40 anos do tetra seguido do Independiente na Libertadores
Jamais houve domínio parecido antes ou depois na Libertadores. O capítulo final do tetracampeonato do Independiente demonstra talvez melhor do que nenhum outro como a América tinha proprietário nos anos 70. Ou talvez não: há duas linhas plausíveis de interpretação. O fato é que a saga do sexto título rojo na competição (o clube de Avellaneda havia sido bi em 1964-65 antes de iniciar o tetra em 1972) foi a etapa mais errática de todas. Começou vexaminosa para render épicas reviravoltas. Ou a relação estava desgastada ou o time, de tão acostumado a vencer, sabia manter-se de pé mesmo tão golpeado.
Como detentor do título, o Independiente teve direito de começar a campanha já na segunda fase. Na época, ela já significava o triangular-semifinal, regulamento usado até 1987. Os oponentes iniciais eram o Rosario Central, que tivera o gostinho tremendo de eliminar o arquirrival Newell’s Old Boys em jogo-desempate pela única vaga (na duríssima primeira fase, só o primeiro colocado avançava e a dupla rosarina terminara empatada na liderança de sua chave), e o Cruzeiro.
Por outro lado, o Rojo vinha de uma ressaca forte – em abril, havia perdido nos minutos finais, para um Atlético de Madrid bastante sul-americano, o Mundial Interclubes ainda válido pelo ano de 1974, revés que encerrou o ciclo do treinador Roberto Ferreiro (desde agosto de 1973 no cargo e ele próprio técnico campeão do Mundial Interclubes daquele ano). Ferreiro daria lugar a um velho conhecido na casa, Pedro Dellacha, campeão com o clube justamente na primeira taça do tetra continental, em 1972. Simbolicamente, o título final da série viria também sob Don Pedro, ironicamente ídolo do rival Racing nos tempos de jogador.
Em relação ao time campeão em 1974, outra mudança estaria sobretudo no gol: talismã daquela conquista por ter pego um pênalti do São Paulo, o jovem Carlos Gay parecia pronto para suprir a lacuna deixada pelo maior nome rojo na posição, Miguel Santoro, titularíssimo das vitoriosas finais de 1964, 1965, 1972 e 1973; inclusive, ainda em 1974 Carlitos se sobressaiu em outros pênaltis, na decisão por penais que valeu sobre o Deportivo Municipal a Copa Interamericana, tira-teima com o vencedor da Concacaf. Mas para 1975 a diretoria preferiu alguém mais experiente, José Pérez. Já titular no Mundial Interclubes perdido para o Atleti e ex-jogador da seleção, Pérez fora envolvido em um troca-troca com o River, que levou o volante Miguel Ángel Raimondo.
Em contrapartida pela vantagem de começar já nas semifinais, o multicampeão teria que atuar jogar longe de casa seus dois primeiros jogos. E perdeu ambos, por 2-0: em Rosario, Eduardo Solari (pai de Santiago Solari, ex-Real Madrid na década passada) fez os dois gols, e em Belo Horizonte eles couberam a Nelinho e Roberto Batata. Entre essas duas partidas, os oponentes jogaram entre si em Minas e a Palhinha fez os dois gols da vitória cruzeirense sobre o Central. Os mineiros não só dispararam assim na frente como poderiam até perder as duas partidas que teriam na Argentina, desde que não saíssem do país com quatro gols sofridos; um empate como visitante já bastaria para a Raposa avançar à decisão.
Porém, em uma semana, de 30 de maio a 6 de junho, o avesso do avesso se tornou possível. A data de 30 de maio foi a noite em que que o Independiente, graças a gol do maior craque de sua história, o meia Ricardo Bochini, e um contra do adversário Roberto Pascuttini, bateu por 2-0 o Rosario Central. Em seguida, o Central recebeu o Cruzeiro. Dirceu Lopes deixou o seu no Gigante de Arroyito, mas o impossível Mario Kempes foi impiedoso. Ele já havia feito o único gol do clássico com o Newell’s que classificara os canallas. El Matador fez duas vezes na Raposa, derrotada por 3-1.
