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80 anos da pior Copa da seleção argentina

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Devincenzi, único dos amadores a se acertar na Europa (foi à Inter após a Copa) não pôde com Rydberg

A Argentina não costuma se dar bem com a Suécia em Copas. Seus piores desempenhos foram relacionados aos escandinavos. Em 2002, o empate eliminou prematuramente o ótimo elenco de Bielsa (leia aqui). Em 1958, não enfrentou a seleção da casa, mas de candidata ao título caiu também na primeira fase, sofrendo sua derrota mais elástica até hoje (6-1 para a Tchecoslováquia: veja aqui). Mas, objetivamente, a pior campanha foi na Copa 1934, ainda que moralmente tenha saído com alguma honra. A eliminação veio logo no primeiro jogo, em um 27 de maio, fazendo hoje 80 anos.

As trajetórias de Brasil e Argentina no primeiro mundial da Itália foram parecidas. Ambos se classificaram automaticamente pela desistência dos oponentes nas eliminatórias. E a preparação dos dois foi muito prejudicada pelo bate-boca entre as associações nacionais reconhecidas pela FIFA, que oficialmente eram amadoras (embora o chamado “amadorismo marrom”, o pagamento discreto aos jogadores, já fosse muito comum), e recentes ligas profissionais, formadas pelos clubes mais fortes.

No Brasil, a ruptura veio em 1933. O time mais expressivo a manter-se amador àquela altura foi o Botafogo, que por isso foi a base dos convocados. E muitos dos não-botafoguenses foram aliciados pela CBD via o clube, ironicamente sob promessas de gordas recompensas. Três dos quatro são-paulinos, Armandinho, Sylvio Hoffmann e Waldemar de Brito (descobridor de Pelé e que em 1935 iria ao San Lorenzo), acabariam indo ao alvinegro após o mundial, sendo campeões cariocas em 1934. Assim como o vascaíno Leônidas da Silva e o atacante Patesko, que vinha do Nacional uruguaio.

Na Argentina, algo parecido se passou, apesar dos pedidos da própria FIFA e da Federação Italiana para que a seleção viesse com seus principais jogadores. Mas os clubes profissionais, dissidentes da associação argentina desde 1931, não cederam: uma preocupação era que, não sendo reconhecidos pela FIFA, não veriam nenhum dinheiro caso suas estrelas acabassem seduzidas por ofertas europeias e acabassem ficando pelo Velho Continente. No Brasil, o Palmeiras chegou a “sumir” com seus jogadores em concentrações diferentes a cada dia justamente por esse medo.

Assim, grandes astros argentinos não puderam disputar uma única Copa. Isto porque o país, descontente com a de 1938 ser novamente na Europa e não na América do Sul, onde presumia-se que os hermanos seriam anfitriões, desistiu de participar do mundial seguinte. E os astros dos anos 30 que ainda rendiam na década seguinte ficaram impedidos pela Segunda Guerra Mundial.

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Os amadores a bordo do Neptunia, navio que os levou à Itália

Dos monstros dos anos 30 sem Copa, pode-se destacar os superartilheiros Bernabé Ferreyra (187 gols em 185 jogos no River), Evaristo Barrera (136 em 142 no Racing) e Herminio Masantonio (270 em 366 no Huracán), que tem até hoje a melhor média na seleção por quem jogou nela mais de dez vezes: 21 em 19. Também os sanlorencistas Diego García (164 em 296), Ricardo Alarcón (77 em 128) e Genaro Canteli (70 em 123) e o multi-homem Antonio Sastre (Independiente, depois ídolo no São Paulo), foram outros “sacrificados” por essas querelas, bem como Juan Echevarrieta, do celebrado elenco do Gimnasia LP apelidado de El Expreso e que depois seria o estrangeiro com mais gols no Palmeiras.

Sem alternativa, buscou-se jogadores da liga amadora, cujo campeonato esvaziado após 1931 iria remanescer até aquele mesmo ano de 1934; e de clubes do interior não afiliados à associação argentina, na época ainda restrita à Grande Buenos Aires e La Plata, apesar do nome. Como os principais rosarinos e os principais cordobeses também haviam aderido ao profissionalismo, a convocação interiorana chamou jogadores do Nordeste (Chaco e cidade de Santa Fe) e da região do Cuyo, quase na fronteira chilena e que abrange dentre outras as províncias de Mendoza e San Juan.

Do interior, vieram do Unión de Santa Fe a dupla ofensiva Alberto Galateo e Federico Wilde, apelidada por lá de “Festa Pirotécnica do Futebol” (Wilde poderia nem ter ido: o River acertara sua contratação em 1932, mas ele não quis sair do Tatengue). O rival Colón cedeu Ramón Astudillo. Da vizinha província do Chaco, o único homem até hoje vindo do Sarmiento de Resistencia, o goleiro Héctor Freschi. O Cuyo aportou o habilidoso e rápido ponta-esquerda Roberto Irañeta, do Gimnasia y Esgrima de Mendoza; o capitão José El Turco Nehín, do Desamparados de San Juan; e até um paraguaio: Constantino Urbieta Sosa, do Godoy Cruz, clube mendoncino que só na última década chegou ao alto escalão.

