Há 90 anos, o San Lorenzo era campeão argentino pela 1ª vez
No ano em que o principal acontecimento argentino foi a eleição do Papa Francisco, encerramos contando a primeira conquista do seu clube do coração, garantida há exatos 90 anos. Naquele 1923, o San Lorenzo tinha somente 15 anos de vida, e um de seus fundadores pôde estar presente em campo em alguns jogos: o atacante Luis Gianella, que parou de jogar ali. Sua vaga na ponta foi ocupada no meio da campanha por Edelmiro Delor. Gianella, àquela altura, já era mesmo ofuscado por mais jovens.
Um deles era do próprio bairro-reduto sanlorencista, Boedo, e tinha no sangue outro elemento também cada vez mais popular na cultura argentina: o centroavante Juan José Maglio era filho do tangueiro José Félix Maglio. Com média de quase meio gol por jogo (foram 78 em 165), Maglio, vindo do Almagro, foi um dos reforços daquele ano e seria uma das primeiras contratações transatlânticas da Juventus, onde seria campeão em 1931. Ele faria 110 anos amanhã.
O outro reforço também compunha o ataque: Antonio Valente, ex-Huracán, clube vizinho – e, por isso, rival – do Ciclón. Seu outro colega na linha ofensiva, o ponta Alfredo Carricaberry, faria travessia inversa em 1932, descontente após passar toda a década de 20 no San Lorenzo e considerar irrisório o salário que lhe ofereceram no advento do profissionalismo, em 1931, após tantos serviços prestados. Só deixou de ser vaiado pelos cuervos após o tabaco mata-lo precocemente em 1942.
Na época amadora, fora “transferido” de seu trabalho nos correios pelo presidente sanlorencista (Pedro Bidegain, nome oficial do estádio Nuevo Gasómetro) para um melhor remunerado, na companhia sanitária. Carry seria titular na Argentina estreante e medalha de prata olímpica em 1928. Ele e Valente seriam os artilheiros do campeão, com 7 gols cada.
Capitão daquela Argentina prata olímpica, o robusto e combativo centromédio Luis Monti também estava no San Lorenzo em 1928. Como Valente, ele e seu irmão Enrique Monti eram ex-Huracán e até haviam participado da reta final do primeiro título do rival na elite, em 1921. Até hoje, só os Monti foram campeões argentinos pela segunda rivalidade mais importante de Buenos Aires (só atrás de Boca-River).
Como Maglio, Luisito também iria à Juventus, onde seria ídolo: integrou o elenco penta italiano no início dos anos 30, algo inédito no calcio e que iniciou o domínio da Juve ali. Mas Luis Monti é mais célebre como único a jogar finais de Copa do Mundo por países diferentes: vice pela Argentina em 1930, campeão pela Itália em 1934. Na campanha de 1923, se destacou também pelos gols: foram 4.
Próximo de Monti, o back direito era o caudilho José Fossa, jogador mais vitorioso da história azulgrana, com seis títulos. Já veterano, ainda estaria em campo dez anos depois, quando o time foi campeão argentino profissional pela primeira vez: clique aqui. Já Lindolfo Acosta era um atacante que superava a falta de físico com inteligência, atuando mais recuado que os colegas ofensivos para municia-los. Mas também fazia seus gols; foram 5 em 1923, só atrás de Valente e Carricaberry.
No gol, Domingo Caldano, que se destacava à moda antiga mesmo para a época, já que costumava ficar parado entre as traves apenas esperando intuitivamente as conclusões, não sendo nem mesmo de interceptar cruzamentos. Em alguns jogos, quem atuou na posição foi o veterano José Coll, dos primórdios cuervos, quando o time ainda nem era da elite e até quase se dissolveu, em 1912. Coll fora justamente um dos “refundadores” em 1913.
Pedro Omar era um zagueiro fino e jogou quase toda a década no clube. Don Pedro del Area era muito lembrado por, em um Argentina-Uruguai, dizer ao árbitro que “senhor, acabo de cometer uma falta que você não assinalou, faça o favor de cobrá-la”. Eram mesmo outros tempos… tanto que muitos dos adversários há tempos estão longe da elite (Atlanta, Estudiantes de Buenos Aires, Defensores de Belgrano, Almagro, Platense, Ferro Carril Oeste e Barracas Central) ou extintos (Estudiantil Porteño, Sportivo Buenos Aires, Argentinos Sur) ou de futebol desativado (San Isidro, potência no rúgbi).
Completavam o torneio os times do Banfield, Quilmes, Tigre, Lanús, Racing, Vélez, Independiente, River e Gimnasia LP. Boca e Huracán estavam em outra liga (inclusive a decidiriam), por conta de uma cisão existente entre 1919 e 1926. O Sanloré, que por sinal seria em 1927 o campeão da unificação das ligas, fez campanha primorosa. Só perdeu duas vezes, fora de casa para Racing (2-0) e River (1-0). O Independiente foi quem mais lhe perseguiu, mas foi derrotado por 1-0 e os azulgranas garantiram a taça com uma rodada de antecipação.
O jogo do título, curiosamente, era válido pela 4ª rodada, mas fora adiado. O torneio começou só no fim de julho e acabou sendo em turno único. O adversário foi o Lanús, fora de casa, que até começou vencendo, mas terminou levando de 4-1, decretando um carnaval azulgrana a celebrar desde o sul da Grande Buenos Aires (onde está a cidade de Lanús) até perto da região central da capital, onde está mais ou menos o bairro de Boedo. Assim escreveu o La Nación:
“A torcida do San Lorenzo foi a verdadeira protagonista do espetáculo. Ao princípio os torcedores saudaram Valente, este se aproximou à tribuna e beijou a bandeira, depois se repetiu a cerimônia com Carricaberry, e com Luis Monti. A tribuna repartiu cânticos para todos os seus jogadores com a melodia do tango ‘Buenos Aires’. Ao finalizar a luta, o público do San Lorenzo invadiu o campo, o Vasco Carricaberry foi levado carregado e desde acima dos ombros dos torcedores pronunciou um discurso para toda a torcida”.
A festa continuou animada até a estação de trem e só foi calada por um pedido de silêncio do goleiro Caldano, em emocionada homenagem ao centromédio Jacobo Urso, que falecera no ano anterior. Primeiro sanlorencista na seleção, Urso fraturou uma costela contra o Estudiantes de Buenos Aires, resolveu seguir jogando e, após duas operações, morrera uma semana depois. Seu nome batiza o museu virtual do clube e seu irmão Antonio Urso foi outro membro da campanha de 1923.
Um ano depois, o San Lorenzo foi bi e obteve o terceiro título nacional em 1927. Nove décadas depois da conquista inaugural, o clube de Sua Santidade já reúne quinze taças nacionais. Mas nenhuma outra década viu o Ciclón ser mais vezes campeão argentino do que aquela. Só nos saudodos anos 70 é que igualou. Gianella, cego e quase surdo, ainda vivia, sendo um dos últimos sobreviventes dos primórdios azulgranas. Não deixe de ler belo texto dos amigos do Impedimento a respeito: clique aqui.
FICHA DA PARTIDA – Lanús: Bengoechea; Fantini e Brenta; Giacosa, MacCoubrey e MacLennan; Spadaro, Oreiro, B. Saruppo, E. Saruppo e Danielli. San Lorenzo: Caldano; Omar e Enrique Monti; Alfredo Sánchez, Luis Monti e David Pérez; Carricaberry, Acosta, Valente, Maglio e Delor. Gols: Danielli (15/1º), Carricaberry (18/1º), Acosta (43/1º), Valente (35/2º) e Maglio (43/2º)
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