell’s não vencia fora de casa o Central havia nove anos, depois dele demorou outros quinze. O gol foi sobre o futuro vascaíno Andrada. Naquele ano, Cardoso também fez os dois gols na vitória por 2-0 sobre o Estudiantes e outros dois em um 2-2 contra o campeão Boca na Bombonera. O brasileiro acabou contratado pelo detentor dos títulos mais recentes da Libertadores, o Independiente, bicampeão nela em 1964-65.
FP: Sua etapa no Racing é a mais conhecida carreira. Poderia então nos falar um pouco de sua passagem anterior pelo arquirrival? Como se deram a ida e saída do Independiente?
Cardoso: Fui contratado pelo Independiente em março de 1966, machuquei contra o Boca uns dois meses depois, quase perdi o pé. Engordei muito no período. Ao melhorar, corria pelo pátio da casa cheio de roupa para emagrecer, senão seria multado. A transferência para o Racing foi discreta e tranquila, fui vendido normalmente, sem problema nenhum. Quando vieram [o pessoal do Racing] falar comigo, já estavam acertados com o Independiente. Naquela época, até a rivalidade entre os clubes era normal. Quando a imprensa soube, eu já estava contratado pelo Racing.
FP: Você esteve perto de jogar a final da Libertadores de 1966 pelo Independiente, que sucumbiu em um quadrangular-semifinal que tinha nada menos que também Boca e River. O que lembra daquele momento?
Cardoso: Eu estava no auge da minha carreira, quando me lesionei [contra o Boca] e, dali, não joguei mais bosta nenhuma. O River venceu o quadrangular e acho que não era o Boca, porque a gente eliminou na Bombonera. Não lembro direito.
River e Independiente terminaram o quadrangular igualados na frente e precisaram fazer um jogo-extra, eis porque o Boca saiu da disputa. Naquele jogo, o mencionado Onega fez um dos gols da classificação do River à final, aliás.
FP: Aquele Racing de 1967 tinha outros vira-casacas em Avellaneda, como Mori e Raffo, e Maschio mais tarde foi campeão da Libertadores também no Independiente, como técnico. Havia então uma boa relação entre os rivais, em termos?
Cardoso: Naquela época, a rivalidade era normal, não se dava importância para estas mudanças de clube. Éramos bem vizinhos, os campos um ao lado do outro.
A rivalidade era mesmo sadia demais: no clássico seguinte ao título mundial, o Independiente homenageou com pompa o rival.
FP: Se recorda de algum eventual troca-troca por um certo Roque Avallay? Ele começou no Independiente em 1965 e em 1966 passou ao Newell’s.
Cardoso: Quando fui para o Independiente, o Avallay entrou na negociação.
Avallay, curiosamente, também defenderia o Racing, onde teve mais carinho. Seu melhor momento foi no Huracán campeão de 1973. Seria atacante titular na Copa de 1974 não fosse uma lesão e aquele Huracán era tão bom que quem repôs sua vaga foi Carlos Babington, do mesmo time.
FP: Nove dias antes de decidir a Libertadores 1967, o Racing enfrentou o Estudiantes pelo título argentino com você em campo e perdeu. O Estudiantes daquela época ficou com má fama. Era um time irritante de tão aguerrido e aplicado ou realmente tratava-se de uma equipe costumeiramente violenta e desleal?
Cardoso: Não, era um grande time de futebol. Tinha jogadores fantásticos. Batiam muito sim, as partidas com o Estudiantes eram uma tragédia do pontapé inicial até terminar. Mas tinham grandes jogadores. Foram tricampeões [da Libertadores] com a mesma equipe.
FP: Você se recorda de um brasileiro chamado Luís Cláudio, de quem há registro de que jogou pelo Racing entre 1964-67?
Cardoso: Não, não me lembro. Lembro do Silva, mas ele veio em 1969 e joguei só dois anos, de 1967 a 68. Mas não conheci o Luís Cláudio.
Silva, “o Batuta”, é o único brasileiro artilheiro do campeonato argentino, naquele 1969. Ídolo também no Flamengo e no Vasco, havia ido à Copa de 1966: saiba mais.
FP: Alguma anedota sobre a Dona Tita, a funcionária do Racing que “adotava” os jogadores como filhos?
Cardoso: A Tita! Tem várias com ela, era muito querida. A gente terminava os treinos, ia para a casa dela. Ela fazia nosso café da manhã, café da tarde… Era o dia-a-dia da gente. A gente almoçava, a gente comia [com ela], ela levava as comidas nas concentrações… Era uma mulher baixinha, magrinha, uma pessoa queridíssima pelo Racing. Todos os jogadores do Racing têm uma recordação muito boa dela. A gente brincava, mexia muito com ela.
Também já dedicamos especial à Tita, que acompanhou pessoalmente o mundial na Escócia contra o Celtic após os jogadores coletarem dinheiro para sua passagem de avião com eles: veja aqui.
FP: Já foi relatado que você evita usar avião. Algo relacionado com aquele voo de Medellín na Libertadores 1967?
Cardoso: (gargalha bastante na resposta) Não gosto nem de me lembrar! Eu e o Rulli, o meia-direita, éramos os que mais tínhamos medo de avião. Então viajávamos sempre um do lado do outro, rezando para não cair o avião. Quando chegamos daquela viagem, o Rulli ficou de cinco a dez minutos preso na cadeira, não conseguíamos arranca-lo do cagazo. E eu quase junto! A máquina de escrever de um repórter que nos acompanhava ficou no ar. Graças e Deus sobrevivemos. Quando parei de jogar, falei à minha mulher: “nunca mais me bote dentro de um avião!”. Viajo 20, 30 horas de ônibus para Buenos Aires, mas avião nunca mais!
