Carlovich: há 40 anos, Rosario vencia a seleção argentina
Imagine: para se preparar para a Copa 2014, o Brasil enfrenta uma seleção de Porto Alegre e perde por 3-1 para um combinado de cinco gremistas, cinco colorados e um do Cruzeiro-RS (ou do São José, já que o Cruzeiro se mudou para Cachoeirinha). E com a grande figura sendo justamente a do Cruzeiro. Há exatos 40 anos, a Argentina passou por vexame parecido contra Rosario, no embalo de um tal Tomás Carlovich, El Trinche Carlovich, quase um mito na cidade. E a humilhação poderia ter sido ainda maior, pois o técnico argentino suplicou que Carlovich fosse substituído no intervalo.
A Copa 1974 foi um dos mundiais de preparação mais conturbada da Argentina. O país não conseguira a classificação à Copa 1970, perdendo a vaga para o surpreendente Peru do técnico Didi (clique aqui). Uma nova desclassificação, para muitos, colocaria em dúvida até a capacidade “moral” de sediar o mundial de 1978; era uma época ainda romântica da FIFA, que passaria a se guiar primordialmente pelo dinheiro exatamente a partir daquele ano, em que João Havelange virou presidente da entidade.
A paranoia fizera até com que uma seleção B fosse usada durante três meses apenas para se ambientar à altitude boliviana para sair de La Paz com uma vitória – a Bolívia vencera em sua capital a Albiceleste nas eliminatórias de 1970 e os pontos perdidos ali fizeram falta adiante. Mas até nisso houve esculhambação: os jogadores, dentre os quais Fillol e Mario Kempes (foi assim que eles chegaram à seleção) foram “abandonados” e o elenco acabaria apelidado de “seleção fantasma”: clique aqui.
A Argentina venceu a Bolívia fora de casa e eliminou com mais tranquilidade o Paraguai, mas a preparação à Alemanha Ocidental continuou conturbada. Omar Sívori era o técnico, mas declarara que não iria seguir após a classificação e assim o fez. Seu substituto não foi outro, mas outros: a seleção passou a ser dirigida por três técnicos de uma vez, José Varacka, Vladislao Cap e Víctor Rodríguez. E eles não se davam ao trabalho de se entender.
Apesar da desorganização, o futebol argentino vivia uma geração dourada. Segundo o especialista Esteban Bekerman, em depoimento que reproduzimos aqui, aquela foi a última, por várias razões. Uma, a quantidade de gente de alto nível abundante mesmo em clubes pequenos e/ou do interior. Menotti, técnico campeão em 1978, se notabilizou por usar muitos do interior, especialmente cordobeses (como o próprio Kempes e também Ardiles, ambos chamados desde o Instituto, e Galván, do Talleres. Os três jogaram a final de 1978) e rosarinos em detrimento de outros mais festejados.
Menotti venceu a Copa sem os volantes craques Ricardo Bochini (Independiente) e Juan José López (River) e simplesmente sem ninguém do Boca, que havia vencido a Libertadores 1977. Um dos campeões de 1978, por exemplo, foi Ricardo Villa. Na época, estava no Racing mas fora pinçado por Menotti à seleção ainda como jogador do Atlético de Tucumán. Villa depois se tornaria um dos maiores ídolos do sofrido Tottenham Hotspur: autor do gol do título sobre o Manchester City na centésima edição da FA Cup, gol escolhido o mais belo do século XX dentre os marcados em Wembley.
Já a força do futebol rosarino se traduziu no jogo de 40 anos atrás, em que pese as confusões que atingiam a seleção principal. Além disso, o Rosario Central havia acabado de ser campeão nacional, no fim de 1973 (clique aqui), ainda sem Kempes, só contratado junto ao Instituto de Córdoba já em 1974. O arquirrival Newell’s, por sua vez, se sagraria campeão nacional pela primeira vez meses depois, no fim daquele ano de 1974. A dupla rival cedeu rigorosamente o mesmo número de jogadores. Griguol, técnico canalla, e Montes, o da Lepra, também dividiriam o comando técnico do combinado.
Dos titulares, Biasutto, o uruguaio González, Killer, Aimar e o próprio Kempes eram auriazuis, assim como os reservas Carril e Aricó. Outro centralista presente defenderia a Argentina: Aldo Poy, primo do ídolo são-paulino José Poy. Já Pavoni, Capurro, Zanabria, Robles e Obberti (ex-Grêmio) foram os rubronegros que começaram jogando, e os reservas Rebottaro e Berta também eram do Ñuls. O jogador restante do onze titular de Rosario vinha de outro time da cidade, o mais expressivo dentre os nanicos dela: Carlovich, filho de um imigrante iugoslavo e que atuava no rubroazul Central Córdoba. O aludido depoimento de Esteban Bekerman, aliás, menciona outros dois ídolos históricos deste clube.
Carlovich era um volante canhoto que os rosarinos mais velhos gostam de descrever como tão ou mais habilidoso que Maradona nos dribles e outros lances plásticos, características da tradicional escola rosarina de futebol. Caminhava lentamente, mas era cerebral nos movimentos – mais ou menos como Riquelme, com quem Menotti, que convivera com Carlovich no Rosario Central, já o comparou.
