Copa América: os argentinos que já defenderam o Uruguai
Historicamente falando, o Brasil não é o rival mais tradicional da Argentina e sim o Uruguai. Os dois vizinhos do Rio da Prata tiveram um no outro seus primeiros oponentes internacionais a nível de seleções, duelando oficialmente desde 1902. A Albiceleste enfrentou pela primeira vez o Brasil em 1914, discrepância suficiente para quase quatro dezenas de jogos oficiais anteriores, 37. Destes, 34 haviam sido contra os orientales. Os três jogos demais, aliás, foram contra o Chile, outro país cuja rivalidade é mutuamente mais feroz do que a nutrida contra os brasileiros. Tamanha rixa platina é demonstrada pela quantidade de hermanos que foram charruas. E a metade, de fato, cresceu sentindo-se uruguaia.
Há registros de seis jogadores da Celeste nascidos na Argentina, com a possibilidade de um sétimo. Três desses jogadores são forasteiros por “acidente geográfico”: todos são filhos de uruguaios e/ou cresceram na margem oriental do Rio da Prata. Fora os seis, há ainda casos especiais. Considerando argentinos apenas aqueles crescidos na Argentina que, já adultos, adotaram os vizinhos, neste rigor apenas três hermanos tiveram coragem de virarem a casaca.
O primeiro foi Atilio García, o maior atacante que o futebol uruguaio já teve. É o maior artilheiro de lá e também do Nacional, onde, considerando amistosos, conseguiu mais de um gol por jogo, superando os 400. Foi sete vezes seguidas o artilheiro do campeonato e fez dos tricolores os primeiros pentacampeões seguidos por lá. Apesar da distância tão pequena entre Buenos Aires e Montevidéu, porém, El Bigote não era chamado pela Albiceleste: na época, quem atuasse no exterior era desconsiderado nas convocações, algo só alterado nos anos 70.
Assim, García, que também é o maior artilheiro do clássico com o Peñarol (que já perdeu de 3-2 após estar ganhando de 2-0 com o argentino, recém-operado de furúnculos no rosto, marcando todos de cabeça), naturalizou-se uruguaio. Isto, infelizmente, ocorreu tarde, quando ele já havia passado dos 30 anos. Acabou fazendo apenas dez jogos, mas mantendo a alta média, com dez gols – cinco deles foram na Copa América de 1945, também disputada no Chile como a atual. Os uruguaios viajaram para lá por trem, passando pelo território argentino. O que teria afetado o já significativo rendimento do atacante.
“Em cada estação, os provincianos, que nesse sentido são piores que os capitalinos, diziam: ‘aí está o traidor, o vende-patria’. Isso influiu muito no seu ânimo”, explicou o colega Roberto Porta, seu colega no clube e na seleção (também jogou pela Itália). O Uruguai ficou apenas na quarta colocação, mas os cinco gols de García lhe deram a vice-artilharia, apenas um gol abaixo dos artilheiros: Heleno de Freitas, do vice Brasil, e Norberto Méndez, da campeã Argentina.
Se os anos 40 iniciaram-se com o penta do Nacional, a década finalizaria-se com domínio do arquirrival. Em 1949, o Peñarol montou um ataque apelidado de “Esquadrilha da Morte”. Foram 113 gols em 32 jogos, dos quais só um foi perdido (um amistoso com o Huracán em Buenos Aires). Foi o ano do clásico de la fuga, um 2-0 em que o Nacional abandonou o jogo no intervalo para não levar uma goleada. Assim, a base da seleção uruguaia campeã mundial em 1950 veio dos aurinegros. Isso devia ter incluído todo o quinteto ofensivo deles, que incluía dois da terra vizinha.
Ernesto Vidal nascera na Itália, na verdade, mas viveu desde os dois anos na Argentina, sendo bem mais hermano que os mencionados três nascidos na margem ocidental da Prata a jogarem pela oriental. Começou a carreira no interior do futebol cordobês, pelo Sportivo Belgrano de San Francisco. Chegou em 1944 ao Peñarol, vindo do Rosario Central, logo virando herói: o penta do Nacional não virou hexa (marca nunca alcançada no Uruguai) por bem pouco, pois vencia a final por 2-0.
O Peñarol, com gol de El Patrullero Vidal, virou para 3-2. Ele, que também deixou o seu no clásico de la fuga, aproveitando rebote de um pênalti, era o ponta-esquerda da linha formada por Alcides Ghiggia, Juan Hohberg, Oscar Míguez, Juan Alberto Schiaffino e ele. Apenas Hohberg não foi à Copa de 1950 e assim Julio Pérez, do Nacional, foi o tricolor “intruso” no ataque celeste titular no mundial, pois Vidal estava incluído. Só não atuou justo no Maracanazo, com uma lesão fazendo a vaga ficar com Rubén Morán, do Cerro, naquela partida histórica. Hohberg, por sua vez, era o outro argentino daquele Peñarol.
