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Doval, o argentino mais brasileiro, faria hoje 70 anos

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Se vivo estivesse, o argentino mais carioca (não só metaforicamente, mas também de fato como cidadão honorário) faria 70 anos: Narciso Horacio Doval. Que, aliás, era naturalizado brasileiro. Sua trajetória no futebol é uma das mais detalhadas na Wikipédia. Escrevi o texto de lá – foi uma das “cartas de apresentação” ao Futebol Portenho, onde entrei meses depois. Daí ser complicado falar dele aqui sem parecer cópia do que já pus ali. A homenagem fica em uma compilação de outras curiosidades e estórias do saudoso ponta-direita de San Lorenzo e Huracán e centroavante de Flamengo e Fluminense:

“Atacante. 1 jogo (1967). El Loco. Talentoso mas indisciplinado. Extremamente hábil, mas para nada responsável desde o profissional. Capaz da manobra inesperada, inspirada, mágica, mas também de perder gravitação e voltar-se intranscedente no mesmo encontro. Teve uma magnífica campanha no futebol do Brasil, onde chegou a converter-se em ídolo. Sua atuação internacional fugaz, por certo – foi em uma equipe quase experimental: com ele estrearam outros 8 jogadores. Morreu como viveu: rápido, porque tinha 46 anos. O feito ocorreu na porta de uma discoteca”.

O trecho acima é o diminuto perfil sobre Doval no livro Quién es Quién en la Selección Argentina, a reunir fichas de todos os jogadores que a defenderam entre 1902-2010 – na realidade, Doval não se limitou à uma única partida oficial, a derrota de 1-0 para o Chile em 15 de agosto de 1967, em Santiago; na sequência, esteve em campo em quatro jogos não-oficiais entre agosto e setembro, inclusive marcando um gol, no 1-1 contra a Fiorentina. Mas seguiu sem vencer e sem o gostinho de jogar em casa: os outros adversários foram os clubes Málaga (2-2), Espanyol (derrota de 2-1) e Lecce (0-0), todos em malfadada excursão europeia.

Mas quem lê seus relatos no Brasil nota a diferença da impressão argentina, onde ele era imprevisível, para o bem e para o mal. O próprio Doval admitiu, em palavras constantes em nota póstuma que a revista El Gráfico publicou em outubro de 1991: “eu não sabia nem me alimentar. Por isso era magro (…). No Brasil ganhei potência, resistência. Corro os 90 minutos, arranco desde atrás, chego para a tabela e para o gol e volto a tomar posição de volante defensivo. Me fiz mais jogador sem a bola. (…) Me fiz um jogador mais sério, com muita mais continuidade e capacidade para resolver”.

Segundo seu amigo Pepe García, que mantém uma página-tributo no Facebook, Doval seria torcedor do Platense, sumido da elite desde 1999. Hoje, é mais conhecido por ser um dos poucos clubes marrons do mundo e por ter revelado Trezeguet. Mesmo assim, chegou a marcar os dois gols dos 2-0 sobre ele em 1965, ano em que foi o artilheiro do San Lorenzo. Tinha um irmão que também jogou futebol: Jorge Doval, que começou no próprio Platense e chegou a jogar na liga espanhola, pelo Elche. Já as primeiras oportunidades no San Lorenzo vieram nos juvenis sob Florencio Doval, com quem não tinha parentesco.

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treinando com uma bola de rúgbi, esporte popular na Argentina; com o irmão Jorge e o amigo Pepe García no Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires; e já com bom humor com uma aeromoça…

Foi justo 1965 que marcou sua explosão no San Lorenzo, embora já tivesse estreado em 1962. O elenco era marcado por jovens irreverentes, Los Carasucias. Uma matéria naquele ano chegou a rotulá-lo justamente de “El Último Carasucia”. Do quinteto mais celebrado – Victorio Casa, Héctor Veira, Roberto Telch e Fernando Areán, Doval foi precisamente o último a estrear na seleção, em 1967.

“Há poucos dias, um jornalista brincou amavelmente comigo em sua crônica me chamando de ‘o rei das aeromoças’. Eu gostei. Eu gostei porque esse é um assunto esquecido e porque agora, se tenho a oportunidade de sair com uma aeromoça, a lembrança se torna simpática… a respeito daquele problema, há muitas coisas que nunca disse, mas uma das mais interessantes é essa: eu esperava a sanção, mas nunca imaginei que seria de um ano…”. Doval contou isso em 1971 sobre o suposto assédio a uma aeromoça em 1967, incidente que brecou sua carreira na Argentina, onde se conta que ele teria assumido uma culpa que na verdade seria de um colega casado.