Segundo Griguol, El Trinche não triunfou por ser displicente em uma época em que a preparação física começava a ser primordial. Não gostava de treinar, de se submeter a concentrações e a dormir cedo, por exemplo. Começara em 1969 no Rosario Central, jogou só um par de vezes pelo clube. Nos anos 70, jogou outras duas vezes por outro time da elite, o Colón. E só: o resto da carreira foi todo nas divisões inferiores. Segundo o colega Killer, foi Carlovich quem não quis voltar à elite (e às suas exigências de profissionalismo e pressão midiática) e não ela quem não quis trazê-lo de volta.
Chegou ao Central Córdoba em 1972 e no mesmo ano venceu por ele a terceira divisão. A venceria pelo clube também em 1982. Carlovich impulsionava o público dos jogos dos charrúas: sem ele, o preço do ingresso seria mais baixo. “Nesta noite joga Carlovich” era o anúncio comum do time. Em uma época de pouca dispersão da televisão, até gente de outras províncias iam vê-lo em Rosario. José Pekerman, ex-técnico da Argentina e hoje prestes a treinar a Colômbia na Copa, já declarou que fez isso algumas vezes na época em que defendia o Argentinos Jrs e o comparou a Redondo.
Na véspera do jogo contra a Argentina (realizado a três dias do 25º aniversário do Trinche), jornais rosarinos anteciparam que Carlovich poderia ter sua grande noite. E assim foi, especialmente pela assistência para o gol de Obberti. Uma jogada que lhe marcou naquela partida foi uma “caneta de ida e volta” em alguém. Mas o próprio desmente com bom humor que isso lhe fosse uma jogada habitual: “aqui em Rosario inventaram um montão de coisas sobre mim. Mas não são verdade… os rosarinos gostam de contar contos. Algum caño (como os argentinos chamam o drible de caneta) de ida e volta terei feito, mas não é para tanto”.
Dentre os jogadores da Argentina, cabe menção o uso de Rubén Cano, do nanico Atlanta, que nunca mais cedeu outro jogador à seleção. Cano nunca realizou uma partida oficial pela Albiceleste (isto é, contra outra seleção nacional reconhecida pela FIFA), só aquela. Por isso, ficou livre para anos depois, quando era ídolo no Atlético de Madrid, para passar a jogar pela Espanha. A Furia, ausente de mundiais desde a Copa 1966, se classificou à de 1978 por causa de um gol de Cano sobre a Iugoslávia em Belgrado.
Já há 40 anos, Cano e o restante dos alvicelestes levaram um baile no primeiro tempo: os três gols rosarinos saíram na primeira etapa. Foi só após Carlovich ser retirado que a Argentina marcou seu gol de honra. Mas, dos adversários naquela partida no estádio do Newell’s, ela preferiu levar Kempes para a Copa 1974. Cinco dias depois, venceu em Buenos Aires a Romênia (2-1) e no mês seguinte venceu a França dentro de Paris (1-0) e arrancou um 2-2 com a Inglaterra em Londres. Mas no fim de maio, levou de 4-1 da ascendente, mas naqueles dias ainda tradicionalmente modesta Holanda em Amsterdã. A preparação estabanada se traduziu também em um dos vitoriosos há 40 anos, Aimar:
“Durante a transmissão radial que José María Muñoz fez do jogo contra a Holanda, na gira prévia, começaram a reclamar um volante de marcação para a equipe e ali arrancaram as versões de minha possível convocação. O próprio Muñoz me chamava em casa desde a Europa para me dizer que estivesse preparado, porque era um grande candidato, feito que se potencializou com a lesão de Avallay. Tudo me inteirava pelos jornalistas, já que ninguém do corpo técnico se comunicava comigo. Finalmente, o convocado foi Babington, que devia estar desde antes nesse plantel”.
Babington era um dos pilares do Huracán que no ano anterior vencera pela última vez o campeonato argentino (clique aqui) e já jogara na seleção, mas foi confirmado tão em cima da hora que chegou na Alemanha na mesma noite em que os técnicos confirmaram os titulares para a estreia na Copa. E para a surpresa total, começando pelo próprio Babington, ele estava entre os onze escolhidos…
E quanto à grande figura daquele 17 de abril de 1974? Ela virou quase o que hoje se chama de meme. Até imagens em que sua face é mesclada com o famoso retrato do também rosarino Che Guevara foram feitas. Mas talvez a anedota mais célebre do “Maradona que não foi” teria partido do próprio Maradona, quando indagado em 1993 ao chegar para jogar no Newell’s e ouvir que Rosario estaria em polvorosa por receber o melhor do mundo: “o melhor já jogou em Rosario e é um tal Carlovich”.
FICHA DA PARTIDA – Argentina: Miguel Ángel Santoro, Enrique Wolff, Néstor Togneri, Francisco Sá e Alberto Tarantini, Miguel Ángel Brindisi (Carlos Squeo), Roberto Telch e Aldo Poy, René Houseman (Victorio Cocco), Osvaldo Potente (Rubén Cano) e Daniel Bertoni (Enrique Chazarreta). T: Vladislao Cap. Rosario: Carlos Biasutto, Jorge González (Andrés Rebottaro), José Luis Pavoni, Armando Capurro e Mario Killer, Carlos Aimar, Tomás Carlovich (José Berta) e Mario Zanabria, Sergio Robles (Roberto Carril), Alfredo Obberti (Daniel Aricó) e Mario Kempes. T: Carlos Griguol e Juan Carlos Montes. Gols: González, Obberti, Kempes e Cocco.
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