Meia década da emocionante e polêmica final de Huracán e Vélez
“Meu velho era muito torcedor do Vélez e vivi a situação sonhada por ele. Eu sei que meu velho sempre esteve aí durante o campeonato, eu percebia sua presença; nas situações-limite, quando me complicava o jogo, sei que ele estava e me dava tranquilidade, senti a cada instante sua presença. [Em 1971 eu] tinha 13 anos e fomos ao campo, de mandante íamos sempre e de visitante uma vez ou outra. (…) Lembro que o Huracán não tinha nada a perder essa tarde e que o Vélez antecipou o festejo do campeonato, já tinha toda a festa pronta. Isso é complicado. E não me esqueço mais de como as pessoas rompiam os carnês de sócios. É uma imagem muito forte”.
A declaração acima foi feita em 2009 pelo atual técnico palmeirense, Ricardo Gareca, meses após ser campeão do Clausura treinando o time do coração, o Vélez. Título que cicatrizou algumas feridas: como jogador, Gareca passou pelo clube no fim da carreira, mas não conseguira taças. E deixou-o justamente no semestre em que o Fortín passou a ser uma máquina de títulos, em 1993. A outra durava desde aquele fatídico jogo em 1971: então time de expressão restrita a seu bairro de Liniers, o líder Vélez, campeão pela primeira vez em 1968, tinha tudo para faturar seu segundo título argentino. Na última rodada, pegaria em casa um irregular Huracán. E abriu o placar no primeiro minuto.
Só que o improvável aconteceu para o então goleador Carlos Bianchi (autor de 41 gols naquele ano) e colegas. O Huracán virou o jogo, em grande desempenho de Narciso Doval, emprestado pelo Flamengo. Paralelamente, o segundo colocado Independiente venceu o seu e foi campeão. O vídeo abaixo mostra bem o desespero dos velezanos; sua ascensão teria de esperar mais de vinte anos, com a segunda taça só vindo mesmo em 1993, com Bianchi já de técnico. Mas depois os títulos não pararam: hoje são dez nacionais, uma Libertadores, uma Supercopa, uma Recopa e uma Intercontinental, tornando-o mais do que postulante a “sexto grande”. Posto que era justo do Huracán.
Essa história de “sexto grande” remonta décadas. Oficialmente, a AFA considerou nos anos 30 que grandes eram Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo. Quem mais se aproximava de ser um sexto era o Huracán, pelos numerosos títulos no amadorismo e que vez ou outra ameaçava brigar por mais. Por muito tempo ele foi visto mesmo como sexto grande, mas o jejum de 45 anos entre 1928 e 1973 atrapalhou, assim como títulos de “pequenos” cada vez mais atrevidos. O Huracán, como um nobre decadente que não se adaptou à modernidade, se especializou em viver do passado.
httpv://www.youtube.com/watch?v=1DkC_X7wAzA
Pequenos trocos não faltaram ao Vélez. Em 1998, o time chegou a seu quinto título (mesma quantidade arrecadada pelo Huracán até hoje) vencendo justamente o estraga-prazer de 1971. Um ano depois, empatou fora de casa e praticamente condenou-lhe ao rebaixamento, o segundo da história huracanense – nenhum grande caiu duas vezes na Argentina até hoje. Mas nenhum foi tão cruel como aquele de cinco anos atrás. Aquele ex-rico vinha reaprendendo a ganhar. E não só ganhava como encantava.
Mas o campeonato não se disputou só entre o velho e o moço. O Lanús, emergente do novo século, também esteve no páreo na maior parte, embalado pelo artilheiro Sand (que chegou a marcar quatro gols em um 5-1 no Independiente), o talentoso Valeri, o meia-armador Blanco (inserido por Maradona na pré-lista de convocados à Copa 2010), alguns gols de Salvio e o último brasileiro de sucesso na Argentina, Jadson Vieira. Campeão pela primeira vez dois anos antes, o Granate foi o líder do trio da 4ª à 8ª das 19 rodadas e a retomou entre a 14ª e a 16ª. Porém, se atrapalhou na reta final. Levou de 4-1 do San Lorenzo na antepenúltima rodada, foi ultrapassado pelos outros dois e na rodada seguinte o outrora líder deu adeus às chances de título ao empatar em casa com o Vélez.