Urbieta Sosa vinha de uma família de jogadores do “Nacional Querido”, que chegaram em demasia ao futebol argentino após o triunfo de Manuel Fleitas Solich no Boca nos anos 20 (outro foi o maior artilheiro do Independiente e do campeonato argentino, Arsenio Erico, ídolo da infância de Di Stéfano): explicamos em outro Especial. Sua convocação gerou polêmica, pois ainda não tinha a cidadania argentina. E ainda jogou irregularmente, pois o prazo mínimo que existia na época segundo a FIFA para o jogador de uma dada seleção passar a defender a de um outro país não chegou a ser cumprido.

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Treinamentos. O técnico Pascucci era preparador físico

Já os clubes da Grande Buenos Aires ainda amadores pós-1931 abrangiam alguns hoje tradicionais das divisões de acesso: o Defensores de Belgrano forneceu o defensor Ernesto Belis e o atacante Luis Izzeta; o Barracas Central, o defensor Enrique Chimento e o meia Alfonso Lorenzo; o Almagro, o atacante Francisco Pérez; e o Dock Sud, campeão amador de 1933, o atacante Francisco Rúa.

Outros do campeonato argentino amador, por sua vez, fechariam as portas, casos do Alsina, do goleiro Ángel Grippa; do Sportivo Buenos Aires, dos meias Arcadio López e Ernesto Albarracín; e, sobretudo, do Estudiantil Porteño, justamente quem mais ganhou no epílogo do amadorismo: foi campeão em 1931 e em 1934. Nele jogavam o defensor Juan Pedevilla e o elegante e perigoso atacante Alfredo Devincenzi, que seria o capitão mas que perdeu por indisciplina a braçadeira para Nehín.

Como os profissionais temiam para as suas estrelas, o farmacêutico Devincenzi de fato saiu da Copa mas não da Itália, pois lá assinou com a Internazionale, que já tinha um ex-Estudiantil Porteño: Atilio Demaría (um dos maiores artilheiros do clássico com o Milan), vice da Copa 1930 pela Argentina e campeão na de 1934, mas pela Azzurra, ao lado de outros hermanos, Raimundo Orsi e Luis Monti.

Dos convocados, só Devincenzi e Arcadio López já haviam jogado antes pela Argentina, em 1931. E só López voltaria a ser usado pela seleção: seu último jogo foi aquela derrota de 3-2 para o Brasil na Copa Roca de 1939 em que os argentinos abandonaram a partida descontentes com a marcação de um pênalti, cobrado então com o gol vazio. Até lá, López seria convocado a partir das equipes profissionais do Ferro Carril Oeste e do Boca. Ele também jogaria pelo Flamengo.

O time que foi a campo: técnico Pascucci, Pedevilla, Belis, Freschi, Nehín, Urbieta Sosa, López e o massagista Chichilo Sosa; Rúa, Wilde, Devincenzi, Galateo e Irañeta

Ou seja: o primeiro jogo da Argentina na Copa 1934 teve nove estreantes, todos eles também pela única vez: Belis e Galateo, autores dos gols, estão entre os dezesseis argentinos que marcaram em sua única aparição pela seleção – Belis é o único que marcou como jogador do Defensores de Belgrano. Até o técnico, Felipe Pascucci, outro que arranjou polêmica por não ter cidadania argentina (era italiano), só teve aquele jogo no currículo pela Albiceleste. Albarracín, Astudillo, Chimento, Grippa, Izzeta, Lorenzo e Pérez não atuaram e por isso jamais defenderam oficialmente a seleção.

Além de mandar uma seleção mais fraca, a delegação, por isso mesmo, contava com grande indiferença no país. O capitão Nehín prometeu que os amadores demonstrariam “que também são argentinos”. Mas o resto da preparação também não foi muito proveitoso: foi durante duas semanas a bordo de um navio rumo à Itália, assim como a do Brasil. Os brasileiros também encararam a longa viagem só para caírem já no primeiro jogo, para a Espanha do lendário goleiro Ricardo Zamora e do superartilheiro Isidro Lángara, mais tarde grande ídolo no San Lorenzo (falamos dele aqui).

Aquele mundial, apesar de atrair o interesse de 45 seleções inscritas, só tinha lugar a 16 participantes. A fórmula adotada foi começar já no mata-mata. Os argentinos encararam os desconhecidos suecos com as seguintes orientações de Pascucci, que também era preparador físico: que fossem pródigos no ataque e quem fosse lento em campo teria que depois encarar um duelo com o técnico. Em Bolonha, os comandados estiveram por duas vezes à frente do placar, mas levaram a virada no fim.

Os amadores saíram com alguma honra frente os desmandos, apesar de quase ninguém ter ficado famoso após a eliminação. Nada comparado ao trágico fim de alguns: o capitão Nehín faleceu eletrocutado em 1957. Galateo, autor de um dos gols, morto pelo próprio filho em 1961…

FICHA TÉCNICA – Argentina: Héctor Freschi, Juan Pedevilla e Ernesto Belis, José Nehín, Constantino Urbieta Sosa e Arcadio López, Francisco Rúa, Federico Wilde, Alfredo Devincenzi, Alberto Galateo e Roberto Irañeta. T: Felipe Pascucci. Suécia: Anders Rydberg, Nils Axelsson e Sven Andersson, Rune Carlsson, Nils Rosén e Ernst Andersson, Gosta Dunker, Ragnar Gustavsson, Sven Jonasson, Tore Keller e Knut Kroon. T: József Nagy. Árbitro: Eugen Braun (AUT). Gols: Belis (4/1º), Jonasson (9/1º), Galateo (3/2º), Jonasson (22/2º) e Kroon (34/2º)

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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