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Recortes da carreira de Di Stéfano

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Para o luto do futebol em plena Copa do Mundo (ou assim deveria ser encarado), Alfredo Di Stéfano, maior craque a jamais jogar o torneio, pendurou para sempre suas chuteiras ontem, passando a fintar no infinito. É alguém de vida bem detalhada no Wikipédia portuguesa, que reconheceu o verbete sobre ele oficialmente como destacado. Aperfeiçoei esse verbete para que chegasse neste ponto. Por isso, como já fiz com especiais sobre Doval e Ricardo Bochini (outros de verbetes que deixei extensos naquele site), aqui serão reunidas só algumas anedotas. A ênfase maior é no futebol argentino, é claro.

Alfredo Di Stéfano teve um filho com esse mesmo nome e seu pai, ex-jogador do River (em 1915), também se chamava assim. Um tio seu, Dante Pertini, também jogara no clube (e na seleção), nos anos 20. Mas, mais do que eles, quem o fez ingressar nos millonarios foi outro ex-jogador do clube: Alejandro Luraschi, o primeiro goleiro histórico da instituição, pois foi o titular na campanha que colocou o River pela primeira vez na elite, em 1908 – falamos disso aqui. Visitando os Di Stéfano, Luraschi ouviu de Eulalia Laulhé Gilmont, mãe de Alfredito, que o garoto era bom de bola. E o ex-goleiro, na época eletricista, foi a ponte entre o Millo e a promessa.

Di Stéfano estreou no River em 1945 e o time, após um bi seguido do rival Boca, voltou a ser campeão. Mas a novidade só jogou uma vez, contra o Huracán, em derrota por 2-1 no estádio do San Lorenzo. O centroavante riverplatense titular era Adolfo Pedernera, a quem o próprio Di Stéfano já declarou no passado ter sido o melhor jogador que já viu – humilde, Don Alfredo já disse que era inferior tecnicamente também que Cristiano Ronaldo. Pedernera compunha o mais célebre quinteto ofensivo de La Máquina, como aquele River era apelidado, e também do futebol argentino como um todo.

O tal quinteto era composto por Juan Carlos Muñoz na ponta-direita, José Manuel Moreno como meia ofensivo direito, Pedernera de centroavante, Ángel Labruna de meia ofensivo esquerdo e Félix Loustau na ponta-esquerda. Já fizemos especiais sobre Moreno (aqui), Labruna (aqui) e Loustau (aqui). Sem espaço no River, em 1946 Di Stéfano foi emprestado ao próprio Huracán, que no ano anterior se despedira do seu maior goleador: Herminio Masantonio, na época segundo maior artilheiro do futebol argentino (depois, foi superado por Labruna). Masantonio é até hoje também quem tem melhor média de gols pela seleção dentre as que jogaram por ela mais de dez vezes: marcou 21 em 19 jogos.

Atualização em 12-05-2015: nesta data publicamos também especial sobre Pedernera – clique aqui.

No Huracán, Di Stéfano jogou ao lado do maior artilheiro da Copa América (com 17 gols), Norberto Tucho Méndez, sobre quem falamos aqui. Também estavam no ataque os pontas Juan Carlos Salvini e Llamil Simes, que fariam sucesso com Méndez no Racing tricampeão de 1949-51, o primeiro tri seguido do profissionalismo argentino. Mas eles não bastaram para que o Huracán, então ainda visto como “sexto grande” do país, não fosse além de um nono lugar em 1946.

Ainda assim, a passagem de Di Stéfano pelo Huracán não foi ruim: chegou a marcar dois gols em vitória sobre o rival San Lorenzo, campeão daquele ano. E, em 21 de julho, marcou outro com tão somente 8 segundos de jogo, por muito tempo o mais rápido do futebol argentino. A vítima foi justamente o River, no Monumental – o ex-clube terminaria vencendo por 3-1. O recorde durou até 1979 e desde então é de Carlos Seppaquercia, que com 4 segundos fez um gol pelo Gimnasia LP justo sobre o Huracán.