La V Azulada chegara a ser líder da 9ª à 13ª rodada e tinha no seu forte a boa regularidade: raramente tropeçava, perdendo uma única vez: um 3-1 fora de casa para o Gimnasia LP exatamente na 14ª rodada, quando perdeu a liderança para o Lanús. Só que os comandados de Gareca empatavam demais: foram sete igualdadas. Venceram 11, uma a menos que Huracán e Lanús, por exemplo. O Globo começou com tudo, com duas vitórias seguidas, com a segunda sendo um 4-1 fora de casa no Racing (dois gols de Defederico). Só que naquele início de campeonato, cambaleou: perdeu duas seguidas após a goleada e perdeu as três entre a 7ª e a 9ª rodada. Àquela altura, ficou a 6 pontos do líder Vélez e a 5 do Lanús.
E aí os comandados do técnico Ángel Cappa embalaram. Da 10ª à 18ª e penúltima rodada, só não venceram uma, um empate fora de casa com o Estudiantes em 1-1 – ironicamente, sofreram gol de Christian Cellay, cria e torcedor do Huracán. Essa série de vitórias incluiu um 4-1 no Argentinos Jrs, um 1-0 fora de casa no Tigre (último vice-campeão), 3-2 no Godoy Cruz, 4-0 no River, 2-1 no Rosario Central fora de casa, 2-1 no Banfield, 1-0 no clássico com o San Lorenzo fora de casa e 3-0 no Arsenal. O 3-0 no Arsenal na penúltima rodada aliado ao empate entre Vélez e Lanús repôs o Huracán na liderança que abandonara após a 3ª rodada. Os gols foram marcados por alguns dos destaques daquele belo elenco: Bolatti, Toranzo (que marcaram também nos 2-1 no Banfield) e Defederico. Era o estilo tik-tik.
O bom zagueiro Goltz, hoje de sucesso no Lanús e tão pedido pelos argentinos para jogar a Copa 2014, fez o da vitória sobre o San Lorenzo, que não perdia o clássico desde 2001 – isso porque só usara reservas naquela ocasião, por estar paralelamente focado na final da Copa Mercosul com o Flamengo. E a derrota azulgrana anterior à de 2001 como mandante havia sido em 1991. Bolatti e Toranzo marcaram também nos 4-1 sobre o Argentinos Jrs e Goltz e Defederico fizeram os seus no 3-2 sobre o Godoy Cruz. Os quatro ganharam oportunidades na seleção na época. O último huracanense nela havia sido em 1996, o lateral Pineda, da Copa 1998.
Mas a grande revelação era Pastore. Fez os dois gols da vitória sobre o Central em Rosario e outros dois no impiedoso 4-0 no River: um cruzado de fora da área e outro tocando na saída do goleiro após receber de Defederico e driblar de caneta Nicolás Sánchez. Também deu o passe para o gol do estreante Medina após triangulação com Toranzo, que marcou o último ao emendar de fora da área um rebote. Pastore ainda deixou outros dois em um 3-0 no concorrente Lanús, ainda no início do campeonato, e outro naqueles 4-1 no Racing. E também foi à seleção (ele e Bolatti acabariam chamados à Copa 2010, com Bolatti marcando o da classificação ao mundial inclusive sobre o Uruguai no Centenário). Mas o que marcou foi mesmo os 4-0 sobre Falcao García e colegas, que tiveram a misericórdia do árbitro Sergio Pezzota: o juiz encerrou o massacre antes dos 45 minutos regulamentares.
Por acaso, a última rodada opôs quem ainda podia ser campeão. O Vélez vencera os quatro jogos anteriores àquele empate com o Lanús na rodada anterior. Mas a série impressionante do Huracán o credenciava como favorito. Especialmente porque não perdia havia onze jogos, a única hipótese em que perderia a taça. E porque, no semestre anterior, ganhara do mesmo Vélez por 3-0 (um de Defederico, um de César González e, claro, um de Pastore). Tinha o melhor ataque, com 35 gols. Só que, além do fator casa e ter mais fogo sagrado em decisões, o Vélez tinha a melhor defesa, com 13. A revelação nesse sentido foi Otamendi, hoje no Atlético Mineiro. Também foi à Copa 2010.
