Um século dos “cinco grandes” na elite argentina
Nenhum clube nasce grande. No campeonato não-britânico mais antigo no planeta, certame que criou uma segunda divisão ainda no século XIX, a assertiva é ainda mais válida. Assim, Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo, todos fundados já no século XX, tiveram de iniciar seus caminhos em jogos de bairro e depois nas divisões inferiores do Argentinão. Os ditos “cinco grandes” só o foram assim definidos nos anos 30, com duas décadas de alguma tradição em uma elite que já tinha o dobro disso em existência. Assim, poucos notaram há cem anos o que levaria aquele torneio a ser histórico.
O campeonato na realidade começou em 4 de abril, mas foi em 11 de abril que a peça que faltava do quinteto enfim estreou na elite: o San Lorenzo, e logo em jogo contra outro futuro grande, o River – que, mais experiente, venceu por 1-0, gol de pênalti de Arturo Chiappe, figura do elenco riverplatense que venceu a segundona de 1908 e fez do River o primeiro “grande” a figurar na elite: falamos disso aqui. Na mesma rodada, outro jogo de futuros grandes, um 1-1 entre Boca e Independiente. O novato San Lorenzo não ganharia nenhum dos outros quatro – mas em compensação bateria o rival Huracán.
A primeira imagem que ilustra este texto mostra grandes destaques do quinteto há um século: Pedro Calomino, tido como inventor da pedalada e recordista de jogos pela seleção argentina até os anos 40; Cándido García, que dois anos antes fizera o primeiro gol do primeiro Boca-River (ainda El Clásico Boquense, por ambos serem então vizinhos no bairro de La Boca, e não o Superclásico, alcunha que só viria em meados dos anos 30) da elite argentina; Alberto Ohaco, seguidamente artilheiro dos torneios de 1912, 1913, 1914 e daquele de 1915 e até hoje o maior goleador do Racing, considerando tanto a era amadora como a profissional; Ernesto Sande (em pé, atrás), primeiro jogador do Independiente na seleção – esteve na primeira Copa Roca com o Brasil, em 1914; e Mariano Perazzo, autor de dois gols no primeiro clássico contra o Huracán. À exceção de Perazzo, todos os demais atuaram pela seleção.
Aquele torneio de 1915 unificou as duas ligas do futebol argentino após três anos de cisma. A separação ocorrera em 1912, com a discordância de alguns clubes em cobrar ingressos dos seus sócios. Apesar de naquele ano a Associação Argentina de Futebol ter sido reconhecida pela FIFA, tais clubes a abandonaram e criaram a Federação Argentina de Futebol, recrutando para si diversos clubes da segunda divisão da AAF – dentre estes estava o Independiente, que por muito pouco não conseguiu seu primeiro título de primeira logo ali, pela FAF. Contamos essa estória neste outro Especial.
A reação da AAF foi em 1913 inchar sua elite com os clubes que sobraram das divisões inferiores. O River, que havia ficado em último no campeonato de 1912, foi poupado do rebaixamento – assim como o Boca, que era da segundona, subiu diretamente para a elite nesta virada de mesa (clique aqui). O campeão foi o Racing, pela primeira vez. La Academia havia vencido a segundona ainda em 1910; dos cinco grandes, tornou-se o primeiro deles a conseguir o título da elite: falamos aqui. Paralelamente, na FAF, o campeão de 1913 foi o Estudiantes, que também obteve ali sua primeira taça de primeira.
Enquanto ocorria o cisma, o San Lorenzo quase desaparecia. Em 1912, foi desalojado de seu campo no bairro de Boedo e os integrantes debandaram: muitos foram ao Vélez, vencendo a terceira divisão sem imaginar que na virada para o novo século ambos os clubes desenvolveriam uma rivalidade. Em 1913, os renegados quase venceram a segundona, mas pelo regulamento só o campeão (o Floresta) subiria. “Se nesse ano o Vélez Sarsfield tivesse subido à primeira, o San Lorenzo não existiria”, reconheceria Luis Gianella, um dos que retomaram o San Lorenzo em 1914.
