Estudiantes e Gimnasia fazem primeiro clássico em âmbito internacional
O primeiro semestre deste ano reservou uma raríssima ocasião em que a dupla arquirrival de La Plata, Estudiantes e Gimnasia y Esgrima, trilharam bons momentos. Ambos disputaram o título argentino até a última rodada, mas a taça ficou com o River. A boa campanha de ambos os colocou na Sul-Americana, e pela primeira vez o Clásico Platense terá contornos internacionais, cerca de 110 anos após o Estudiantes ser fundado por dissidentes do Gimnasia insatisfeitos com o fechamento em 1905 do departamento de futebol gimnasista (saiba mais), cuja primeira partida, curiosamente, foi contra a Asoaciación Atlética de Medicina – muitos dos primeiros membros alvirrubros eram estudantes de medicina, e sua atividade em dissecar ratos rendeu-lhes o apelido de pincharratas. O futebol voltou ao Gimnasia em 1915.
Nas vitrines, a comparação entre Estudiantes e Gimnasia é um chute em cachorro morto. Os alviazuis só têm um único título argentino, no longínquo 1929 – o campeão mais conhecido foi Francisco Varallo, último sobrevivente da final da Copa 1930: ele, que quase fez carreira no rival (entenda), faleceu em 2010, aos cem anos. Se tornaria o maior artilheiro profissional do Boca, superado exatamente por um ex-Estudiantes, Martín Palermo. Tivesse o Gimnasia vencido há pouco, significaria, para uns, a quebra desse tabu que atingiu gerações de torcedores triperos. Para outros, que só contabilizam os títulos a partir do profissionalismo, implantado em 1931 (visão historicamente mais difundida na imprensa, mas a nosso ver equivocada), a primeira conquista efetivamente seria a de 2014.
O Gimnasia só pôde disputar duas vezes a Libertadores, em 2003 e 2007, caindo na primeira fase em ambas. O Estudiantes tem mais títulos na competição que a maioria dos cinco grandes (mais que River, Racing e San Lorenzo) e chegou a ser justamente o maior vencedor do torneio, até 1972. Some-se a uma Intercontinental (e sobre o Manchester United em Old Trafford: confira) e a seis campeonatos de elite e entende-se que, se há algum “6º grande” no futebol argentino, para muitos seria o Pincha.
Quem vê o desnível de troféus tende a pensar que o clássico sempre foi assim e que a divisão de torcida é desproporcional. Engano. De fato, os alvirrubros vêm ampliando a vantagem nos últimos anos, após renascerem de patamar desde que Verón voltou em 2006. La Brujita, aliás, nasceu em dia de Clásico Platense em que seu pai, o também craque Juan Ramón Verón (que fez gols nas três finais contra o Palmeiras no primeiro título da Libertadores e o do título mundial sobre o United, ambos em 1968), atuou e marcou. Falamos aqui. Já a cidade continua praticamente dividida ao meio entre os dois. A mais famosa gimnasista é a presidente Cristina Kirchner.
Desde a volta de Verón filho, o Gimnasia, que vinha se portando como o mais competitivo clube de La Plata (foi seis vezes vice argentino entre 1995 e 2005), decaiu, foi rebaixado em 2011 e só venceu um dérbi, em 2010. Hoje a diferença está em dezesseis vitórias a mais a favor do Estudiantes. Mas em 2000, por exemplo, ela estava menor que a metade, consistindo em 7. Foi essa a vantagem mais curta que o Estudiantes teve desde os anos 60, quando o clássico ainda era parelho.
Antes de cair em 2011, o Gimnasia seguia na elite desde 1985 e nos vinte anos seguintes, além de lutar mais por títulos, dominou o dérbi. Em 40 disputados no período, só perdeu 8. Passou dez clássicos invictos entre 1986 e 1990, maior sequência de invencibilidade do encontro – se não perdesse aquele em 2010, o Estudiantes igualaria esse recorde. Além disso, comemorou duplamente em 1994, quando foi campeão da Copa Centenário (leia aqui), torneio oficial da AFA para os cem anos da entidade (aos que não consideram o título de 1929, a Centenário é a taça mais expressiva do clube e a única de elite) e viu o rival, com o iniciante Verón, ser rebaixado: confira.