O Vélez só venceu uma vez por mais de dois gols de diferença naquele torneio, um 4-0 no Godoy Cruz com dois de Maxi Moralez e um de Larrivey, justamente os protagonistas velezanos daquela épica tarde de 5 de julho de 2009. Mas também teve seus episódios de destaque, como quando virou para 4-2 um jogo que perdia fora de casa por 2-0 para o Colón (gols de Cristaldo, dois de Hernán López e outro do ex-Corinthians Juan Manuel Martínez) ou quando, também perdendo por 2-0, soube empatar com o Racing (gols de outro ex-Corinthians, o zagueiro Sebá Domínguez, e Víctor Zapata). E o jogo com o Huracán também seria uma tarde tremenda.
Se Moralez e Larrivey foram os protagonistas velezanos, foi porque infelizmente o da partida foi a arbitragem conduzida por Gabriel Brazenas, desde cedo: aos 8 minutos, após cobrança de falta, anulou-se um gol legal de Eduardo Domínguez (ex-Vélez) para o Huracán – os velezanos alegam que, por outro lado, seu jogador Zapata sofreu nessa jogada falta não marcada ao querer adiantar-se para deixar Domínguez impedido. O impedimento foi pela posição realmente irregular de Goltz, mas ele não participou da jogada. Dez minutos depois, veio uma chuva de granizo que, longe de esfriar a tensão, só serviu para interromper o jogo por meia hora. Quando a partida pôde ser retomada, o Vélez teve um pênalti a seu favor. Mas Monzón pegou a cobrança de Hernán López. Ambos os times tiveram suas chances depois: o velezano Velásquez teve até gol (bem) anulado. Por outro lado, Otamendi, que já havia sido amarelado, merecia o vermelho em uma falta forte sobre Goltz no início do segundo tempo.
Com o tempo se passando e nada do placar ser aberto, o Huracán passou a cozinhar o empate. Aos 35, Arano entrou com os dois pés no joelho de Cubero dentro da área, mas Brazenas não deu pênalti ao Vélez nem advertiu Arano. Mas aos 38 minutos do segundo tempo veio a polêmica maior. Moralez lançou Larrivey, um ex-Huracán considerado ídolo lá: quando o Clarín publicou livro em 2008 sobre o centenário huracanense, pôs Larrivey como o mais recente dos cem maiores ídolos da clube; fora o goleador da campanha que recolocara o Globo na elite, em 2007. Há cinco anos, chocou-se com o goleiro Monzón, que nisso soltou a bola. Brazenas não interrompeu e Moralez pegou a sobra e marcou com o gol vazio. Em seguida, por tirar a camisa, foi expulso.
O Huracán, mesmo com um a mais e com a partida tendo quatorze minutos de acréscimo, se desestabilizou. As demoras nas devoluções de bolas que saíam do campo foi o estopim final para o sereno Ángel Cappa também perder a calma. Larrivey quase fez 2-0 e terminou agredido por ex-colegas. O golpe não foi superado ali nem depois: apesar do vice, o Huracán não se classificou à Libertadores nem à Sul-Americana seguintes e segue sem ser campeão da elite desde 1973 e em 2011 terminou rebaixado enquanto o Vélez, que antes daquele dia de cinco anos atrás não era campeão havia outros quatro, somava mais um título com o técnico Gareca. Em 2012 e 2013, vieram outros.
O Globo, por sua vez, segue na segundona e bem longe da glória que lhe escapou por uma bola dividida. Polêmica que comoveu até José Sanfilippo, maior artilheiro do rival San Lorenzo (e do clássico entre os dois). Falamos a respeito em link fornecido abaixo, assim como outros que o Futebol Portenho publicou na época. Foi o primeiro campeonato argentino coberto pelo FP, criado em abril daquele 2009.
Diretorias de Vélez e Huracán divergem com relação a final
Torcida do Huracán esgota entradas em menos de 2 horas
Vélez e Huracán definem o campeão em grande jogo
Vélez é campeão do Clausura 2009
Assim o Vélez chegou ao título
Cappa: “Se equivocou em dois lances que nos tirou o título”
Brazenas não viu falta no lance do gol
Brazenas admite que errou na final
“Se ficar impune, o futebol argentino não terá remédio”, diz Cappa
Brazenas: o Simon argentino.