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Quando o Estudiantes foi “Professores”

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Lauri, Scopelli, Zozaya, Ferreira e Guaita

O Estudiantes não tem esse nome por acaso. O grosso dos seus fundadores eram estudantes, muitos deles de medicina, daí também seu apelido de Pincharratas (e a abreviação Pincha): o curso lhes exigiria dissecar ratos, ao menos segundo a zombaria dos rivais. Mas houve tempo em que a alcunha contrastava com o nome do clube – o grande quinteto ofensivo da virada dos anos 20 para os 30 acabou apelidado de Los Profesores. Fica aqui a nossa homenagem ao Dia do Professor.

Os Profesores não chegaram a ganhar títulos, mas deram cátedra. Em 1928, o clube foi o 3º. Em 1930 e em 1931, o primeiro campeonato profissional, lutaram até o fim com o campeão Boca. Aliás, o torneio inaugural de 1931 ofereceu diversas marcas pioneiras ao elenco no profissionalismo: o primeiro time a marcar 7 gols em um jogo da nova era, sobre o Chacarita, na 3ª rodada; o primeiro a marcar 8, no Lanús, na 14ª (a superioridade foi tamanha que o juiz finalizou o jogo aos 23 do segundo tempo: os grenás fizeram dos pinchas os primeiros a vencerem por W.O. também); o primeiro a marcar nove, sobre o Ferro, na 23ª. E todos eles foram vencidos sem que marcassem um único gol. Aliás, no profissionalismo o goleiro alvirrubro Scandone foi o primeiro a pegar um pênalti – de Locasso, do River.

Não surpreende que o primeiro artilheiro profissional tenha sido um pincharrata: Alberto Zozaya, com 33 gols em 34 jogos, também o primeiro profissional com 3 gols em um só jogo (na verdade, 4, naqueles 7-0 no Chacarita). E, ainda, quem marcou o primeiro gol da nova era (e o primeiro de cabeça), sobre o Talleres de Remedios de Escalada, cujo goleiro era Ángel Bosio, titular da Argentina na Copa de 1930. O que surpreende é que com esse poderio – tiveram o melhor ataque, 103 gols – tenham perdido o título.

O time teve outras goleadas além das mencionadas: 5-2 fora de casa no Ferro, 5-2 no Independiente, 4-0 fora de casa no Platense, 5-1 no Argentinos Jrs, 6-1 no Atlanta, 4-2 fora de casa no Quilmes, 6-3 no Racing, 4-1 no Huracán e no próprio Boca na antepenúltima rodada… aliás, esse jogo poderia valer a taça: se o Boca vencesse, seria campeão antecipado. Na rodada seguinte, os auriazuis asseguraram o troféu não por terem vencido o Talleres de Escalada, mas porque, surpreendentemente, aquele ataque avassalador perdeu por 2-1 para o lanterna Atlanta, a quem já havia goleado no primeiro turno.

Em seleções: Lauri (que também defenderia a francesa), Scopelli (também a italiana) e Ferreira juntos pela Argentina em 1929. À direita, Guaita (em pé) pela Itália campeã mundial de 1934

Aquele Estudiantes de 1931 realmente contrastava as goleadas com derrapadas. No clássico com o Gimnasia, empatou fora mas perdeu em casa, por exemplo, por mais que o vizinho também vivesse grande momento – o rival fora o campeão de 1929 e fizera na virada de 1930 para 1931 uma exitosa excursão europeia batendo tanto Barcelona como Real Madrid. Só que o Pincha também perdeu para o fraco Tigre (antepenúltimo), em casa para o River e foi goleado por 5-1 pelo Chacarita no returno. Acabou 6 pontos atrás do Boca e nem em segundo ficou: foi ultrapassado pelo San Lorenzo, que o venceu na última rodada, relegando os platenses a um bronze enganoso.

O auge dos Profesores terminou ali: em 1932, mesmo estreando com um 6-1 no clássico com o Gimnasia (a maior goleada do dérbi até os 7-0 de 2006), o Estudiantes foi 6º e em 1933, perdendo três membros daquele quinteto, caiu para 10º. Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo se firmariam nos anos seguintes como “os cinco grandes” e dominariam por décadas os títulos. Esse oligopólio só seria quebrado em 1967. Exatamente pelo Estudiantes, cuja estrela era Juan Ramón Verón, pai de Sebastián: leia aqui.

Abaixo, informações sobre aquele grande quinteto do início dos anos 30:

Miguel Ángel Lauri: o velocista cruzador (era apelidado de Flecha de Oro) da ponta-direita, jogou de 1928-37, ano em que passou ao futebol francês, participando da vitoriosa temporada 1937-38 da Ligue 1 pelo Sochaux, último título deste clube no campeonato – onde Lauri, em meio a uma colônia sul-americana, foi o primeiro argentino campeão. Acabou defendendo a seleção francesa também, mas a chance de ir à Copa de 1938 pelos Bleus não lhe seduziu tanto após ser convocado pelo exército gaulês; ainda em 1937, rumou ao Peñarol, a tempo de marcar gol num 4-0 no então invicto Nacional pela final uruguaia. Pela Argentina, jogou de 1929 a 1935, ano em que figurou na Copa América. Por estar no exterior, se ausentou do título argentino na edição de 1937, sobre o Brasil.