Foi um episódio famoso daquele título na Libertadores. Após enfrentar o Independiente Medellín, da cidade onde o racinguista tangueiro Carlos Gardel faleceu em acidente aéreo, os jogadores sofreram turbulência fortíssima. Conta-se que ficaram mais confiantes no título após sobreviverem.
FP: Víctor Hugo Morales é dono da mais famosa narração daquele gol em que Maradona driblou meia Inglaterra na Copa 1986. Mas ele já disse que a anedota mais curiosa como narrador envolveu você: ainda iniciante, ele narrava um Racing x Bayern Munique em que foi advertido ao fim do primeiro tempo por não ter lhe mencionado em nenhum momento, ao passo que no dia seguinte os jornais elegeram você o melhor em campo. Como foi essa partida?
Cardoso: Não me lembro muito bem dela, foi normal, acho que nem joguei tanto assim.
Apuramos que aquela partida foi no fim de 1967 e inaugurava a nova iluminação noturna do estádio do Racing. Morales relatou isto nesta entrevista à revista El Gráfico (na primeira resposta).
FP: Além dos três clubes que defendeu na Argentina, você tinha/tem admiração por algum outro? Quis jogar em mais algum?
Cardoso: Não, nunca tive. E o Newell’s é meu time do coração.
FP: Em suas voltas como turista à Argentina, chegou a ser reconhecido também por torcedores de outros clubes?
Cardoso: Em Rosario, depois que deixei de jogar futebol, foi o lugar que mais fui reconhecido, depois de vinte anos ainda me reconheciam. Sou mais reconhecido pela do Rosario Central, fazia gol sempre, tinham pavor da minha cara!
O Newell’s esteve na segunda divisão entre 1960 e 1963, impedindo o clássico rosarino. Quando o dérbi voltou, Cardoso marcou fora de casa tanto em 1964 (2-2) como em 1965 (1-0) antes de ir em 1966 ao Independiente.
FP: Uma das características do futebol argentino é a forte preocupação tática. Era algo já presente quando você jogava?
Cardoso: Os treinadores todos tinham a sua maneira de jogar. O Racing na época tinha até uma cantiga que era “ya lo ve, ya lo ve, el Equipo de José“. Era um time que jogava sempre da mesma maneira, dentro e fora de casa.
FP: Antes de surgir as facilidades da Internet, você conseguia acompanhar regularmente o Newell’s e o Racing após parar de jogar? Eles decidiram finais continentais contra times brasileiros, mas em épocas em que elas não eram tão valorizadas aqui.
Cardoso: Eu vi (as finais), mas tenho poucas lembranças. Quando deixei de jogar, fui trabalhar no porto de Porto Alegre. Agora não perco um jogo, assisto tudo. Adoro futebol.
O Racing decidiu com o Cruzeiro as Supercopas de 1988 (ganhou) e 1992 (perdeu) e o Newell’s parou no São Paulo na final da Libertadores de 1992.
FP: Grenal, Clássico Rosarino ou o de Avellaneda? Há algum preferido? Qual lhe foi o mais intenso?
Cardoso: Olha, como jogador eu gostava de jogar o com o Rosario. Era o que eu mais gostava. Racing x Independiente joguei três ou quatro só. E o Grenal é um espetáculo à parte, ainda mais para quem é gremista ou colorado.
FP: A pergunta obrigatória: para quem o coração pendeu mais nos jogos de Grêmio x Newell’s na Libertadores 2014?
Cardoso: Para o Newell’s, pois o Grêmio já tinha sido campeão. O Newell’s é meu time do coração.
FP: Perfumo já disse que Daniel Passarella era “madre Teresa” se comparado ao Juan José Pizzuti, que não faria concentrações mas mandava “espiões” verificarem se os jogadores estavam em casa. Chegou a usar até “espião do espião” para ver se o enviado estava trabalhando direito…
Cardoso: Claro que tinha. Uma vez um brasileiro que jogava no Newell’s, o Zuca, foi jogar em La Plata. Eu estava concentrado em casa. O ônibus do Newell’s passaria a umas duas ou três quadras. Disse à minha mulher falar que se alguém do Racing chegasse, que o avisasse que saí rápido. Fiquei conversando uns cinco minutos com o Zuca. No dia seguinte, ao chegar no treino, fui multado porque não estava em casa. Falei que saí só para ver meu amigo, e o Pizzuti respondeu “sim, eu sei disso. Mas tu saiu de casa, não adianta” (gargalha).
A quem não lembra, Passarella polemizou na seleção argentina ao proibir brincos e cabelos compridos. Caniggia e Redondo não cederam e ele os deixou de fora da Copa de 1998. A declaração de Perfumo pode ser vista aqui (na resposta 98). Mário Zuca foi o maior artilheiro estrangeiro do Newell’s no século XX. Ele e Cardoso marcaram naqueles 2-2 com o Central em 1964.
FP: Alguma outra mensagem aos fãs de Newell’s, Independiente e Racing?
Cardoso: Foi com muito orgulho que joguei nesses times. São times de grande prestígio!