Rosario Central: 125 anos de canalhice no futebol argentino
O título desta nota não tem conotação negativa em Rosario. Lá, ofensivo aos centralistas é um Papai Noel em vermelho, preto e branco. O significado de canalla remete primordialmente não a uma pessoa vil, mas ao torcedor do glorioso Rosario Central, todo um símbolo do futebol argentino: como ele, o clube nasceu britânico e foi se latinizando, a ponto de influir essa transformação até nos primórdios da seleção argentina; e como ele, é uma instituição rica em troféus, grandes vitórias e de episódios dos mais folclóricos. Para além do próprio país também. História que começa bem antes daquele natal de 1889.
Com grande comunidade britânica, a Argentina recebia sua Revolução Industrial em meados do século e a necessidade de escoar matéria-prima e produtos levou à construção de várias ferrovias. E eram os súditos da Rainha Vitória quem conduziam a empreitada. Nas folgas, praticavam o football, criando em 1867 o primeiro clube desse esporte nas Américas, o Buenos Aires Football Club. Os clubes seguintes tendiam a se formar exatamente onde haviam estações de trem – caso do Quilmes, o mais antigo ainda em atividade. Um ano antes da fundação do Buenos Aires FC, as ferrovias chegavam ao interior. Em 1866, a Central Argentine Railway rasgava as virgens pampas do centro do país ligando Córdoba ao porto fluvial mais importante da Argentina: o do segundo maior rio sul-americano, o Paraná, às margens de Rosario.
Bingo: um ano depois, a cidade ganhava o Rosario Cricket Club, atual Atlético del Rosario e depois precursor do futebol rosarino – ainda existe, mas está voltado ao rúgbi, assim como o Buenos Aires FC, com quem travou os primeiros duelos de futebol e rúgbi entre dois clubes argentinos. Trabalhadores da Central Argentine Railway fundariam em Córdoba o Instituto (cujo nome completo é Instituto Atlético Central Córdoba) e o Talleres (“oficinas”, em espanhol). Na outra ponta, em Rosario, seriam criados o Central Córdoba e, bem antes, em um bar em 24 de dezembro de 1889, o Central Argentine Railway Athletic Club. Seu primeiro presidente, o escocês Colin Bain Calder, acaba de se tornar nome de rua na cidade. A primeira direção conta com Thomas Hooper, vice-presidente, C. Chamberlain como secretário e também com os senhores Thomas Mutton (quem dera a ideia do nome), Whitbet, H. Cooper, W. Malhoil, Barton, E. Camp, Stephen Sims, Musket, Miguel Green, A. Mayne, Wilkinson, Lamb e Hollis.
O esporte principal era o críquete mas já em 1890 é formado, por influência do vice-presidente Hooper, um time de futebol no CARAC, cujo primeiro adversário foram marinheiros britânicos do Beagle: empate em 1-1 e, na revanche, os anglo-rosarinos, vestidos com uma camisa de quadrados brancos e vermelhos, venceram por 2-1. A década que se seguiu só viu mudanças nas vestes, com o azul substituindo o vermelho; a aceitação só a britânicos funcionários da ferrovia seguia. Até que a empresa fundiu-se em 1903 com a Buenos Aires-Rosario Railway. Uma assembleia no clube deliberou um novo nome.
Foi o referido Miguel Green, um dos fundadores do CARAC, quem propôs “Club Atlético Rosario Central”. E 1903 não seria determinante apenas nisso. Pessoas de fora da ferrovia e da comunidade anglo-argentina passaram a ser aceitas. O clube adotou suas cores definitivas, azul e amarelo, ainda antes de outras equipes as adotarem na Argentina. Foi também o ano de estreia na Copa Competencia, torneio que reunia times das associações argentina (então restrita à Grande Buenos Aires), uruguaia e rosarina. Mas a inexperiência pesou e a eliminação veio no primeiro jogo, um 5-0 para os vizinhos do Atlético del Rosario. Era o time a ser batido na época, mas também em 1903 foi criado um novo rival…
Um ano depois, em 1904, estreava no time principal um dos filhos daqueles ferroviários britânicos: Juan Hayes, mais conhecido como Harry Hayes, sócio desde 1902. O detalhe é que Harry jogou entre adultos quando ainda tinha 13 anos, originando críticas. Ele defenderia o clube por mais de vinte anos, até 1925. E é seu maior artilheiro, mesmo contando só os gols documentados, que foram 174. Pelo menos 24 deles foram no Newell’s Old Boys, fundado naquele 1903. Harry Hayes é até hoje o maior goleador também do Clásico Rosarino. Dois vieram em um 9-3 em 1908, ano do primeiro título no torneio rosarino.