El Verdugo Hohberg era recém-chegado em 1949 e assim não obteve a naturalização a tempo: “me consideraram para a seleção uruguaia. A AUF realizou gestões com a FIFA à procura da minha habilitação, mas ainda não tinha tempo para tirar a carta de cidadania e devi permanecer à margem”, contou o corpulento meia-direita. Mas pôde protagonizar outro jogo histórico nas Copas: ele participou da de 1954 e quase não atua, exatamente por uma lesão. Voltou a tempo das semifinais, contra os mágicos magiares da Hungria, que abriram 2-0. O argentino personificou a garra charrua e anotou nos últimos dez minutos os dois gols do empate – desmaiou de exaustão após o segundo.
Há até lendas de que teria perdido o pulso por uns momentos. Ele recuperou-se e atuou na prorrogação normalmente, até quase marcando outro, em um cabeceio que a trave impediu de ser certeiro. Os húngaros, porém, marcaram mais dois gols, com a plateia suíça em delírio tremulando lenços para ovacionar as duas equipes. Hohberg prosseguiu por toda a década no Peñarol, aposentando-se em 1960 como o primeiro capitão a erguer a Libertadores da América, que tivera ali a edição inaugural. Ele voltou às Copas em 1970, treinando a Celeste quarta colocada, por quatro décadas o melhor retrospecto do Uruguai em mundiais, até 2010.
Os demais argentinos que defenderam o Uruguai foram o lateral-direito Marcelino Pérez (ex-Vasco), vencedor da Copa América em 1935; Alfredo Mañay, que atuou uma vez justo contra a Argentina, em 1948; o volante Gustavo Matosas (ex-São Paulo, Atlético Paranaense e Goiás), vencedor da Copa América de 1987 e que nasceu em Buenos Aires quando seu pai, Roberto Matosas, defendia o River; e o goleiro Fernando Muslera, titular da Celeste nas últimas duas Copas, campeão da última Copa América e novamente no páreo na atual.
Sobre Mañay não há maiores registros de uma carreira pré-desenvolvida na Argentina. E os outros todos se iniciaram no futebol no Uruguai. Pérez era filho de espanhóis e com três meses de foi viver na margem oriental. Muslera, filho de uruguaios, vibrou como um autêntico charrua a eliminação imposta à terra natal na Copa América de 2011, onde pegou o pênalti de Carlitos Tévez. Matosas é o mais “argentino”, nacionalidade de sua mãe, mas começou no futebol na base do Peñarol. São casos bem diferentes de Alejandro de los Santos, filho de uruguaios mas crescido na Argentina e que acabou defendendo a Albiceleste campeã da Copa América de 1925. De los Santos é conhecido como um raríssimo negro na história da seleção argentina.
Há ainda casos especiais. Algumas fontes aduzem que Juan José Rodríguez, do Racing campeão mundial de 1967, teria defendido a Celeste anteriormente (jogava no Nacional), mas não há dados dessa trajetória. Já Sidney Buck de fato jogou pelo Uruguai, em 1910, duas vezes contra a Argentina. Atuava no Montevideo Wanderers, na época de poderio comparável ao de Peñarol e Nacional. Buck era britânico, mas vale menção, pois também defendeu a Albiceleste, em 1912 – contra o Uruguai. Defendia na época o Quilmes, naquele ano campeão pela primeira das duas vezes.
Buck é o único homem a vestir a camisa das seleções adultas desses arquirrivais. Pois Daniel Brailovsky conseguiu suar por eles, mas de forma diversa: começou a carreira no Peñarol e acabou defendendo seleções uruguaias juvenis. Ao passar ao Independiente, jogou amistosos preparatórios da Argentina à Copa de 1982, mas nenhum contra outra seleção. Isso significava que não havia defendido oficialmente nenhum país, tornando-o livre para defender um terceiro. Judeu, no fim da carreira atuou na liga de Israel e, com cidadania israelense garantida pela lei do retorno, terminou aproveitado pela seleção local.
Considerando técnicos, o outro único argentino além de Hohberg a treinar o Uruguai foi Daniel Passarella. Após a eliminação no mundial de 1998, El Kaiser, dos maiores símbolos do River, foi sondado para treinar nada menos que o Boca, que acabou acertando com Carlos Bianchi. O rival onde o ex-zagueiro foi trabalhar acabou sendo a seleção vizinha, no ano seguinte. Desinteressado em disputar a Copa América 1999, assumiu apenas um mês depois. Teve bons números: ausente das duas Copas anteriores, a Celeste estava em terceiro nas eliminatórias quando o argentino, sentindo-se boicotado nas convocações e com proposta do Parma, renunciou após dez partidas oficiais. Víctor Púa, interino naquela Copa América e com sucesso no time sub-20, assumiu o restante e até reclassificou o paysito ao Mundial, mas sob o sufoco de uma repescagem.
Vale ainda lembrar os de rota inversa, os nativos do Uruguai que defenderam a Argentina: Horacio Vignoles, do Belgrano Athletic (hoje um clube voltado ao rúgbi), vestiu uma única vez a Albiceleste, em 1913. Em 1916, Zoilo Canavery fez isso duas vezes. Os três jogos somados por ambos foram contra o Uruguai e pode-se dizer que Canavery personifica o vira-casaca: atuava no Racing heptacampeão da época, seria ainda mais ídolo no Independiente e passou ainda por Boca (campeão em 1919, primeiro título argentino dos auriazuis) e River!
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