O San Lorenzo jogou virtualmente a terceira divisão em 1914, mas deu a sorte de a AAF definir que o novato de sua elite em 1915 sairia de um tira-teima entre o campeão da terceirona com o da segundona (!). Esta final ocorreu em pleno réveillon, com um dos gols vindos de chute de Gianella. Esta curiosa história, por sua vez, detalhamos neste outro especial.
Se hoje os confrontos entre o quinteto mobilizam o país e estão entre os encontros mais importantes do planeta, na época, naturalmente, era bem diferente. A infinidade de dinheiro envolvida era uma hipótese distante em um amadorismo ferrenho; por exemplo, Carlos Muttoni, goleiro campeão no Racing em 1913, foi expulso do clube por “atentar contra as práticas amadoras” apenas porque pedira ajuda de custo para arrumar novas chuteiras (e ele jogou o primeiro Brasil-Argentina, no ano seguinte, como atleta do rival Independiente). Nada de barra bravas, com as algazarras da plateia preocupando-se em emular as posturas de lordes britânicos.
Sem patrimônio, alguns não jogavam nos bairros onde formariam seu reduto. O Boca, apesar do nome, só se sedimentou de vez em La Boca a partir do ano seguinte – em 1915, sediou jogos principalmente na cidade de Wilde (contra River, Huracán), mas também no bairro de Barracas (onde levou de 6-0 do Racing e empatou em 1-1 com o Quilmes) ou simplesmente cedeu o mando de campo (contra o Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires, do bairro de Palermo, onde também recebeu o Atlanta)…
Clube de La Boca em 1915, mesmo, foi justamente o River Plate. A origem de sua rivalidade com o Boca deveu-se exatamente a se originarem neste mesmo bairro. A rixa já tinha duas décadas vívidas em 1923, quando o River enfim saiu de lá para a fina zona norte portenha, e não se acentuou (da mesma forma que o Clásico de Villa Crespo, entre Atlanta e Chacarita, remanesceu mesmo com a saída do Chaca do bairro ainda nos anos 40 para a cidade de San Martín), ao contrário: ganhou o tempero sócio-econômico que caracterizaria o dérbi a ponto de ser comum se pensar que isso teria originado-o.
Além de mandar todos os seus jogos em casa em La Boca, outro aspecto diferente no River era a camisa: a mítica vestimenta branca com faixa diagonal vermelha foi deixada de lado após o acesso em 1908. Passou-se a adotar uma tricolor, com grossas faixas verticais brancas e vermelhas separadas por finas listras pretas. Hoje esse modelo é um uniforme reserva tradicional, mas a faixa vermelha no peito branco só voltaria a ser a principal apenas em 1932. Além disso, era comum ele usar, heresia, calções azuis.
O estreante San Lorenzo, como o Boca, foi outro a precisar usar campos alheios ao seu bairro, o de Boedo. Seus jogos de mandante foram todos no bairro de Caballito, no estádio do Ferro Carril Oeste, que desde aqueles tempos tinha a tradição de emprestar seu campo a outras equipes em razão da posição central de seu bairro na geografia de Buenos Aires. Ali ocorreu aquela estreia frente ao River e lá foi também o cenário do primeiro clássico com o Huracán.
Já a dupla de Avellaneda estava bem enraizada na sua cidade, onde o Racing nascera em 1903 e para onde o Independiente se mudara ainda em 1907. Grande potência da época, o Racing, campeão da AAF em 1913 e 1914, emendaria na liga unificada o seu terceiro título argentino seguido. A sequência culminaria em um recordista heptacampeonato em 1919. Falamos do hepta aqui.