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Huracán, talvez a etapa menos conhecida de sua carreira. No meio, assistindo uma preliminar no estádio do clube

Em 1947, o nanico Atlanta, buscando ser a sensação do campeonato, contratou vários astros da época, sobretudo Pedernera e até um então desconhecido Ghiggia (falamos aqui). Sem Pedernera, o River exigiu um valor alto demais para que o Huracán comprasse Di Stéfano em definitivo e trouxe de volta a promessa. A Flecha Loira enfim triunfou: o Millo foi campeão e ele, o artilheiro do campeonato. Por ironia, o projeto do Atlanta naufragou e o novo clube de Pedernera seria rebaixado se perdesse para o River na última rodada. Perdeu com gol de Di Stéfano e aquele foi o primeiro rebaixamento do clube.

O grande desempenho de Di Stéfano o fez ser convocado para a Copa América ao fim daquele ano. Mas ele não era o titular: o dono da posição de centroavante era René Pontoni, hoje mais conhecido fora da Argentina como o ídolo da infância do Papa Francisco – era daquele San Lorenzo campeão de 1946. Escrevemos aqui sobre Pontoni, que passaria pela Portuguesa de Desportos. Pontoni tinha média de gols só um pouco abaixo do tal Masantonio, pois fez 17 em 17 jogos pela seleção. Era exatamente quem concorria nos anos anteriores com Pedernera para centroavante da Albiceleste.

Em 4 de dezembro, Pontoni já havia feito um dos gols em goleada sobre a Bolívia quando uma lesão o obrigou a deixar o campo ainda aos 30 do primeiro tempo. Di Stéfano estreou pela seleção substituindo-o e já ali conseguiu marcar seu primeiro gol pela Argentina. Terminou 7-0, com os mencionados Méndez (duas vezes) e Loustau marcando também. Os seis jogos de Di Stéfano pela seleção se deram naquele espaço de 20 dias em Guayaquil, no Equador. E, como Pontoni, conseguiu média de um gol por jogo, pois marcou seis vezes. Ele jamais defendeu o país na terra natal. Ironicamente, jogaria lá já pela seleção espanhola, enfrentando os velhos compatriotas.

A Argentina terminou campeã daquela Copa América, título que a fez ultrapassar o Uruguai e se tornar isoladamente a maior campeã continental. Perderia esse posto quarenta anos depois, em 1987, o retomaria em 1993 e só voltou a perdê-lo na última edição, em 2011. Era o terceiro título seguido da Albiceleste na competição, até hoje o único tri consecutivo já visto no torneio.

Enquanto o River era campeão de 1947, o Huracán contratou para substituir Di Stéfano o paraguaio Arsenio Erico, o maior ídolo do craque: era justamente quem superava Masantonio como maior artilheiro do futebol argentino, marca ainda sua. “A vida toda quis ser um imitador seu”, escreveu-lhe Di Stéfano após parar de jogar. Erico é o maior goleador da história do Independiente, mas passou em branco nos seus nove jogos pelo Huracán. A maior plateia já vista no campeonato em jogo sem envolver nenhum dos cinco grandes (Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo) foi justamente entre o Huracán de Erico e o Atlanta de Pedernera em 1947. Em 1948, o Huracán apostaria no próprio Pedernera.

Atualização em 30-03-2015: para saber mais de Erico, clique aqui.

Di Stéfano não jogou mais vezes pela seleção porque ela não fez jogos em 1948 e em 1949, seus últimos anos jogando no futebol argentino. Foram os anos de uma grande greve dos jogadores que, embora profissionais, se consideravam quase escravos dos clubes e lutavam por melhores condições trabalhistas. A greve foi longa, mas não foi atendida. Em agosto de 1949, com relação péssima com os dirigentes do River, Di Stéfano rumou ao atrativo Eldorado Colombiano, que importaria muitas daquelas estrelas argentinas, como os próprios Pedernera e Pontoni, dentre outros.

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Em 1947, campeão e artilheiro, enfim triunfou no River. O time celebrou em um cabaré e Di Stéfano é o segundo da fileira de trás, com o contrabaixo. A seu lado, Labruna com maracas. Na imagem à direita, ele no Millonarios com o “concorrente” René Pontoni, do rival Santa Fe

O futebol argentino conservou alguns craques, mas a perda significativa fez com que o próprio presidente Juan Domingo Perón ordenasse, temeroso de um vexame, que a seleção sequer participasse das eliminatórias às Copa de 1950 e 1954. Mas mesmo que esse lamentável radicalismo não ocorresse e a Argentina jogasse essas Copas, muito provavelmente Di Stéfano não as jogaria: só a partir dos anos 70 é que a seleção passou a admitir jogadores do exterior. Nem mesmo Atilio García (leia aqui), que brilhava no tão vizinho Uruguai nos anos 40 – é o maior artilheiro do Nacional e do campeonato uruguaio -, recebia chances, por exemplo, e por isso mesmo resolveu jogar pela Celeste.