A Copa Centenário, aliás, viu os últimos clásicos, eliminatórios, disputados fora do campeonato argentino até esta quarta-feira. E, logicamente, deu Gimnasia, com o árbitro sendo nocauteado pela torcida alvirrubra. Nos anos felizes dos alviazuis, folclore especial para vitória de 1-0 em 1992 cujo intenso festejo do gol de José Perdomo foi registrado como abalo sísmico pelo sismógrafo da Universidad de La Plata, a 600 metros do estádio. Virou “o gol do terremoto”.
Além dos dois clássicos pela Centenário, outros três torneios além do campeonato nacional tiveram o dérbi platense. E eles registram um pouco das reviravoltas do encontro. O Gimnasia venceu o primeiro, em 1916, mas nova vitória em campo só viria em 1931. Nesse meio-tempo, curiosamente ele foi o classificado na Copa Competencia de 1924, após empatar um clássico e ser declarado vencedor extra-campo do outro após o Estudiantes retirar-se do torneio.
A Copa Competencia opunha clubes do campeonato argentino, que apesar do nome se restringia à Grande Buenos Aires e La Plata, com os do campeonato rosarino. Em 1932, se disputou um clásico na primeira das duas edições da Copa Beccar Varela, tentativa de copa nacional que não vingou. E o Gimnasia, que renascia no dérbi, ganhou de 2-1. No ano seguinte, o clube lutou pelo título argentino com um celebrado elenco apelidado de El Expreso, responsável por fazer os triperos pela primeira vez vencerem os dois clássicos programados no campeonato argentino. Arturo Naón, maior artilheiro do Lobo, estava ali, assim como José María Minella, nome do estádio de Mar del Plata sede da Copa 1978.
O Brasil conheceu bem outro integrante do Expreso: Juan Echevarrieta, que mais tarde faria sucesso no Palmeiras; como explicamos semana passada aqui, ele ainda é o homem com média de gols mais alta no Verdão (fez 103 em 125 jogos) e é o estrangeiro com mais gols nos alviverdes. O Estudiantes também tinha um bom time: no seu ataque chamado Los Profesores havia Manuel Ferreira e Alejandro Scopelli, vices da Copa 1930, e Enrique Guaita, campeão pela Itália em 1934. Scopelli também jogaria pela Itália e só ele e Guaita defenderam a Argentina antes e depois de jogarem por outra seleção. Mas a vitória na Beccar Varela foi a primeira de cinco triunfos seguidos do Gimnasia.
Os alviazuis seguiram fortes na década e entre 1936 e 1939 jogaram seis clássicos e venceram cinco. Naquele momento, tornaram-se os maiores vencedores do dérbi pela primeira vez desde o pioneiro de 1916, chegando a ter 12 vitórias contra dez derrotas. Mas o Estudiantes reverteu isso em pouco tempo, ganhando sete de oito clássicos até 1943, e não mais largou a dianteira de vitórias. Ainda nesse espírito, o Pincha empatou em 3-3 e venceu por 2-1 os dérbis pela Copa Británica de 1945.
Mas, apesar disso, o clássico permanecia equilibrado, incluindo em troféus, até os anos 60. Há meio século, ambos tinham só um título argentino e o do Estudiantes fazia muito mais tempo – fora em 1913. E em 1963 o Gimnasia deu pinta de que poderia ser campeão, mas derrapou na reta final. Mas é daquele ano sua maior goleada no rival, um 5-2, em ano onde os alvirrubros só não caíram pelo cancelamento do rebaixamento. Em 1967, o Estudiantes ganhou seu segundo título (veja aqui) e foi precisamente neste ano que abriu pela primeira vez dez vitórias a mais de vantagem, em um 3-0 com gol de Verón pai, por sinal. Aliás, foi o último jogo antes dos mata-matas decisivos.