A suspensão durou um ano e o privou de estar na versão evoluída de Los Carasucias: Los Matadores, o primeiro time campeão argentino de forma invicta no profissionalismo, no Metropolitano de 1968 (clique aqui). Voltou no fim daquele ano a tempo de marcar 4 gols em 5 jogos na reta final do Torneio Nacional. Um deles, sobre o River, teria morto alguém no estádio: “faltavam poucos minutos. A bola pegou no peito de Carrizo (considerado o melhor goleiro argentino da história) e eu a meti lentamente num canto. Quando fiz esse gol, um torcedor morreu de um desmaio na tribuna. Desde então, sempre me perguntei se eu não o terei matado um pouco”, contou em 1971.

“Quando cheguei ao Brasil, me fez uma bagunça bárbara com tantos pesos novos, os velhos, os antigos e os novos cruzeiros. Me salvou George Helal, que é um dirigente do Flamengo (…), aconselhando-me que comprasse ações do Banco do Brasil. Ali comprei 5 milhões de mangos. Hoje a cifra se duplicou sozinha. Por isso, penso às vezes o injusto que seria se aceitasse alguma vez que me façam um jogo-benefício… o jogo-benefício tem que fazer-se ao Manco Casa, que era o mais hábil, o único que fazia gols incríveis naquele ataque do San Lorenzo! (…) Nem bem Casita perdeu o braço, todos queriam ajudá-lo. Hoje, ninguém se lembra dele…” – depoimento em 1971 em que menciona Victorio Casa, colega que perdeu um braço e continuou no futebol: clique aqui.

No Rio de Janeiro, Doval de início dividiu apartamento com Andrada, que chegou na mesma época para jogar no Vasco. Apesar da amizade, em campo Doval a “esquecia”: fez 5 gols pelo Flamengo nos cruzmaltinos. Sua primeira etapa no Flamengo terminou boicotada pelo truculento técnico Yustrich.

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Marcando o gol da vitória por 1-0 na Bombonera em 1965, ano em que explodiu no San Lorenzo (e em que o próprio Boca foi campeão, perdendo só essa em casa)

“Yustrich havia chegado mansinho. Mas em pouco tempo mostrou sua verdadeira personalidade: nos punha em fila para tomar água e nos ia dando um trago a cada um, ameaçava em mandar sentar em um abacaxi quem se rebelasse por qualquer coisa e mais de uma vez expulsou os jornalistas a sopapo limpo. Isso não é tudo: arrematou no dia em que encarou o vice-presidente do clube e lhe tirou o cigarro da boca…”, contou assim que voltou à Argentina em 1971 para jogar emprestado no Huracán. O tal Yustrich, aliás, se chamava Dorival Knipel e foi apelidado porque, quando jovem, lembrava justamente um argentino: o goleiro Julio Yustrich, ídolo do Boca nos anos 30 e de origens iugoslavas.

“No último momento, o Botafogo pediu meu passe. Estava muito interessado. Pensei que poderia frustrar-se. O presidente do Flamengo, um cara sensacional, grande pessoa, grande amigo e a quem devo eterno agradecimento por tudo o que fez por mim, me perguntou. Me pediu que respondesse claramente aonde queria ir, se ao Botafogo ou voltar a Buenos Aires para jogar de empréstimo no Huracán. Claro que não duvidei por um momento. Eu queria voltar a Buenos Aires…”.

“Ao Botafogo tinha de freguês e por isso estavam enlouquecidos para comprar-me. Mas o Flamengo me taxou em 100 mil dólares, eles se esfriaram um pouco e eu aproveitei a coisa para vir a ver os meus”. Doval não exagerou: o Botafogo foi o rival carioca em que mais marcou gols, 9 pelo Flamengo e 3 pelo Fluminense. Certa vez foi curiosa: fez os dois em um 2-1 em 1972, com o gol rival sendo do também argentino Rodolfo Fischer, seu ex-colega no San Lorenzo. Foi o último clássico antes do 6-0 alvinegro, naquele mesmo ano, dérbi em que Doval não jogou. Fischer, que marcou duas vezes na goleada, era filho de um brasileiro e, como botafoguense, foi o primeiro a jogar pela Argentina vindo do exterior.

A passagem pelo Huracán não foi exatamente um sucesso. Historicamente em desvantagem no clássico com o San Lorenzo, o Globo perdeu um de seus poucos orgulhos: tinha a maior goleada no confronto, um 5-1 igualado pelo Ciclón naquele 1971. Doval não jogou este dérbi. Dizem as línguas ferinas que para não jogar contra o ex-clube. O folclore ficou por uma foto sua comemorando um gol com o amigo Héctor Veira ser usada no ônibus do San Lorenzo como se ainda fossem do time do Papa.