Harry Hayes defenderia a seleção argentina diversas vezes entre 1910-19, com 8 gols em 23 jogos. Como jogador centralista, só Mario Kempes jogaria e marcaria mais vezes que ele pela Argentina. Clube, em 1912, e seleção, em 1915, ganhariam também Ernesto Hayes, o Ennis. Irmão mais novo de Harry, era prejudicado nas comparações mas tinha luz própria: o segundo maior artilheiro dos canallas é justamente ele, com ao menos 133 gols. Provocador, gostava de humilhar adversários, driblando ou sentando na bola. A família seguiria presente no clube – Harry Hayes Jr, jogando pelo combinado rosarino, chegou a marcar quatro gols em um 7-0 no Flamengo em 1941.
A semente para uma paixão aberta a todos os rosarinos (e não só eles: o Central é hoje o clube do interior com mais torcedores no país) estava plantada. Um dos primeiros latinos, Zenón Díaz, levado ao clube pelo tal Miguel Green, ficou conhecido exatamente como o primeiro astro criollo (“hispânico”) da seleção argentina, pela qual estreou já em 1906. Foi o primeiro canalla lá. Ele, ao lado dos dois irmãos Hayes, participaria ainda da primeira Copa América, dez anos depois, já com 36 anos – ainda é um dos mais velhos a atuarem pela Albiceleste. Um sobrinho seu, o goleiro Octavio Díaz, também jogou pelo Central e pela seleção, participando do primeiro jogo contra um europeu, em 1928. Neste mesmo ano, foi um dos medalhistas de prata nas Olimpíadas de Amsterdã. Já havia vencido a Copa América em 1927. Eles jogaram juntos na última partida de Zenón, em 1919. Um clássico em 2-2 com o Newell’s em que Octavio machucou-se e quem o substituiu no gol foi o veterano tio.
Na época de Octavio Díaz, o estádio centralista já contava com 30 mil lugares, reflexo do sucesso colhido antes com Zenón e os Hayes: a tal Copa Competencia enfim havia sido ganha em 1913 e também em 1916 (com direito a 8-0 no Newell’s) e 1920. Em 1915, veio a Copa Ibarguren, tratada na época como campeonato nacional por opôr os campeões de Rosario contra os do campeonato “argentino”, ainda restrito à capital. Era a época em que o Racing emendava sete títulos argentinos seguidos, ainda um recorde. Os alviceleste também empilhavam a Ibarguren e só perderam naquela vez, um 3-1 com dois gols de José Laiolo, que logo estaria na seleção também, bem como os irmãos Antonio (que marcou em um 4-2 no Brasil em 1917) e Eduardo Blanco. Os titulares vitoriosos só tinham de “ingleses” os Hayes e Alfredo Woodward, autor do outro gol no Racing.
Teria sido já na época de Octavio, em 1928, que surgiu para os centralistas o apelido de “canalhas”, ainda em seu sentido original. Isso porque eles se recusaram a jogar um amistoso beneficente com o Newell’s em prol do Hospital Carrasco, que abrigava doentes de lepra. Os auriazuis devolveram zombando os rubronegros de “leprosos”, mostra de como a rivalidade, que não tem vira-casacas há 30 anos, desde 1984, já fervia. O clássico inaugurou o Gigante de Arroyito, em 1926 (o Central tornara-se independente da ferrovia dois anos antes e precisou mudar de casa. Venceu por 4-2 após estar perdendo de 2-0) e com o tempo, os xingamentos foram assumidos como orgulhosa alcunha pelos próprios alvos, alterando o próprio significado. É daquele tempo o único que conseguiu jogar na seleção a partir de ambos, o ponta Juan Francia.