E quanto a outras figuras carimbadas da elite? O Quilmes, o mais antigo ainda em atividade, já participava no século XIX. O Estudiantes e o Atlanta, como o Independiente, foram outros tirados da segundona da AAF para disputar a elite da FAF em 1912, remanescendo na primeira com a unificação. O Platense, o Banfield e o Ferro Carril Oeste, como o Boca, foram promovidos à elite da AAF em 1913 das divisões inferiores e também remanesceram com a união.
O Tigre estreou na elite da FAF de 1913 após vencer a segundona dela e foi outro permanecido na primeira divisão com a junção das ligas há cem anos. O Huracán, tradicionalmente “o sexto grande”, apareceu em 1914, após conseguir dois acessos seguidos da terceira divisão à primeira da AAF: veja aqui. O Gimnasia LP venceria a segundona unificada de 1915 e assim surgiria na elite a partir de 1916.
Em 1919, o Vélez foi convidado a disputar a elite. O Lanús apareceu em 1920, o Argentinos Jrs em 1922 e o Chacarita venceu a segundona de 1924. Todos estes outros, à exceção do Banfield, juntaram-se ao quinteto grande para formar a liga profissional em 1931. Tal liga admitiria em 1939 a dupla Rosario Central e Newell’s, que até então jogavam apenas o campeonato rosarino. Naquele mesmo ano, o Banfield, que inicialmente manteve-se amador, venceu a segunda divisão profissional, finalizando o grupo de times mais assíduos da história da elite argentina.
Abaixo, os jogos entre os cinco grandes em 1915 – como foi um torneio que unificou duas ligas, ocorreu em turno único. Vale a observação de que, no último duelo, o tapetão entrou em cena: uma escalação supostamente irregular de Victorio Cappelletti faria o Independiente perder os pontos do Clásico de Avellaneda, cruciais para o bonificado Racing terminar líder junto ao San Isidro e poder ser campeão, em jogo-extra contra este outro clube, atualmente voltado ao rúgbi.
11-04-1915, em Caballito: San Lorenzo 0-1 River (Arturo Chiappe)
11-04-1915, em Avellaneda: Independiente (Victorio Cappelletti) 1-1 Boca (Juan Gelmi)
16-05-1915, em Caballito: San Lorenzo (Luis Gianella) 1-4 Racing (Clemente Comaschi, Juan Hospital e Alberto Ohaco duas vezes)
23-05-1915, em Avellaneda: Independiente (Nicolás Cappelletti duas vezes e Aníbal Arroyuelo) 3-0 San Lorenzo
23-05-1915, em Barracas: Boca 0-6 Racing (Domingo Zaceveich contra, Alberto Marcovecchio, Alberto Ohaco e Alberto Marcovecchio outras três vezes)
20-06-1915, em Wilde: Boca 0-2 River (Alberto Penney, duas vezes)
29-06-1915, em La Boca: River (Nicolás Rofrano, Arturo Chiappe e Cándido García) 3-0 Independiente
01-08-1915, em La Boca: River 0-3 Racing (Francisco Olázar e duas vezes Alberto Marcovecchio)
Bônus: 24-10-1915, em Caballito, San Lorenzo (Francisco Xarau duas vezes e Luis Gianella) 3-1 Huracán (José Laguna)
07-11-1915, em Wilde: Boca (Alberto Coll contra, Francisco Taggino, Luis Galeano e José Coll contra duas vezes) 5-0 San Lorenzo
12-12-1915, em Avellaneda: Racing (Nicolás Vivaldo) 1-2 Independiente (Albérico Zabaleta e Nicolás Cappelletti)
PS: eles foram definidos como cinco grandes em 1935, por serem os únicos a atenderam estes critérios: vinte anos seguidos na elite, ao menos dois títulos nela e mínimo de 15 mil sócios, o requisito que faltou ao Huracán. Entenda mais clicando aqui.
Pingback: Jacobo Urso, o mártir do San Lorenzo
Pingback: Zoilo Canaveri, "o" grande vira-casaca do futebol argentino