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Com o amigo Veira no Huracán em imagem acidentalmente usada no ônibus do rival San Lorenzo

Doval, que jogou como ponta na Argentina, não fez tantos gols como no Brasil: em torneios oficiais, foram 1 em 1963, nenhum em 1964, 12 em 1965, 5 em 1966, 7 em 1967, 4 em 1968, 5 em 1969 e em 1971 e 4 em 1979. Mas podia ser considerado talismã: raramente perdia quando marcava. Foram só quatro vezes. No clássico Huracán-San Lorenzo, marcou duas vezes, ambas pelos azulgranas. Já no Rio de Janeiro, pelo Flamengo foram dois no Fluminense e cinco no Vasco, e três no Flamengo e outros três no Vasco pelo Fluminense, além dos já citados gols no Botafogo.

Sua partida talvez mais lembrada por lá foi justamente onde não marcou gols e pelo Huracán: 2-1 no Vélez em 1971. Em 2009, eles fizeram uma das finais argentinas mais conhecidas no exterior: o Huracán não era campeão desde 1973, fazia bela campanha com Pastore, Bolatti e Defederico e podia empatar com o Vélez na última rodada. Em tarde que contou até com chuva de granizo interrompendo, o Vélez venceu no final por 1-0 com polêmica: Larrivey (ex-Huracán) fez falta clara no goleiro huracanense, que perdeu a bola para o gol de Maxi Moralez. O vice ainda teve gol legal anulado.

O que poucos sabem é que, aos velezanos mais velhos, foi uma vingança: o Fortín, em 1971, sem porte próximo ao atual, só tinha um título argentino. Na última rodada, o então atacante Carlos Bianchi e colegas eram líderes e receberiam em casa o instável Huracán. Abriram o placar no início. Mas perderam, com a virada vindo de rebote de chute magnífico de um Doval incansável na tarde, dono de nota 9 da principal revista esportiva argentina, a El Gráfico. O Independiente, em segundo, venceu seu jogo e levou. Doval e companhia viraram Los Aguafiestas (algo como “estraga-prazeres”) de Vélez, que só seria em 1993 campeão pela segunda vez.

Atualização em 03-10-2016: nos 45 anos dessa partida, a detalhamos neste outro Especial.

Um dos derrotados naquela tarde foi o goleiro velezano José Miguel Marín, que estreara pela Argentina no mesmo único jogo de Doval por ela. Eles coincidiriam também na tragédia: como El Loco, Marín também morreria precocemente de ataque cardíaco em 1991. A partida foi realizada em 3 de outubro de 1971, exatamente meia década antes de outro jogo marcante de Doval: a finalíssima carioca de 1976, ganha com gol dele (que o fez artilheiro do torneio) no último minuto da prorrogação.

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Virou carioca sem deixar de ser argentino. Só jogou uma vez pela Albiceleste, defendendo mais vezes o Resto do Mundo – uma delas, na despedida de Garrincha

Doval foi nomeado cidadão honorário em 1973. A cerimônia reuniu para a mesma “premiação” também a atriz polonesa Ida Gomes, sucesso naquele ano como uma das Irmãs Cajazeiras de O Bem Amado. Na mesma época, Zico ia se afirmando na Gávea. Doval foi seu primeiro parceiro ofensivo e Zico teria conhecido a esposa justamente porque esta iria assistir aos treinos suspirar pelo argentino. Filho de um espanhol, Doval chamava a atenção pelos longos cabelos loiros e olhos azuis, que contrastavam com uma possível origem paralela indígena pelas maçãs arredondadas do rosto e olhos puxados.

Um de seus amigos no futebol era o lateral Rodrigues Neto, que foi com ele do Flamengo ao Fluminense em 1976 (também foi titular da seleção na Copa 1978), cujo apelido de Toríbio foi criado por Doval. Rodrigues Neto faria algum sucesso na Argentina defendendo o Ferro Carril Oeste.

Mas talvez o melhor amigo tenha sido o Carasucia Héctor Veira. Veira jogou pelo Corinthians, mas é desconhecido no Brasil, enquanto na Argentina foi eleito em 2008, ano do centenário do San Lorenzo, como o maior ídolo do clube. Em 2013, Veira contou que “em São Paulo, não (aprontei muito), mas a cada duas semanas ia ao Rio ver Doval e ficava um par de dias. Íamos à praia, jogávamos vôlei, saíamos para comer, dançar, haha, o Loco era ídolo lá”.