Alejandro Scopelli: meia-direita talvez ainda mais implacável que Zozaya, pois não era centroavante mas marcou apenas dois gols a menos que o colega em 1931, sendo o vice-artilheiro do campeonato. Havia jogado a Copa de 1930. Foi à Roma em 1933 junto com o colega Guaita e jogou pela Itália. Scopelli foi campeão da Copa América de 1937, já no Racing, clube pelo qual fez 44 gols em só 60 jogos. No fim da carreira, El Conejo fez sucesso no Belenenses quando o clube azul de Lisboa ainda era a terceira força de Portugal (confira aqui), e rodaria este país como técnico, treinando o trio de ferro Benfica, Sporting e Porto. Na vizinha Espanha, se destacou no Espanyol, sendo técnico que ganhou de 4-1 do Barcelona na casa rival, e também no Valencia, levantando a Liga Europa nos anos 60. Também ganhou títulos no América do México, país onde se radicou e faleceu.

Ferreira como capitão argentino na final da Copa de 1930. À direita, Argentina campeã da Copa América de 1937 com Guaita, Scopelli (ambos sentados) e Zozaya (o jogador sério à direita, atrás deles)

Alberto Zozaya: o gol em pessoa. Don Padilla defendeu o clube de 1930 a 1939, sendo o último remanescente dos Profesores. Quando parou, o centroavante era o maior artilheiro do clube, com 144 gols em 181 jogos. Jogou pela seleção de 1933 a 1937 e chegou a marcar oito gols em cinco jogos. Ele e Lauri ficaram de fora da Copa de 1934 porque os clubes profissionais recusaram-se a ceder seus jogadores: sua associação não era reconhecida pela FIFA e temiam assim perder estrelas para clubes europeus sem nada receber por elas. Assim, a Argentina enviou apenas amadores (e caiu na estreia).

Manuel Ferreira: o elegante criador das jogadas e quem as ensaiava nos treinos. Cérebro do elenco, este meia-esquerda era reconhecido assim também na seleção, pois foi El Nolo o capitão da Albiceleste vice na Copa de 1930, onde protagonizou curiosa anedota: sua única ausência foi contra o México, porque regressou a Buenos Aires para fazer uma prova no seu curso de direito. Já havia sido vice nas Olimpíadas de 1928 e campeão das Copas América 1927 e 1929. Em 1933, foi ao River, sinal de prestígio: o clube vinha anunciado a cada temporada desde 1931 uma contratação bombástica, hábito que daria ao time o apelido de Los Millonarios (em 1931 havia sido Carlos Peucelle, outro vice na Copa 30, e em 1932 o supergoleador Bernabé Ferreyra). Um de seus filhos foi um dos arquitetos do Estádio Único de La Plata.

Enrique Guaita: o pulmão que brigava pelas bolas, compensando com garra e esforço o menor talento em relação aos outros. E na ponta-esquerda El Indio compensava tanto, com chute potente, que foi o único dos cinco a ser campeão do mundo, pois foi titular da Itália em 1934 (fez o gol que eliminou o celebrado Wunderteam da Áustria). Na temporada seguinte à Copa, foi o primeiro estrangeiro artilheiro da moderna Serie A. Mas em seguida deixou o país, acertando com o Racing junto com Scopelli: fugiam da convocação do exército italiano para invadirem a Etiópia, então Abissínia. Foi campeão da Copa América 1937 também, atuando nas duas finais com o Brasil. Só ele, Scopelli e Raimundo Orsi, também campeão em 1934, jogaram oficialmente pela Argentina antes e depois de defenderem outra seleção.

Atualizações após essa matéria – dedicamos entre 2016 e 2019 especiais a cada membro do quinteto. Clique para acessa-los:

Miguel Ángel Lauri: 1º argentino a vencer o Francesão, 1º a defender Argentina e França

110 anos do 1º argentino globalizado: Alejandro Scopelli, jogador da Copa 30

35 anos sem Alberto Zozaya, 1º artilheiro do profissionalismo argentino

Há 35 anos, o primeiro capitão da Argentina em Copas do Mundo passava à imortalidade: Manuel “Nolo” Ferreira, glória do Estudiantes

Enrique Guaita, o índio da seleção italiana fascista campeã da Copa 1934

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O quinteto reunido na velhice, na mesma ordem: Lauri, Scopelli, Zozaya, Ferreira e Guaita

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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