A associação colombiana fazia sucesso, mesmo descredenciada pela FIFA por diversos desrespeitos de regras financeiras em tempos em que a entidade estava longe de ser tão empresarial. O mal estar com o aliciamento de diversos jogadores sul-americanos, porém, a fez assinar um pacto de que eles continuariam seus até outubro de 1954, com possível prorrogação até 31 de dezembro. O Millonarios de Bogotá, clube de Di Stéfano e Pedernera (que enfim jogaram juntos), era quem mais brilhava e chamou a atenção na Espanha: o Real Madrid o convidou para amistoso para celebrar os 50 anos do time madrilenho, em 1952. Di Stéfano arrebentou e os colombianos ganharam por 4-2.

A sua relação com o futebol colombiano, apesar do sucesso, parecia gasta também: no natal de 1952, ele anunciou que queria ir embora e voltou a Buenos Aires. O Millonarios não aceitou perdê-lo a acionou a FIFA (que reconhecera a liga pirata após o pacto), que advertiu todas as suas federações que o jogador não deveria ser contratado por ninguém enquanto o contrato com o time de Bogotá vigorasse. Di Stéfano até chegou a pensar em parar de jogar, mas seguiu por mais uns meses no Millonarios. Na Pequena Taça do Mundo de 1953, marcou dois gols em um 5-1 no seu ex-River, em fevereiro.

Já aquela sua exibição naquele jogo com o Real Madrid chamou a atenção do Barcelona, que iniciou conversações para contratá-lo: o principal astro blaugrana, o húngaro Ladislao Kubala, estava com tuberculose. Em maio de 1953, Di Stéfano chegou à Catalunha. O presidente barcelonista Enrique Martí já havia fechado com o River por 4 mil dólares mas não chegava a um acordo com o Millonarios, que exigia 27 mil. Era necessário negociar com os dois clubes pois, por aquele pacto, o Millonarios era dono de Di Stéfano até 31 de dezembro de 1954 e o River voltaria a ser a partir de 1 de janeiro de 1955.

O Real Madrid então entrou na disputa: um enviado do clube foi a Bogotá com os 27 mil dólares por Di Stéfano e conseguiu do River garantias de neutralidade em eventual conflito entre Real e Barcelona pelo jogador. A situação era essa: por interferência daquele pacto, Di Stéfano passaria a ser do Real até o fim de 1954, pois o clube madrilenho não o comprara do River, que teria os direitos sobre o jogador a partir de 1955 e já os tinha vendido ao Barcelona. Com esse conflito, a federação espanhola não autorizou o uso de Di Stéfano por ninguém enquanto não houvesse uma solução.

Sentindo-se abandonado pelo Barcelona, o argentino irritou-se ainda mais ao ser quase negociado com a Juventus sem ser consultado. A federação apontou uma solução salomônica: Di Stéfano jogaria pelo Real Madrid a temporada 1953-54 e pelo Barcelona na de 1954-55, voltando ao Real na posterior e ao Barça na subsequente. A dupla de início concordou. Em setembro de 1953, Di Stéfano era inscrito como jogador do Real Madrid e Enrique Martí renunciava à presidência do Barcelona após as gafes.

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À esquerda, perfil de Di Stéfano no “manual de esportes do Cascão”, lançado em 1997 (e por onde conheci o jogador). À direita, a santíssima trindade argentina

O Barça, no mês seguinte, com Kubala já plenamente recuperado, declarou que julgava-se grande demais para compartilhar um jogador tão conflitivo e que, fora de forma, não empolgara logo de início na Espanha (perdeu na estreia por 4-2 para o Nancy, embora tenha marcado um gol). Renunciou a seus direitos sobre o craque e assinou isso antes de jogo contra o Real Madrid no dia 25. Perdeu de 5-0, com Di Stéfano marcando dois. Ali começava a era de ouro do clube da capital. Na época, o Real Madrid atravessava jejum de vinte anos na liga e com menos títulos nela que Barcelona e até Atlético de Madrid, Athletic de Bilbao e Valencia – consegue-se imaginar isso hoje? Ele ainda viraria amigo do próprio Kubala, com quem pôde jogar pela Espanha e em amistosos comemorativos do Barcelona. Aceitou jogar no Espanyol no fim da carreira porque Kubala era o técnico.