Outro ponta, Ernesto García, o Chueco, apareceu por lá nos anos 30 e há quem o considere o melhor argentino na posição. Marcaria o único gol do título da Copa América 1937, sobre o Brasil, e vazou os vizinhos também no Rio de Janeiro, onde os hermanos venceram por 5-1 e 3-2 em 1939. Neste ano, o campeonato argentino enfim recebeu a dupla Central e Newell’s, responsáveis por tantos talentos. Como o de outro ponta, Juan Carlos Heredia (pai de xará ídolo do Barcelona), usado na Copa América de 1942 mesmo após os canallas serem rebaixados no ano anterior. Foi colega do atacante Waldino Aguirre, profissional com mais gols no clube, 95. Mas as glórias à altura só viriam nos anos 70. O troféu argentino ainda não havia saído da província de Buenos Aires até os auriazuis ganharem em 1971.
A semifinal daquela campanha é mais lembrada que a própria final: clássico com o Newell’s, batido por 1-0 com gol de peixinho (palomita, “pombinha”, para os argentinos) de Aldo Poy, que todos os anos precisa repetir a jogada em festas. Ele e Mario Kempes foram os primeiros a irem a uma Copa do Mundo como jogadores do futebol rosarino, em 1974. Novo título veio em 1973 e diversos outros jogadores passaram pela Albiceleste: o atacante Raúl Agüero, os pontas Ramón Bóveda e Roberto Gramajo, os meias Carlos Colman e Eduardo Solari (pai de Santiago Solari, ex-Real Madrid) e os irmãos defensores Mario e Daniel Killer, este campeão com Kempes na Copa 1978. Cujo técnico era César Menotti, ex-jogador canalla e conhecedor do valor do futebol do interior. Só não dava para chamar o lateral Jorge González, recordista de jogos no clube, 521: era uruguaio. É o estrangeiro mais longevo no país.
Os anos 80 foram agridoces. O terceiro título nacional veio em 1980, mas novo rebaixamento ocorreu em 1984. Só que, incrivelmente, os canallas não só venceram a segundona de 1985 como a emendaram com o troféu seguinte da elite, em raríssimo bicampeonato no mundo. Para completar, deixaram o Newell’s de vice. Os próceres eram Edgardo Bauza (técnico do San Lorenzo campeão da última Libertadores e da LDU campeã sobre o Fluminense em 2008), que está em quarto entre os zagueiros mais artilheiros do mundo, e Omar Palma. Palma esteve em tudo ali: na taça de 1980, no rebaixamento, na volta e naquele título redentor, do qual foi artilheiro do campeonato e autor do gol que garantiu a conquista.
El Negro Palma e o técnico Ángel Tulio Zof estariam também na Copa Conmebol de 1995, ainda a única taça continental do futebol rosarino e repleta de epopeia. Não é qualquer time que é campeão após perder por 4-0 no jogo de ida da final. Palma foi o veterano líder de Rubén da Silva, Martín Cardetti e Horacio Carbonari, que devolveram o placar no Gigante de Arroyito. O adversário era o Atlético Mineiro, que tinha Taffarel para tentar reverter a situação nos pênaltis. Mas quem se saiu melhor foi o goleiro canalla, Roberto Bonano. Eles já não estavam no último grande momento, na virada do século. O líder veterano da vez era Juan Antonio Pizzi, que havia jogado a Copa 1998 pela Espanha. Os jovens talentos, o armador Ezequiel González, o lateral Germán Rivarola, a dupla ofensiva César Delgado e Luciano Figueroa. Perderam o Apertura 1999 na última rodada e pararam nas semifinais da Libertadores 2001.
É claro que foi impossível reproduzir fielmente uma história que chegou ao quinto quarto de século. Priorizamos os primórdios. Pois, a quem se interessar por mais episódios, inevitavelmente os mais célebres da rica trajetória canalla já foram abordados por nós, no especiais abaixo:
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