Aquele inclusive foi um dos últimos jogos de Kempes pelo Central antes de se transferir ao Valencia, em julho – de família peronista, o atacante levou-a toda consigo, temendo a perseguição da ditadura recém-instalada em 24 de março na Argentina. Aquele 3-1 do Central sobre o Cruzeiro igualou-os na liderança, ambos com 4 pontos (na época, a vitória valia 2 e não 3), mas desclassificou os rosarinos, com saldo zerado de gols enquanto os mineiros estavam com um positivo de dois gols e ainda teriam um jogo a fazer. Seria contra o Independiente, com 2 pontos e saldo negativo de dois gols.
Ou seja: o Independiente precisava derrotar os brasileiros por pelo menos três gols de diferença, matemática onde o Rojo ficaria com um gol positivo no saldo e a Raposa com um negativo. Seria exatamente o que aconteceria. E, mesmo em tempos em que o Brasil valorizava menos La Copa, a revista Placar não perdoou: “o Cruzeiro chora o impossível. Desde 1963, com o Santos, o futebol brasileiro não tinha chance tão grande de conquistar a Taça, acabar com a banca de argentinos e uruguaios”. Sem pachequismos, a revista culpou bastante a tática medrosa dos visitantes, recuando seus pontas e assim estimulando os laterais argentinos (que tradicionalmente não são ofensivos) a atacarem junto. Segundo a reportagem, o treinador cruzeirense “Hilton Chaves preferiu confiar na sorte. Ou em perder só por 2 a 0. Deu-se mal”.
A revista argentina El Gráfico, por sua vez, foi mais poética: “o que digo desta equipe? O que digo outra vez do sexto campeão da América? Que pacto secreto e misterioso mantém com La Copa? (…) Nunca os rojos se enfrentaram a uma Copa tão acidentada e já quase tão perdida como esta. Mas depois, La Copa. O amante que volta a corteja-la com os velhos atributos de sua sedução. La Copa que se vai, que se distanciara definitivamente. Mas que conclui submetendo-se aos efeitos de um costume, desse que vem de muito longe. (…) Em um desses, até a mesma América já tomou afeto do velho proprietário”.
O primeiro gol foi de pênalti (“legítimo”, segundo avaliou a Placar), convertido aos 35 minutos pelo capitão e xerife uruguaio Ricardo Pavoni, um dos laterais rojos. “O Independiente já tinha feito por merecer outros”, ressaltou a revista brasileira. O Cruzeiro ensaiou cozinhar o jogo e até assustou o arqueiro José Pérez. Mas tamanho era o quilate exigido para a reviravolta que até gol olímpico ela teve, já na segunda etapa: foi de Daniel Bertoni, autor do último gol da Copa de 1978.
“Não importa que o segundo gol, olímpico, aos 20, fosse um lance isolado. Importa que Balbuena aos 12, Bochini aos 15 e Ruiz Moreno aos 16 tenham perdido chances incríveis (…). E que quando Ruiz Moreno marcou o terceiro, Dirceu Lopes e Palhinha já tinham perdido o fôlego e a capacidade de reação” – eram os únicos cruzeirenses e tentarem atacar, segundo a Placar, que contestava os resmungos do goleiro Raul (“foi sorte deles. Não gostei do Independiente. É um time grosso, que só dá chutões”): “Galván e Percy Rojas exibiam uma boa técnica na armação de jogadas rápidas de ataque; Balbuena ganhou sempre de Vanderlei; Bertoni deu um suadouro em Nelinho; e Bochini (…) fez uma partida primorosa”.
“Acima de tudo, porém, o Independiente procurou subir em conjunto, com um lindo toque de bola – ironicamente parecido quando o Cruzeiro procura o gol”, concluía a reportagem brasileira pós-jogo. Hoje é irônico ver nela como os jogadores de um dos times tupiniquins mais copeiros internacionalmente jogavam a toalha sobre a própria capacidade, especialmente quando se leva em conta que no ano seguinte a Raposa enfim venceria a Libertadores.
Mas em 1975, Piazza, após aqueles 3-0, dizia que “a Libertadores não é para times do nosso tipo (…). Fiquei convencido de que não estamos preparados para enfrentar o futebol de competição que os argentinos mostraram (…). É mesmo de desanimar. Em 1967, perdemos no finzinho jogando contra a garra do Peñarol e do Nacional. E olhe que tínhamos Tostão. É melhor desistir”. Raul seguia a linha fatalista: “como mudar? Não há o que mudar”. Clique aqui para ver.