Di Stéfano foi campeão espanhol pelo Real já na temporada da estreia e ao fim da década já fazia do time o maior campeão do torneio. Venceu seguidamente as cinco primeiras Ligas dos Campeões, marcando em todas as finais. Mas, em tempos em que o futebol não era tão movido a dinheiro, ele chegou a jogar amistosos comemorativos pelos rivais Barcelona e Atlético, que, por protocolo ou não, emitiram notas oficiais de pêsames pela morte do craque: veja a do Atleti (cujo presidente declarou no velório que Di Stéfano “não somente fez grande o Real Madrid mas a todo o futebol espanhol”) aqui e a do Barça aqui. Pelé já declarou sua preferência por ele ao indagado sobre um rival argentino para si. Se enfrentaram só uma vez, ao menos por seus clubes: Real Madrid 5-3 Santos, em 1959.

Foi no exterior que Di Stéfano entrou para os titãs do futebol. Na Argentina, era “só” um veloz centroavante hábil em manter a bola perto do pé naquela geração de ouro dos anos 40, tão boa que, embora aquele tri da seleção na Copa América fosse em três anos seguidos (1945-46-47), só cinco jogadores estiveram nos três: dentre eles, os mencionados Pontoni, Méndez e Loustau, o único que titular em todas. À revista El Gráfico em 1983, meses antes de falecer naquele mesmo ano, Labruna elencou Di Stéfano não entre os maiores argentinos, mas entre os maiores estrangeiros. De fato, na época o nível do futebol argentino era mais exigente que o europeu.

“Ele só entra na minha relação pelo que fez na Europa”, justificou Labruna, que poderia ter sido movido pelo ciúme também: após seis anos de sucesso treinando o River Plate, de 1975 a 1981, livrando o clube de um jejum de dezoito anos sem títulos e conquistando oito, Labruna foi demitido por não conseguir o mesmo sucesso na Libertadores. Seu substituto foi justo Di Stéfano, campeão ainda em 1981, no que acabou sendo histórico: Don Alfredo treinara o Boca campeão em 1969 (sobre o River no Monumental e com 86% de aproveitamento). Até hoje é o único técnico campeão na dupla.

Com a morte de Di Stéfano, aquela celebrada geração argentina dos anos 40, apontada como capaz de ter sido campeã do mundo se a Segunda Guerra e a greve não impedissem, perde também um de seus últimos remanescentes. Pode-se dizer que o último astro ainda vivo é o ex-goleiro Amadeo Carrizo, outro a estrear pelo River (do qual é atual presidente de honra assim como Don Alfredo era no Real) em 1945. Di Stéfano já declarou que teria feito ainda mais gols se Carrizo seguisse jogando com ele na Colômbia e na Europa, em alusão aos proveitosos lançamentos que o goleiro fazia aos atacantes. Abaixo, links de diversos especiais do site a terem A Flecha Loira como protagonista e a homenagem em vídeo de final dos mais comoventes feita pelo Real Madrid, sob “My Way” de Frank Sinatra, e outro com palavras de Carrizo sobre a morte do ex-companheiro.

A cena final do vídeo do Real é do filme La Batalla del Domingo, de 1963, um dos três em que Di Stéfano foi ator, junto de Con los Mismos Colores (1949, em que ele, Méndez e Mario Boyé, do Boca, gravaram em meio à greve para ter algum dinheiro, interpretando amigos de infância que viravam jogadores profissionais de clubes rivais e ao fim se uniam na seleção) e Once Pares de Botas (1954). No humorístico La Batalla del Domingo, ele, descontente com relatos infiéis aos fatos, interpreta a si mesmo interferindo metalinguisticamente em um filme sobre sua vida que seria lançado por conta de sua despedida do Real. Na história, o diretor então aceita as exigências de Di Stéfano em retratá-lo como um homem comum. No fim, ele é indagado se quer que alterem também o final e se está emocionado: “um pouco. Todas as despedidas são tristes. Algum dia tem que ir-se. Lhe custa. Dói. Porque aqui está o melhor da minha vida”.

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Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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