Até 2006, as maiores goleadas do clássico eram 6-1, sempre do Estudiantes: em 1932, com dois de outro Profesor, Alberto Zozaya, dois de Guaita, um de Ferreira e um do uruguaio Héctor Manco Castro, campeão da Copa 1930; em 1948, com um de Manuel Pelegrina, maior artilheiro do dérbi, um de Juan Gagliardo, um de José Barreiro e três de Ricardo Infante (falamos dele aqui), que posteriormente jogaria no Gimnasia; e, talvez a mais especial, um naquele mágico 1968: foi com dois de Eduardo Flores, dois de Juan Echecopar e um de Marcos Conigliaro e Néstor Segovia. Em plena casa rival.
As más sortes do Gimnasia incluíram um grande momento em 1970 (foi goleado em um clássico por 4-1 e conseguiu devolver o placar no dérbi do returno) ser ofuscado pelo rival obter pela 3ª vez, seguida, a Libertadores. Os alviazuis, onde brilhavam o mitológico goleiro Hugo Gatti e o goleador Delio Onnis, chegaram às semifinais nacionais, mas uma greve interrompeu o campeonato e os fez perder o embalo. Na retomada, foram eliminados. Em 1995, eram líderes na última rodada e um empate em casa com um time misto do Independiente dava o título, que viria mesmo com derrota, caso o San Lorenzo não vencesse fora de casa o Rosario Central. Deu San Lorenzo, que não era campeão havia 21 anos. E, paralelamente, os triperos tiveram de aguentar a volta do rival à elite.
O primeiro clássico após o retorno do Estudiantes foi no estádio gimnasista e os alvirrubros não poderiam usar Martín Palermo e o jovem Juan Sebastián Verón. Mesmo assim, apesar no longo período de má fase que atravessavam no encontro, venceram por 3-0, gols de Sergio Catán e José Luis Calderón. Verón só estreou mesmo no dérbi em 2006, após regressar: fora vendido ao Boca no início de 1996 e, ainda iniciante, não jogara o clássico pouco antes do rebaixamento em 1994 (em que o Gimnasia venceu por 2-1, no único gol de Gustavo Barros Schelotto, gêmeo de Guillermo, no clássico).
E La Brujita não poderia ser mais auspicioso ao time do coração. Sua estreia foi o maior massacre já visto no encontro. Um 7-0 com destaque especial a outros três gols de José Luis Calderón no clássico. Diego Galván (duas vezes), Mariano Pavone e Pablo Lugüercio completaram. Como tudo pode ficar melhor, naquele campeonato o Estudiantes voltou a ser campeão depois de 23 anos. E com nova casquinha sobre a torcida rival: o concorrente era o Boca, que venceu o Gimnasia em La Plata após os torcedores gimnasistas pressionarem o próprio time para perder. Dava resultado até a reta final – o Boca seria campeão se empatasse um dos dois últimos jogos.
Só que os auriazuis perderam os dois e foram igualados na pontuação pelo Estudiantes, o que forçou um jogo-extra onde o Boca ainda saiu na frente. Mas o Estudiantes, cujo técnico era Diego Simeone ainda começando na nova profissão, virou, coroando uma arrancada sensacional. Apenas em 2014 é que o Pincha voltou a vencer o clássico dentro da casa rival, após aquele triunfo de 1995. Mas Juan Sebastián Verón não poderia simbolizar de melhor forma o reerguimento alvirrubro após anos de sofrimento, pois ele, recém-aposentado, só perdeu uma única vez o dérbi, naquele 3-1 em 2010. Motivos extras para idolatria? Ele, é claro, marcou o gol de honra.
Se o Estudiantes vencer nesta quarta, abre 17 vitórias de vantagem, algo sem precedentes no clássico. A margem atual, de 16, já havia existido em 1976. Se esses dois clássicos da Sul-Americana serão os mais expressivos, pode-se afirmar que o momento mais baixo do dérbi veio em 1972, quando a dupla precisou jogar o Reclasificatorio, uma miniliga em turno único entre os seis últimos para definir os dois rebaixados. E o 2-2 daquela ocasião traduziu bem como a má fase era conjunta – ao menos no caso do Pincha, dá para concluir que o nome Verón (o do pai, claro) novamente brilhou, mas pela ausência, pois havia ido jogar no Panathinaikos em 1971…