O título veio sobre os chilenos do Unión Española, que por sinal contavam com dois argentinos: o volante Rubén Palacios e o atacante Jorge Spedaletti, que participaram ativamente daquela época de ouro dos gallegos, ganhando três títulos nacionais seguidos. Spedaletti acabaria até jogando pela seleção do Chile a partir daquele 1975. Outras figuras conhecida dos argentinos eram o meia Leonardo Véliz e o atacante Sergio Ahumada: haviam perdido a final de 1973, pelo Colo-Colo.
Ahumada, por sinal, por uns dias saboreou uma doce revanche. No jogo de ida da decisão de 1975, em Santiago, entrou a oito minutos do fim e faltando mais três marcou o único gol da partida, na qual a coincidência de uniformes fez os visitantes usarem camisa amarela. Mas não deu. Diferentemente de Ahumada, o peruano Percy Rojas decidiu juntar-se ao “inimigo” após não ter conseguido vencê-lo na final da Libertadores. Ele estava no Universitario de Lima de 1972 e até marcara o gol de honra dos primeiros vices do tetra do Independiente.
Rojas era uma das novidades em Avellaneda naquele iluminado 1975 no qual, pelo seu Peru, ganharia também a Copa América. Ele tratou de inaugurar a reação argentina no jogo de volta, abrindo o placar no primeiro minuto. Francisco Las Heras, de pênalti, empatou. Aos 22 do segundo tempo, o pênalti foi para os donos da casa e Pavoni, um dos poucos titulares nos quatro títulos seguidos dos rojos na Libertadores (participara ainda do título da de 1965), desempatou. Em seguida, confusão que gerou expulsões para cada lado, de Rojas para os hermanos e de Mario Soto para os chilenos – ele mesmo, aquele zagueiro “bem lembrado” pelos oponentes do Cobreloa em 1981. Bertoni sacramentou a vitória caseira aos 37 da etapa final.
Na época, o saldo de gols não pesava na decisão e a vitória para cada lado forçava um jogo-desempate em campo neutro. Era a sina daquele Independiente, que apenas em 1972 pôde dar em casa a volta olímpica. E era a sina ser campeão do mesmo jeito. Ricardo Ruiz Moreno, aos 29 minutos, e novamente Bertoni selaram o placar de 2-0 em Assunção, possibilitando à lenda Arsenio Erico entregar novamente uma taça ao Rojo. Erico era o superatacante paraguaio que o clube desfrutara nos anos 30 e 40 e até hoje é o maior artilheiro do futebol argentino, com 295 gols.
Falamos de Erico em abril, quando teria feito cem anos: clique aqui. Mas não é ele quem acaricia a taça na foto que abre a matéria. E sim o goleiro José Pérez. Aquele troca-troca com o River, então em jejum desde 1957, fez todos saírem vencedores: Raimondo integrando o fim da seca millonaria naquele ano. E El Perico Pérez, tão associado àquele tabu riverplatense, enfim experimentava um título.
A combinação Independiente e título na Libertadores chegava ao capítulo final de uma série, mas nem a campanha tão acidentada dava sinais de que aquilo não continuaria a se prolongar (desde então, só veio mais uma conquista, dali a longos nove anos). Era tão corriqueira que a El Gráfico preferiu não estampa-la na capa da edição seguinte. Nem assim os rojos chiaram: a capa exibia uma vitória do Boca por 4-3 naquele mesmo 29 de junho de 1975 sobre o arquirrival dos tetracampeões da América, o Racing. Que estava ganhando por 3-0. Parece que há realmente quem nasce para sofrer enquanto o outro ri…
Concluímos com este especial as estórias por trás de cada título do maior campeão da Libertadores. Clique abaixo para saber mais dos demais títulos do Independiente nela e no Mundial:
Meio século da 1ª Libertadores do Independiente (e argentina)
50 anos do primeiro bi argentino na Libertadores, do Independiente
50 anos do primeiro bi argentino na Libertadores, do Independiente
40 anos da 1ª parte do tetra do Independiente na Libertadores
40 anos da 2ª parte do tetra do Independiente na Libertadores
Hoje na B, há 40 anos o Independiente era campeão mundial pela 1ª vez
40 anos da 3ª parte do tetra do Independiente na Libertadores – sobre o São Paulo
Há 30 anos, o Independiente vencia a Libertadores pela última vez – sobre o Grêmio
30 anos do 2º e último mundial do Independiente, sobre o Liverpool
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