Uma das anedotas deles: estavam no banco e o San Lorenzo perdia por 4-0 do México. O técnico azulgrana, José Barreiro, resolveu colocá-los. Veira se levantou e disse “o general San Martín, às suas ordens”, Doval completou “e também o Sargento Cabral”. Referiam-se a dois heróis da independência argentina, José de San Martín e Juan Bautista Cabral. Barreiro, incrédulo, perguntou o que queriam dizer. Veira ironizou: “você crê que nós somos os salvadores da pátria?”. Veira chegou a contar sobre certa vez no Egito em 1964: quase todos foram presos após Doval subir o véu de uma moça local.

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Time de 1967 do San Lorenzo. Doval é o 1º agachado. Também foram ao Brasil o goleiro Buttice (America, Bahia e Corinthians) e os atacantes Fischer (3º agachado) e Veira (4º agachado)

“Uma vez na Venezuela, com o Loco Doval, afogamos na piscina do hotel um papagaio que não nos deixava dormir. Que bagunça! Fazia como 6 anos que era o mascote do lugar. Tinha gente que chorava olhando a piscina… Tivemos que pagá-lo”. Veira contou isso em 1999. Já Casa contou sobre o técnico Barreiro que “um dia, se enfezou muito comigo por uma travessura e entrou gritando enfurecido: ‘tens 90 dias de suspensão!’. Doval estava sentado em um canto, olhando, sem abrir a boca. Barreiro ia embora, o viu e gritou: ‘você também tem 90 dias de suspensão por ser amigo dele’”.

Em outubro de 1991, a El Gráfico lembrou dos Carasucias. Foi um mês terrível a eles: Veira, após perder recurso, foi preso no dia 4, acusado de violentar um menor (sempre alegou inocência e que a vítima, travesti, queria extorquir-lhe). O amigo Doval faleceu oito dias depois. A revista, em dado momento, falou dele assim: “nunca ocultou suas preferências: as moças, a praia e os esportes. A noite não o enlouquecia. Gostava dela sim, mas inquieto como era, precisava de ar livre. Quando alguém lhe insinuava a possibilidade de uma transferência com a qual podia ganhar muito dinheiro, costumava responder: ‘está bem, mas que seja uma cidade que tenha praia’. O destino e seu coração quiseram que sua vida terminasse em Buenos Aires, em uma discoteca, depois de uma noite longa”.

“Eis um momento que jamais passou pela cabeça de alguém e muito menos do próprio Doval, um dos maiores exemplos de amor à vida que conheci. Tanto que, ao saber que ele morrera, em Buenos Aires, surpreendi-me pela morte e pela informações de que já estava com 47 anos. (…) Para os leitores mais jovens, informo que, se fosse brasileiro, Doval teria jogado em nossa seleção. Tinha jogo para isso. E tinha mais. Tinha uma disposição fantástica para defender o time em que atuava. Para ele, não havia jogo perdido, não havia bola perdida. Estava permanentemente pronto para ganhar a bola, mesmo que ela estivesse sob o domínio do adversário. E, se passasse para os seus pés, nas proximidades da grande área, as possibilidades de gol seriam imensas. (…) Sem metáfora, leitor, no campo, Doval brilhava.” Palavras em 17 de outubro de 1991 do jornalista e vereador carioca Sérgio Cabral, pai do atual prefeito do Rio de Janeiro, cinco dias após a morte do jogador.

Segundo seu amigo Pepe García, Doval tinha uma “luta contra a idade”, fazendo esportes em excesso e negligenciado avisos que seu corpo vinha dando, como desmaios. Aliás, não deixe de ver a página-homenagem preparada por Pepe no Facebook, que reúne até fotos pessoais do craque. Podem ser vistas mesmo por quem não tem conta na rede social: clique aqui. Em 2011, no Superclássico das Américas, o Baú do Esporte, no intervalo da transmissão da Globo no jogo de ida, montou um hipotético time de ídolos argentinos no futebol brasileiro. Doval foi escalado. Em 2012, pelos cem anos do Fla-Flu, a Globo montou um hipotético time de ídolos em comum dos dois e Doval foi incluído em dupla com Romário. Já o jornal argentino Clarín lembrou dele em 2002, como um dos jogadores que “assistiram desde o céu” o San Lorenzo ser campeão continental pelas primeiras vezes: na Copa Mercosul, justo sobre o Flamengo (clique aqui), e na Sul-Americana (aqui).

Atualização em julho de 2014: vale apoiar também o filme Doval – O Gringo Mais Carioca do Futebol, documentário produzido sobre o craque. Clique aqui.

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Nos anos 60, recém-chegado ao Flamengo, com George Helal e Tim; nos anos 70 e nos 80

 

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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